Sobre a Igreja Católica e a escravatura dos Africanos
A Igreja Católica, mesmo condenando geralmente a escravatura, permaneceu silenciosa de 1444 - data das primeiras incursões portuguesas - até 1839 quando se tratava de condenar formalmente a escravatura dos Africanos.
O necessário trabalho de memória que tem feito Claude Ribbe, filósofo francês vocacionado a questões ligadas a escravatura dos Africanos, revela que a Igreja Católica, mesmo condenando geralmente a escravatura, permaneceu silenciosa de 1444 - data das primeiras incursões portuguesas - até 1839 quando se tratava de condenar formalmente a escravatura dos Africanos. Esse culpado silêncio foi uma aprovação implícita. Com o apoio oficial de Portugal, Gil Eanes liderou em 1444 uma expedição ao Banco de Arguim, na costa da Mauritânia, para atacar Africanos que foi vender como escravos. O ataque foi precisamente realizado em Cabo Branco, na fronteira entre a Mauritânia e o Saara Ocidental, e a venda foi feita em Lagos, Portugal. Embora o primeiro traficante de escravos europeu conhecido - desde 1441 - seja o português Antão Gonçalves, também companheiro de Eanes, a operação de 1444 marca o início do tráfico de escravos africanos organizado pelos europeus e que durou 4 séculos e meio.
Em 13 de Janeiro de 1435, o Papa Eugênio IV condenou formalmente a escravatura numa carta, a conhecida encíclica Sicut Dudum. E nela foi explicitamente referida a situação dos nativos das Canárias, cuja escravatura pelos portugueses foi reprovada sob pena de excomunhão. Mas a questão dos Africanos ainda não se colocava. Menos de 20 anos depois, em 8 de Janeiro de 1455, quando os Portugueses já escravizavam Africanos - desde 1444 -, o papa Nicolau V publicou a bula Romanus Pontifex que, sem endossar abertamente a escravatura dos Africanos, encorajou “a exploração” de África e a “submissão” de “Sarracenos” e “outros infiéis”. Este Papa reconheceu estar informado de que “muitos Guineenses e outros negros, tomados à força, trocados por bens não-proibidos ou comprados, haviam sido enviados para Portugal”. Nenhuma denúncia formal foi feita contra essa escravatura, o que equivale a uma aprovação implícita. Além disso, o critério racista da cor da pele foi aí explicitamente mencionado e a autorização para colonizar foi também dada claramente. A bula Aeterni Regis do Papa Sisto IV, de 21 de Junho de 1481, cedeu África a Portugal. A bula Inter Caetera do Papa Alexandre VI, de 4 Maio de 1493, deu à Espanha a autorização para colonizar o “Novo Mundo”. Estes são os três textos em que os católicos se basearam para ocuparem África e deportarem os Africanos para América, pelo critério da cor da pele. No seu breve apostólico, Pastorale officium, de 29 de Maio de 1537, o Papa Paulo III condenou a escravatura dos nativos da América (que aí já estavam quase todos exterminados), mas também não disse nada sobre a escravatura dos Africanos. Este evidente laisser-faire da Igreja Católica levou ilustres eclesiásticos, tais como o padre Labat (1663-1738), a não terem nenhum problema de consciência para se tornarem proprietários de escravos. E muito cedo no seu reino, numa carta datada de 5 de Outubro de 1514, D. Afonso I do Kongo queixou-se dolorosamente ao rei de Portugal sobre a escravatura que praticavam os cristãos desse reino nas suas terras. Aliás, o rei dos Bakongo viveu um verdadeiro inferno com um certo Fernão de Melo, Capitão-Donatário da ilha de São Tomé (1499-1517), que inclusive raptou familiares seus quebrando até o braço de um dos sobrinhos enquanto o tentava levar à escravatura nos seus navios. E foi com o mesmo desprezo e racismo que a Igreja Católica tratou os Africanos durante a colonização. Em Angola ainda, deixou a PIDE aprisionar padres católicos nacionalistas: deixou aprisionar o padre Alexandre do Nascimento. Deixou aprisionar o Cónego monsenhor Manuel das Neves. Deixou aprisionar o padre Manuel Franklin da Costa. Deixou aprisionar o padre Joaquim Pinto de Andrade. Deixou aprisionar o padre Lino Guimarães. Deixou aprisionar o padre Vicente José Rafael. Deixou aprisionar o padre Domingos Gaspar. Deixou aprisionar o padre Alfredo Osório. Deixou aprisionar o padre Martinho Campos. Então é um segredo de Polichinelo que a Igreja Católica, como instituição, ficou muito leal ao Governo português, isto é, cúmplice do regime colonial. E relativamente à escravatura dos Africanos, esperou até 1839, com a bula In supremo apostolatus do Papa, Gregório XVI, depois deste ter beatificado o afro-peruano São Martinho de Porres (1579-1639), para condenar oficialmente - até que enfim! - a escravatura dos Africanos, e nesse momento a Inglaterra já a tinha abolido, desde 1833. Em 1992, durante a sua viagem à Ilha de Gorée em Senegal - um símbolo do tráfico negreiro -, o Papa João Paulo II pediu perdão pela responsabilidade dos cristãos na escravatura dos negros, e reiterou o pedido em 12 de Março de 2000; pedindo outras desculpas em nome da Igreja por esta ter incentivado e apoiado a escravatura dos Africanos. Foi assim que a cruz foi plantada no coração dos Africanos.