Cannes joga em 2019 as suas cartas habituais: Almodóvar, os Dardenne, Dolan, Malick, Loach, Suleiman...
A selecção oficial da 72.ª edição de Cannes é uma mão-cheia de habituais. Mas ainda se esperam surpresas, e Tarantino pode ser uma delas.
Eis a forma como o Festival de Cannes responde à concorrência, o Festival de Veneza, que no ano passado ficou com os filmes Netflix, entre os quais Roma, de Alfonso Cuarón, e com outros nomeados aos Óscar: uma mão-cheia de habitués na competição, com Jim Jarmusch a começar, e depois Dolor y Gloria, de Pedro Almodóvar, os irmãos Dardenne, Xavier Dolan, Terrence Malick, Ken Loach ou Elia Suleiman... Anunciados ao final da manhã desta quinta-feira, estes são alguns dos cineastas que passarão pela 72.ª edição, que se inicia a 14 de Maio.
Quentin Tarantino ainda está a acabar Once Upon a Time in Hollywood, sendo prematuro dá-lo na competição, o que seria ouro sobre azul porque se comemoram em 2019 os 25 anos da Palma de Ouro a Pulp Fiction. Mas Thierry Frémaux, o delegado-geral do festival, ainda torce para que o sprint de Quentin, que trabalha na sua cópia em 35mm, possa fazer chegar o filme a tempo. Ad Astra, a ficção científica de James Gray, poderá também ser acrescentado. Mas Verité, de Hirokazu Kore-eda, “filme francês” do cineasta japonês que no ano passado ganhou a Palma de Ouro, sobrará para o Outono. Também não aparece na lista Mektoub My Love: Intermezzo, a continuação de Mektoub My Love: Canto Primeiro, que Abdellatif Kechiche estava a montar no final do ano passado para estar pronto para Cannes – como o próprio assumia em conversa com o Ípsilon.
Para já, e depois da conferência de imprensa em que Frémaux e Pierre Lescure, o presidente do festival, anunciaram em Paris a selecção de 2019, pesa o que aqui não figura. Os programadores têm noção das expectativas que aguardam a edição 72. Por isso no início da conferência de imprensa trataram de olhar para trás, para a edição 71, a tal que para os jornalistas americanos não teve buzz, deixando-os sem assunto para escrever, e fixaram a sua versão. Resgataram 2018, disseram “bravo” a si mesmos: a Palma de Ouro, Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões, de Hirokazu Kore-eda, fez 800 mil espectadores em França, o dobro do que faz um filme do cineasta japonês (mérito da Palma de Ouro, quiseram dizer Frémaux e Lescure...); ali se estreou BlacKkKlansman: O Infiltrado, com que Spike Lee teve o primeiro Óscar da sua carreira (não é só Veneza que chega lá, quiseram dizer...); e houve Ou Nadas ou Afundas, de Gilles Lellouche, que se tornaria um dos sucessos do mercado francês e um espécime que os franceses souberam cultivar mas que está ameaçado por todos os lados: o filme de grande público com caução autoral...
Enfim, vai ser uma boa continuação, parecem ter querido dizer. Só Cannes para fazer a festa sem sair da zona de conforto. Poder-se-á contrapor: mais do mesmo. É cedo para dizer: os filmes não foram “abertos”, só se olha para o embrulho para já.
É “isto” o que há, 19 filmes em competição, uma selecção tocada pelo romantismo e pela política, descrição de Frémaux, com uma galeria de zombies, juízes, desempregados, mafiosos, pintores e cantores. E em que predomina “o cinema de género, mesmo que disfarçado”. Passemos então aos zombies de Jarmusch,The Dead Don't Die, filme de abertura, dia 14, com este cast: Chloë Sevigny, Adam Driver, Tilda Swinton, Bill Murray, Steve Buscemi, Tom Waits, Carol Kane, Danny Glover ou Iggy Pop.
Depois, o novo Almodóvar, com um filme que não é autobiográfico, Dolor y Gloria, mas cuja personagem principal, um realizador (Antonio Banderas), poderia ser o próprio Almodóvar, sim, disse ele.
Marco Bellochio, em Il Traditore, interessa-se por um arrependido da máfia siciliana, e Jessica Haustner, em Little Joe, pela manipulação genética. Bong Joon Ho regressa à competição com Parasites – foi a propósito de Okja, o filme Netflix do sul-coreano que há dois anos Cannes seleccionou para concurso, que começaram os protestos da indústria francesa contra o desrespeito pelas regras do mercado de distribuição por parte da plataforma de streaming, o que levou o festival a barrar da competição filmes sem agenda de exibição em sala (a coisa está, para já, em banho-maria).
Já os belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne e o britânico Ken Loach, premiados duas vezes com a Palma de Ouro, parece que nunca saíram da Croisette: os primeiros vão apresentar Le Jeune Ahmed, sobre um “assunto escaldante para a Bélgica e para toda a Europa” (as sinopses falam de um adolescente dividido entre os ideais do seu imã e os apelos da vida e que planeia matar o professor) que Frémaux se escusou a desenvolver (mas já está criado acontecimento: estreia no mercado francês no dia da exibição em Cannes); já Loach, vencedor da Palma de Ouro em 2016 com Eu, Daniel Blake (filme indignado com a devastação humana mas com uma delicadeza de olhar sobre o que resiste no espaço dos sentimentos), afinal não abandonou o cinema e está aí de novo: Sorry We Missed You. Tal como Terrence Malick, que regressa à Segunda Guerra Mundial com A Hidden Life. Ou como Xavier Dolan, que depois da experiência em língua inglesa, The Death and Life of John F. Donovan, que tem sido zurzido pela crítica, regressa ao festival que o criou, para ser mimado: Mathias & Maxime, em que é também actor.
Vai ser bom rever o brasileiro Kleber Mendonça Filho, que dá continuidade a Aquarius e àquele momento de Cannes 2016 em que a equipa do primeiro filme empunhou cartazes no tapete vermelho do Palácio dos Festivais a dizer que havia “um golpe em curso no Brasil” com o governo interino de Michel Temer: o cineasta dirige agora, com Juliano Dornelles, Bacurau, um “western nordestino”. Céline Schiamma não se estreia em Cannes (Bando de Raparigas foi um dos acontecimentos da Quinzena dos Realizadores em 2014), mas estreia-se na competição: Portrait de la jeune fille en feu, história de amor entre uma pintora e a sua modelo, França século XVIII. Por falar em franceses: Oh Mercy!, Arnaud Desplechin, que é de Roubaix, do Norte de França: neste filme ele enfrenta a sua região.
De onde é Elia Suleiman? É palestiniano, mas é figura errante, em exílio. Todos os seus filmes têm sido apresentados na Croisette; o novo, rodado entre Paris e Nova Iorque, também o será: It Must Be Heaven. Esperemos...
Completam – para já – a lista dos concorrentes The Wild Goose Lake, de Diao Yinan; Atlantique, de Mati Diop; Les Misérables, de Ladj Ly; The Whistlers, do romeno Corneliu Porumboiu; Frankie, de Ira Sachs (com Isabelle Huppert, filmado em Portugal); e Sibyl, de Justine Triet.
O cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu vai chefiar a equipa de jurados que atribuirá o palmarés no dia 25 de Maio.
A secção Un Certain Regard acena-nos entretanto com Jeanne, de Bruno Dumont, que continua a sua exploração da figura de Joana D'Arc depois de Jeanette, ou com Liberté, de Albert Serra. Fora de concurso, reencontramos as personagens de Um Homem e uma Mulher: Claude Lelouch e os seus actores, Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée, continuam a história em Les plus belles années d'une vie. Ainda Rocketman, de Dexter Fletcher, sobre Elton John, que irá a Cannes, Too Old to Die Young (dois episódios da série de Nicolas Winding Refn) ou Diego Maradona, de Asif Kapadia, documentarista que já retratou Amy Winehouse e Ayrton Senna. Em Sessões Especiais, os especialíssimos Werner Herzog (Family Romance, LL), Abel Ferrara (Tommaso) e Alain Cavalier (Être vivant et le savoir).
Uma Palma de Ouro especial vai ser entregue ao sombrio e narcísico Alain Delon, aquele que é, com o solar e je-m'en-foutiste Jean-Paul Belmondo, a maior estrela francesa viva.
O cartaz desta 72.ª edição homenageia Agnès Varda (1928-2019). É uma imagem trabalhada a partir da rodagem de La Pointe-Courte: Agosto de 1954, Agnès a vencer obstáculos para dominar o mar que filmava, em Sète, no Sul de França. “A primeira realizadora, da nouvelle vague”, “a primeira realizadora num cartaz de Cannes”. Números de Frémaux: há 13 mulheres cineastas nas várias secções da Selecção Oficial de Cannes 2019 e quatro competem para a Palma de Ouro.