A recomposição do centro-direita na Europa e em Portugal
Hoje o maior risco que o centro-direita enfrenta é o contágio da extrema-direita ou a cedência deliberada à sua agenda, como já acontece na Áustria
1. Pouca gente terá prestado a devida atenção às eleições regionais na Holanda de Março, ganhas por um novo partido que, há três anos, era apenas um think-tank e que conseguiu vencer os liberais do primeiro-ministro Mark Rutte , mesmo que num combate eleitoral que não mobiliza muita gente. Desta eleição saem os representantes na Câmara Alta do Parlamento holandês, onde Rutte perdeu a maioria. O mais importante é saber quem é o líder da nova formação politica e o que defende. Chama-se Thierry Baudet, 36 anos, vem da academia, tem um discurso dirigido às elites, duvida-se que desapareça facilmente da já de si fragmentada paisagem política holandesa. Baudet foi o fundador de um clube de ideias chamado Fórum para a Democracia, que transformou em partido, em 2016, para defender um referendo sobre um novo acordo de parceria entre a Ucrânia e a União Europeia, que ganhou (era contra), obrigando Rutte a algumas negociações suplementares em Bruxelas para acomodar o seu resultado, mesmo que não vinculativo.
O primeiro efeito Baudet foi retirar o protragonismo a Geert Wilders, o líder do partido populista que marcou a política holandesa desde há 15 anos com uma ideologia anti-imigrantes e anti-europeia. O que Wilders tinha de grotesco e de primário, Baudet tem de elaborado, ainda que o conteúdo da sua mensagem não se distancie em quase nada. Wilders perdeu muitos lugares para Baudet, tal como os Liberais. O seu programa radica na ideia de “Holanda First”, como o ponto de partida de todas as politicas – culturais, sociais e económicas. Quer menos imigração, a saída da União Europeia (um referendo à inglesa) e melhores relações com a Rússia. É mais um caso de um partido de extrema-direita que se identifica com o nacionalismo autoritário de Putin, uma nova e perigosa componente dos respectivos programas – de Salvini a Orbán, passando por Le Pen. Quer acabar com a “infiltração” da esquerda nos serviços públicos nos media e na educação. É contra a “histeria das alterações climáticas”. Tem uma visão reaccionária sobre as mulheres. “As mulheres, em geral, têm um pior desempenho em muitas ocupações e menos ambições”. Há três anos, chegou a dizer que “não querem que respeitemos o seu não, a sua resistência, querem ser dominadas.” As sondagens dão-lhe 12 % para as legislativas, o que num sistema partidário altamente fragmentado é muito.
2. A Holanda é um bom exemplo das transformações políticas que têm acontecido na Europa nos últimos vinte anos, aceleradas pelas consequências da sucessão de crises dos últimos 10.
O Partido Trabalhista, que governou com amplas maiorias anos a fio, tende para o desaparecimento. O Partido Popular, de centro-direita, não teve melhor destino, ainda que mais tardio. Os liberais têm aguentado o barco, vendo-se obrigados a coligações que, no passado, já envolveram o partido de Wilders. O único partido que floresce é os Verdes, numa versão cada vez mais moderada e europeísta, como de resto está a acontecer nos países onde a social-democracia está em crise mais profunda, como na Alemanha ou na Áustria.
A crise da social-democracia remonta ao tempo da Queda do Muro e da globalização dos mercados. Ainda teve um sobressalto no final no início deste século, com a “terceira via” de Blair, que ganhou o continente, mas que não conseguiu encontrar respostas para os efeitos negativos da globalização sobre amplos sectores das democracias desenvolvidas, que viram os seus bons empregos voar para Marrocos ou para a China. Os partidos populistas e de extrema-direira foram encontrar nesse eleitorado muita da sua massa de eleitores. A classe média das mesmas sociedades foi “espremida” pelos efeitos da ideologia neoliberal, segundo a qual criar as condições para os ricos serem mais ricos acabaria por beneficiar toda a gente. Isso não aconteceu. Mas, dessa altura, ficaram as necessárias reformas dos generosos Estados Sociais europeus, tornando-os sustentáveis e mudando um pouco a sua filosofia: na expressão dos Novos Democrats de Bill Clinton, passou “do welfare para o workfare”. Thatcher não conseguiu destruir o NHS. O Governo de May prepara-se para aumentar o salário mínimo para 2/3 do rendimento médio. Quando o criou, há vinte anos, Blair fixou-o em metade.
Hoje, na maioria das democracias europeias, a questão do peso do Estado (o mesmo que salvou os bancos) já não se coloca da mesma maneira nem ocupa o centro do debate entre esquerda e direita.
3. Finalmente, os efeitos destas profundas mutações económicas e sociais nas sociedades democráticas começou a atingir o centro-direita, até agora a alternativa que se apresentava como mais segura num tempo em que o medo passou a ter um papel importante nas escolhas dos cidadãos. O maior risco que enfrenta é a atracção pela agenda da extrema-direita ou, pelo menos, a convicção de que a utilização de algumas das suas bandeiras pode estancar a hemorragia de votos.
O fenómeno também não é de agora. Sarkozy ganhou as presidenciais de 2007 apropriando-se de algumas bandeiras da Frente Nacional, incluindo uma retórica mais anti-imigrante e anti-comunidades islâmicas, e o regresso aos valores tradicionais contra a herança “nefasta” de Maio de 68. Resultou à primeira mas já não à segunda. Foi precisa uma ampla frente política ao centro, liderada por Emmanuel Macron, para enfrentar e derrotar a extrema-direita de Marine Le Pen, em 2017 - sem qualquer cedência ideológica e política às suas ideias. Hoje, os Republicanos, herdeiros do gaullismo que governaram quase sempre na V Republica, são o partido dos que têm mais de 65 anos, reformados e inactivos, conservadores nos costumes. Os operários já imigraram para a Frente Nacional. Os executivos apostam em Macron. A classe média das cidades, mais dinâmica, também.
Na Itália o centro-direita morreu sobre os escombros do fim da Guerra Fria, renasceu com Berlusconi, numa versão populista, abriu espaço à ascensão imparável da Liga de Matteo Salvini. Na Alemanha, apesar de Merkel, a extrema-direita atingiu rapidamente um score de 14 por cento, e a CDU prepara-se para virar (um pouco) à direita, para regressar (um pouco) ao velho partido conservador, católico, masculino (é mais difícil) e tradicionalista. Aqui, o fenómeno mais surpreendente é a instalação dos Verdes como um grande partido do sistema, no centro-esquerda, ocupando progressivamente o lugar do velho SPD, aparentemente sem capacidade de renovação.
Podíamos continuar esta viagem pela Europa para chegar, talvez, a uma simples conclusão: hoje o maior risco que o centro-direita enfrenta é o contágio da extrema-direita ou a cedência deliberada à sua agenda, como já acontece na Áustria. A sua agenda não se esgota aí. Os excluídos da globalização existem em todos os países. As desigualdades cresceram para lá do que era tolerável nas democracias europeias. Na Suécia como na Espanha. As consequências das mutações tecnológicas tem de ser enfrentadas, para não criar novos excluídos. Há diferentes soluções com diferentes prioridades entre direita e esquerda. Mas não há uma diferença abissal entre centro-direita e centro-esquerda na forma como olham para as sociedades. Hoje, o dilema é sobretudo aumentar o número de pessoas que trabalham para sustentar a segurança social, aumentando o crescimento económico. E aí a resposta é só uma: são precisos mais e mais imigrantes.
4. Portugal ainda foge a este padrão por razões que se prendem com o nosso atraso económico, com as características da sociedade portuguesa, com as rupturas provocadas pela Revolução de Abril. Mas a direita e o centro-direita não fogem ao movimento de recomposição que atinge as suas congéneres europeias. Uma das razões fundamentais é endógena. Ainda não recuperou do choque da recomposição do centro-esquerda e da esquerda, que não viu chegar e que lhe tirou o monopólio dos governos de maioria parlamentar. Não pode hoje demarcar-se por via da dicotomia entre gerir bem o dinheiro dos contribuintes ou esbanjá-lo, porque quem controlou o défice foi o Governo socialista, cumprindo as regras de Bruxelas. Não há a massa suficiente de imigrantes de culturas distintas para alimentar temores na sociedade ao ponto de poderem ser aproveitados politicamente. Rio não cederá facilmente à tentação de uma direita ideológica que ainda está a travar parte dos combates de antes da crise financeira – o peso do Estado, a mudança de natureza do SNS ou do sistema de educação público, ou que aposta no crescimento económico por via da oferta, segundo o credo neo-liberal, incluindo a redução dos impostos para as empresas e a contenção salarial. Os novos grupo de reflexão liberais e conservadores não conseguem ir muito além da ideia de acabar com o “domínio” da esquerda – cultural, económico, social. Ensaiam discretamente um discurso diferente sobre a Europa, na esperança de que um dia possa ser popular. O CDS já chegou à “Europa das Nações.” É um primeiro passo. A dimensão dos valores culturais ainda tem uma dimensão tolerável, mas pode não ser sempre assim. Aliás, aqui como noutras democracias, a armadilha das chamadas políticas de identidade em que a esquerda cai com frequência e com exagero, podem ter um efeito perverso.
Quanto ao futuro, o problema maior é aquele que Jaime Gama refere na entrevista que hoje publicamos no P2. O que o Brexit mostra é que, quando o debate político se trava em torno de ideias simplistas e redutoras, por vezes os resultados são surpreendentes. É este o maior risco que atravessamos: um debate tão primário, tão simplificador, pode um dia levar-nos até onde não queríamos ir.