Não é de onde vimos. Mas para onde vamos
Incapazes de olhar o passado de forma questionadora, para melhor perceber o presente e enriquecendo-nos com hipóteses de futuro, fixamo-lo de forma romantizada.
Está tudo ligado. Passado, presente e futuro. Tal como o que fomos, somos e desejamos ser. O passado é dinâmico. Não é um fio contínuo. Há descontinuidades, recuperações ou reavaliações que permitem novos entendimentos. Tal como as identidades. Não somos, vamos sendo. No entanto, o peso do passado hoje em dia, quando encarado de forma cristalizada, é esmagador. O mesmo ocorrendo nas relações intersubjectivas com aquilo que supostamente nos define: naturalidade, país, ocupação, família, credo, género, ascendência, consumos culturais.
Essas informações são relevantes, criam contexto, uma base de diálogo. É inevitável passar por elas. Permitem reconhecer o outro. Mas possibilitam conhecê-lo mesmo? Por norma, as nossas perguntas são: como te chamas? O que fazes? De onde vens? Pode gerar-se uma identificação com o outro a partir das suas origens, percurso, sociabilidades ou interesses. Mas, para um envolvimento aprofundado, é necessário ir bem mais longe. Perceber o que pensa, o que procura, o que deseja partilhar, o que podemos fazer em conjunto. Não num sentido instrumental. Mas enquanto hipótese de criar um horizonte comum. É isso que permite edificar pontes. É relevante perceber de onde vimos, mas apenas para delinear onde queremos ir.
Infelizmente não é isso que se vislumbra hoje. O que se vê é gente a dar-se com outra gente, não a partir de uma noção comum de movimento, de gana de repartição de ideias ou de perspectivas futuras, mas agarrados a códigos predefinidos ou a respostas automáticas. Assim, não se reflecte em conjunto. Só existe reconhecimento, preservação, duplicação de comportamentos e actuação a partir deles. Tudo o que não encaixa nesse olhar codificado — sombras, contradições, impurezas — e que é precisamente aquilo que nos poderia dar a ver a realidade de uma outra forma, potencializando novas ideias e acções, é mandado borda fora.
Tudo o que sai fora das prateleiras é renegado. Somos produto de diversas recriações, mas perante o conflito, em vez da abertura, da curiosidade, da troca desinteressada, da integração de novas realidades de forma transversal e da enunciação de outros futuros, o que temos é mais moralismo, tribalismo, bairrismo, atavismo e um conservadorismo latente.
Desistimos de nos envolver a partir da vontade de fazermos juntos e de interrogar: o que te move? Onde desejas ir? O que temos é gente apenas interessada em garantir a sua posição individual no seio de determinado grupo, desistindo de transformar o mundo, satisfeitos que o seu mundo parcelar lhes aconteça, numa reprodução social em circuito fechado.
Colectivamente acontece o mesmo. Incapazes de olhar o passado de forma questionadora, para melhor perceber o presente e enriquecendo-nos com hipóteses de futuro, fixamo-lo de forma romantizada. Já só desejamos regressar aos tempos antes do irromper da crise financeira. Ou a um passado ainda mais selectivo e idealizado lá para trás. Não espanta que regressem gestos ditatoriais, autoritarismos ou proteccionismos, como se a única opção perante impasses, desigualdades ou descrença no sistema político, fosse a melancolia de uma memória petrificada.
A história é múltipla, dinâmica e heterogénea. As identidades também. Não há esquemas únicos. Mas hoje parece que o esquecemos. Era necessário voltar a acreditar na construção de um futuro. Era preciso valorizar a possibilidade de nos envolvermos a partir da capacidade de fazermos juntos. Era preciso não desistir de fazer as perguntas que podem gerar mudanças. O que desejas? Para onde queres ir? Vamos juntos?