É preciso reinventar o amor
Hoje, fica a ideia que existe pouca receptividade para o amor. E para a política a sério. A maior parte conhece o prazer, o sexo, o erotismo, tudo coisas óptimas, mas que são outra coisa.
Andava a ler a obra Les Nouvelles Lois de l’amour, da socióloga Marie Bergström, que resume anos de investigação acerca do impacto de redes sociais e aplicações de encontros nas relações humanas, quando rebentou a polémica dos novos programas das televisões (Quem Quer Casar com o Meu Filho? e Quem Quer Namorar com o Agricultor?). Não vi. Mas as reacções apontam para um reforço de estereótipos femininos — o que implica também a presença de estereótipos masculinos — e para a criação de um cenário desajustado com o nosso tempo. Um período em que seriam os pais a decidir o futuro amoroso dos seus filhos.
Parece que as televisões estão preocupadas com quem não consegue encontrar parceiro, o que não deixa de ser paradoxal numa época em que parece ser na Internet que tudo acontece. Até os encontros amorosos. A esse propósito, há semanas, assisti por acaso a uma conversa de café significativa. A neta tentava explicar à avó o que eram aplicações de encontros tipo Tinder, e às tantas a senhora, exasperada, largou uma exclamação audível: “Ouve lá! Mas andou a minha geração nos anos 60 a lutar pela liberdade de sermos nós a escolher os parceiros, e agora vocês deixam que sejam essas coisas, esses tais de algoritmos, a decidir com quem se encontram? Já não existe lugar para a surpresa?”
É isso. Está tudo codificado. Arrumado. Mercantilizado. Como no supermercado. Nada de equívocos. A progressiva ausência de estigmas em relação a essas aplicações ou a procura activa do amor pode ser óptima, correspondendo a expectativas diversas — da aventura ao desejo de acasalar. Mas ainda não é a tecnologia que nos vai trazer diversidade social. A realeza já não casa só com a realeza, mas a tendência mantém-se, tal como nós, os plebeus, permanecemos nos círculos pré-definidos. Antes encontrávamo-nos numa festa de amigos, no trabalho, à noite ou na escola. Agora é na Internet com pessoas das mesmas apetências, gostos e sociabilidades, permanecendo num lugar de segurança.
Nisso estou com o filósofo Alain Badiou, que defende a reinvenção do amor. E a reformulação da política. Se o amor se refere a essa parte da humanidade que não está entregue à concorrência, mas à confiança no outro, isso constituiu a prova de que a competitividade, a violência ou a rivalidade não têm de ser a lei do mundo. O amor é uma construção singular e a política uma aventura colectiva, não devem confundir-se, embora, na sua essência, proponham mudança, transformação, criação.
No amor existem obstáculos. Na política antagonistas. Saber identificá-los é um desafio. No amor duas pessoas irremediavelmente diferentes serão capazes de assumir juntas essa disparidade transformando-a em energia criadora? Se o conseguirem romperão com o estabelecido e criarão algo novo. O mesmo acontecerá, de modo colectivo, na política, quando os indivíduos resolvem reunir-se, organizar-se, pensar-se e decidir.
“Resolver os problemas existenciais do amor é a grande alegria da vida”, escreve às tantas Alain Badiou em o Elogio do Amor. Não se poderia dizer o mesmo acerca dos dilemas com que se confronta a política? Em ambos os casos é preciso saber comunicar com o outro, não receando zonas de conflito, não recuando perante elas, reconhecer a existência da alteridade, encontrando disponibilidade para passar por diversos estádios relacionais.
Nesse sentido, hoje, fica a ideia que existe pouca receptividade para o amor. E para a política a sério. A maior parte conhece o prazer, o sexo, o erotismo, tudo coisas óptimas, mas que são outra coisa. Se nos limitamos ao prazer, ficamo-nos por uma dimensão narcísica. Não nos conectamos com o outro. Retiramos prazer dele apenas. A alegria do amor é outra coisa. Implica não recear o encontro excepcional. E a construção duradoura.