Se houvesse em Portugal estudos de iconologia e cenografia políticas, uma reportagem sobre Marcelo Rebelo de Sousa, intitulada O Solitário no Meio da Gente publicada no Expresso, na semana passada (texto de Ângela Silva, fotos de Tiago Miranda) forneceria matéria abundante e eloquente para análise. O Presidente, como sabemos, tornou-se objecto de uma mitologia, de um sentido que se torna uma forma e um processo de significação que passaram a ser vistos como “naturais” (foi assim que Roland Barthes definiu a sua noção de mitologia).
E isso deu-se por efeito dos media, como todas as mitologias, a partir do momento em que uma parte importante do seu discurso e dos seus gestos públicos, em ocasiões que suscitam gestos mais enfáticos, se tornou apta a ser apropriada e difundida como um modo de significação despolitizada. A distribuição de afectos situa-se nessa esfera da despolitização. Esta mitologia presidencial tem um carácter muito profano, suscita o sentimento de familiaridade e proximidade. Não se confunde, por isso, com a aura nem com o carisma.
Ora, a reportagem que referi consiste precisamente em conferir uma aura ao Presidente de que ele se encontra destituído. Devemos perceber que esta ausência, em si mesma, não pode ser entendida como uma falta e uma negatividade. Uma questão que hoje se coloca é se é possível um chefe com aura e carisma numa democracia. Como é que nessa reportagem se atribui ao Presidente um dom aurático? Antes de mais, através de uma iconografia que o subtrai à mundanidade: fotografias a preto e branco (uma maneira de o transportar para fora do nosso tempo), onde ele está sempre sozinho.
A cenografia da solidão é muito importante, é nesse aspecto que incide toda a reportagem, como indica o título. À mitologia do Presidente mundano, popular, a cuja imagem e presença todos têm acesso, opõe-se aqui o Presidente carregado de aura e carisma, colocado a uma enigmática distância. Este sim, o verdadeiro, diz-nos implicitamente a reportagem. Na iconologia política, uma representação muito comum da aura é a fotografia do chefe a caminhar isolado, num caminho que é só dele. Às vezes de costas, afastando-se.
Há uma célebre fotografia de Mitterrand que corresponde na perfeição a este modelo. E Macron, que reivindica de maneira patética a aura presidencial da República, na noite da sua eleição escolheu esta cenografia para a sua entronização: caminhou lentamente e só, como uma silhueta, em direcção à pirâmide do Louvre, evocando assim um momento determinante da História, ao som do Hino da Alegria, antes de subir à tribuna.
Um Presidente resgatado à usura de uma constante presença mediática é a imagem que dele se constrói nesta reportagem. Não se deve entender essa imagem segundo os critérios do verdadeiro e do falso porque eles não são pertinentes para o exercício de cenarização de um chefe político, já que estamos no domínio das representações.
Mas é importante percebermos que esta reportagem ilustra na perfeição um aspecto da teoria do carisma (e carisma não é o mesmo que aura, embora haja entre ambos pontos de intersecção), tal como ela foi formulada por Max Weber: para percebermos como o carisma é produzido devemos olhar não para quem o detém, mas para aqueles que lhe concedem a autoridade carismática. Para Weber, o carisma é uma qualidade que exige ser vista e percebida, é como uma revelação que só se manifesta aos crentes, só por eles pode ser reconhecida.
Em última análise, o texto e as fotografias, no Expresso, sobre o Presidente “solitário, no meio da gente” não tem a nada de reportagem jornalística: é uma manifestação de culto por parte de crentes que se dirigem a outros crentes. Para os não-crentes, como eu estou a ser (mais não seja por uma questão metodológica: a minha análise só pode vir de um lugar que não é o da fé, embora ela não contenha nenhum juízo político ou moral sobre o Presidente), a dita reportagem é apenas uma ilustração do modo como se outorga carisma ao chefe político e da eloquência patética, na expressão iconográfica e na retórica verbal, requerida por esse fenómeno a que Max Weber chamou “dominação carismática”.