“O Presidente nunca marcou um golo na própria baliza”
Como Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a preencher os espaços vazios dos seus poderes constitucionais. Mas “nunca marcou um golo na própria baliza”, na opinião do presidente do PS, Carlos César. O livro Marcelo – Presidente todos os dias (que será lançado na quinta-feira) analisa os primeiros três anos de mandato, que se assinalam no próximo sábado.
Cumplicidade e vigilância
“O Presidente da República é o Presidente de todos. Sem promessas fáceis, ou programas que se sabe não pode cumprir, mas com determinação constante. Assumindo, em plenitude, os seus poderes e deveres. Sem querer ser mais do que a Constituição permite. Sem aceitar ser menos do que a Constituição impõe.”
Logo no discurso de tomada de posse, a 9 de março de 2016, o primeiro constitucionalista a ser eleito Presidente da República em democracia avisa que vai preencher os espaços vazios dos seus poderes constitucionais, acentuando o papel do chefe de Estado no semipresidencialismo luso. Com a legitimidade que o povo lhe dá nas urnas e nas ruas a troco de beijos e selfies, mas também de abraços na dor, Marcelo Rebelo de Sousa compromete-se perante a Assembleia da República com a Constituição e com a nação. Sobre a relação com o Governo, não se ouve uma palavra, mas a sua primeira intervenção é um verdadeiro programa de ação. Puxa para o centro da vida política o povo português, garante “solidariedade institucional indefetível” ao Parlamento, assegura que vai ser um “Presidente de todos sem exceção”, exercendo todos os poderes que a Constituição da República Portuguesa lhe confere — um chão que conhece bem. Tal como Mário Soares, Marcelo foi deputado da Assembleia que escreveu a Constituição democrática, mas tem a vantagem de ser um dos mais conceituados professores universitários de Direito Constitucional. É este currículo que lhe permitirá, de ali em diante, ir esticando os seus poderes, através de uma interpretação mais lata que se faz ação. A conjuntura é favorável. Por baixo da tribuna da presidência da Sala de Sessões, onde decorre a cerimónia, o Governo minoritário do PS alinha-se protocolarmente. Ao centro, o primeiro-ministro António Costa parece satisfeito. Está preparado para construir uma certa cumplicidade com este Presidente, que foi primeiro seu professor e depois adversário político, e com quem a partir dali há de viver também alguns momentos de tensão, que ambos tentarão sempre dissimular, porque sabem que a guerrilha institucional não favorece nenhuma das partes nem o país. Na bancada do maior partido da oposição está um circunspecto Pedro Passos Coelho, o presidente do PSD que nunca quis que fosse aquele o Presidente. Finda a cerimónia, enquanto todos seguem para o Palácio de Belém, onde há um almoço oferecido por Marcelo Rebelo de Sousa, Passos Coelho sai apressadamente para apanhar um voo para Londres, onde vai proferir uma conferência na Oxford Union — boa desculpa para não celebrar o dia. Naquela manhã, ficam esboçados os novos lugares dos principais atores políticos.
Marcelo chega ao mais alto cargo da nação num tempo muito carregado. De Cavaco Silva herda uma Presidência da República demasiado protocolar e algo impotente na construção de pontes. Na Assembleia da República ecoa um debate político excessivamente crispado, protagonizado por uma direita que deseja regressar depressa à governação do país e por uma esquerda que contra-ataca em permanência essa aspiração. O país político está às avessas. Mas são as finanças públicas que mais preocupam o novo Presidente: o sistema bancário não está ainda estabilizado, o défice parece não querer descer, as sanções europeias são uma ameaça real e a economia não dá sinais de crescimento. Portugal, que está a sair de um programa de assistência económica e financeira, evidencia uma colossal dificuldade em retomar uma trajetória de recuperação. Por todo o país, a descrença num futuro mais promissor é generalizada. Há muito trabalho a fazer.
Marcelo sabe que não há tempo a perder. Logo nos primeiros dias do seu mandato, abre o Palácio de Belém ao povo, desfaz protocolos bolorentos, distribui afetos com quem se cruza, fala com otimismo de Portugal e dos portugueses e, nas deslocações que faz pelo país e pelo estrangeiro, garante estabilidade à nova solução governativa. Passado um ano, há de confessar à edição de 12 de fevereiro do diário El País que o Governo minoritário presidido por António Costa “superou as expectativas”. A 20 de fevereiro de 2017, data em que a TVI comemora o seu aniversário, vai à estação privada para uma entrevista em estúdio e volta a constatar o sucesso do executivo, colocando-se do lado desses resultados:
“Quando entrei, não pensei que [o Governo PS, com apoio do PCP, do BE e do PEV] conseguisse cumprir os compromissos internacionais como tem cumprido e que cumprisse a trajetória do défice. Não pensava que fosse tão resistente quanto se mostrou ao longo do ano.”
À direita, o então presidente do PSD e ex-primeiro-ministro olha incrédulo para esta postura do Presidente da República, mas Marcelo não está preocupado com as perceções de Pedro Passos Coelho, cujo regresso ao Governo nunca patrocinará. O inquilino de São Bento é António Costa e a permanência de Passos à frente do PSD constitui a mais segura garantia para a estabilidade de coligação de esquerda que viabiliza o Governo socialista.
Marcelo e Costa precisam um do outro para se acomodarem aos lugares que ocupam, partilham um modo semelhante de pensar tática e estrategicamente a política, são argutos nas pontes político-partidárias e empáticos no contacto com os cidadãos. Marcelo aproxima Costa do centro político partidário, um espaço algo fugidio devido ao apoio parlamentar da esquerda, dando-lhe uma almofada de conforto em momentos críticos. Costa possibilita que, num contexto de polarização dos hemisférios esquerda-direita, Marcelo vá falando ao eleitorado de esquerda, permitindo-lhe capitalizar apoio popular neste quadrante, algo que lhe é mais do que necessário para atingir um desejo, nunca assumido publicamente: ser o Presidente eleito com maior número de votos de sempre. No primeiro aniversário deste mandato, o já falecido João Semedo afirma ao Diário de Notícias que “Marcelo se relaciona com o Governo como se ele fosse a metade direita e o Governo a metade esquerda de um Bloco Central de dois órgãos de soberania (...). Procura evitar a esquerdização da política da maioria”.
Falando com frequência dos seus poderes constitucionais, Marcelo sempre negou qualquer pretensão de presidencializar o regime, argumentando que a sua intervenção é, acima de tudo, ditada pela conjuntura onde se move o seu mandato, ou seja, um Governo com uma solução inédita que desvia o centro do poder para a Assembleia da República. A jornalista da Antena 1 Natália Carvalho assinala um facto curioso: “Quando fala dos seus poderes, [Marcelo Rebelo de Sousa] adota um registo majestático. Diz ‘o Presidente’. Não diz ‘eu’.” Conhecendo muito bem este Presidente da República (PR), que acompanha em permanência, a repórter garante-nos que ele tem uma “leitura proativa” da Constituição:
“É um constitucionalista. Não recebe lições de Constituição. Se, por um lado, não suportaria violar a Lei Fundamental, também não suportaria não exercer o poder. E exerce.”
Nos primeiros cumprimentos de Natal do executivo em Belém, a 22 de dezembro de 2016, o PR foi inequívoco acerca do entendimento da sua função em relação ao Governo:
“A Constituição é muito clara e para juristas é claríssima e para um professor de Direito Constitucional ainda mais clara é: o Presidente deve proporcionar ao Governo todas as condições para governar (...). Portanto, o PR não teve aqui nem uma cooperação meramente tática nem meramente estratégica. Teve uma cooperação constitucional.”
Para o PS, essa atuação é feita quase a pisar a fronteira dos poderes presidenciais. É Carlos César, o presidente e líder parlamentar do PS, quem o diz:
“O PR trabalha muito na fronteira, nos limites, mas há, por analogia, uma situação muito parecida no futebol: só é golo quando a bola passa completamente a linha, mas, mesmo que ainda esteja um pouco só sobre a linha, não é golo. O Presidente nunca marcou um golo na própria baliza.”
Marcelo Rebelo de Sousa entende que, enquanto Presidente, deve garantir estabilidade à solução governativa inédita e, por isso, funciona quase como sendo parte dela. Ele sabe que essa opção também vai reforçando os seus poderes. Na verdade, o semipresidencialismo luso, com poderes definidos na Constituição, mas bastante flexíveis, agrada ao constituinte e constitucionalista Marcelo, que sacode as críticas por exacerbar as suas funções. Um exercício de memória simples permite encontrar nos seus antecessores momentos mais interventivos e disruptivos em relação ao Governo logo no primeiro mandato. Marcelo ainda não passou a fase da doçura e promete manter-se assim. Garante reiteradamente que não alterará o seu estilo. Por isso, quando tem algum reparo a fazer, prefere fazê-lo no site, na promulgação das leis, ou extravasá-lo pela positiva, deixando que isso se perceba nos seus discursos. Reserva as palavras duras e claras para momentos-chave, como após os incêndios de outubro de 2017 ou o assalto a Tancos. Mas já lá vamos.
Os consensos e o fantasma do Bloco Central
O suporte que vai sendo dado ao Governo apoiado pelas esquerdas é, no entanto, contrabalançado pelo incentivo à procura de consensos nacionais em matérias estruturais. Até aqui, nada de novo. Como resume Rui Rio, “um Presidente da República tem sempre alguma preocupação com os consensos possíveis, isso é inerente à função”. Mas falar em consensos pressupõe, como o chefe de Estado bem sabe, o encontro de vontades entre PS e PSD, os partidos que historicamente asseguram, alternadamente, o governo do país em democracia. Ao fazê-lo, Marcelo Rebelo de Sousa está a tentar puxar o PS e o PSD para o centro, o seu lugar de eleição, contrariando a polarização que levou os sociais-democratas de Passos Coelho demasiado para a direita e os socialistas da “geringonça” a abrir para a esquerda. E onde gostaria de ver essa convergência? O chefe de Estado expressa-o claramente no primeiro discurso das comemorações do 25 de Abril do seu mandato:
“O estimulante pluralismo político não impede consensos setoriais de regime. Alguns dos quais não precisam sequer de formalização para se irem afirmando diariamente. Como na Saúde, por exemplo, onde o que aproxima é mais do que aquilo que afasta. Mas esse pode ser um primeiro passo apenas para consensos noutros domínios, da vitalização do sistema político à estabilidade do sistema financeiro, ao sistema de Justiça e à Segurança Social. Possivelmente, com passos lentos, mas profícuos.”
Nesta altura, o Presidente sabe que o clima criado com a formação do Governo de António Costa e a crispação entre os dois maiores partidos parlamentares tornarão quase impossível a celebração deste tipo de acordos de regime durante todo o tempo que Pedro Passos Coelho se mantiver na liderança do PSD. É também por isso que, quando pede um pacto para a justiça, logo na abertura do ano judicial de 2016, em setembro, se dirige primeiro aos agentes do setor, desafiando-os a sentarem-se à mesa das negociações para fazerem um diagnóstico e procurarem pontos de convergência, e somente depois levarem essas propostas à discussão no Parlamento.
Só quando a liderança do PSD se altera, em fevereiro de 2018, é que se abre caminho para a celebração de acordos. Que, por outro lado, têm de ser compaginados com a construção da “alternativa forte” que o Presidente sempre pediu e continua a pedir. Na primeira conversa entre Marcelo Rebelo de Sousa e o novo líder do PSD logo a seguir ao congresso dos sociais-democratas, os dois temas — consensos e alternativa — estiveram presentes. Assim interpretou Rui Rio a mensagem presidencial: “Que os partidos sejam capazes de dialogar sobre diferentes áreas, mas que desse diálogo também nasçam diferenças saudáveis, uma oposição saudável.” É com esta determinação que Rui Rio e António Costa assinam, em abril de 2018 (três meses depois da primeira reunião), dois acordos de regime, um sobre descentralização e outro sobre o quadro plurianual de fundos estruturais para a próxima década, o Portugal 2030. Para Carlos César, estes acordos também se devem ao Presidente:
“O PR teve uma influência sempre positiva. Desde logo porque lhe cabe, para usar a expressão do prof. Adriano Moreira, o poder da palavra. Como ele sempre apelou aos consensos em matérias estruturantes, [a concretização dos acordos] beneficiou da sua palavra e, em simultâneo, da vontade, que estava expressa no programa do Governo e faz parte do núcleo patrimonial do pensamento do líder do PSD. Portanto, [o PR] teve, sem dúvida, um efeito motor.”
Já os partidos à esquerda olharam para estes acordos como uma aproximação premonitória para a legislatura seguinte. O fantasma do Bloco Central estava de volta. E Marcelo nunca gostou dessa ideia. Terá em 2019 um aliado para a contrariar? Antes de o ano eleitoral de 2019 arrancar em pleno, são os próprios líderes do PS e do PSD que afastam o espectro do regresso de um Governo como o de 1983-85, liderado por Mário Soares. Aqui ficam as declarações, em discurso direto.
Rui Rio:
“Uma coisa são acordos entre partidos, com mais projeção no Parlamento e não necessariamente no Governo. (…) Outra coisa é estarmos os dois partidos no Governo, como estivemos uma vez, ou como na Alemanha estiveram diversas vezes. A dicotomia entre interesse nacional e interesse partidário não pode ser esquecida, mas temos de considerar sempre o interesse nacional à frente — e o interesse nacional são esses entendimentos. Estarmos no Governo juntos, isso só numa situação absolutamente limite. Porque os imperativos nacionais não são resolvidos em sede de Governo, mas sim em sede de entendimentos mais de ordem parlamentar.”
Carlos César:
“Parece um entendimento mais ou menos consensual que uma coligação, uma confluência que confunda os partidos dominantes à direita e à esquerda num único Governo gera a ascensão de extremismos, é essa a prova que está a ser feita um pouco por todo o lado, como na Alemanha. Nas eleições alemãs, quer Merkel quer Schulz juravam a pés juntos que não fariam uma coligação, o problema é que não havia outra possibilidade de formação de Governo. Era uma opção entre o vazio e o Governo. Ninguém está livre disso, mas é importante que se considere isso como solução de último recurso que terá maus resultados do ponto de vista da ascensão dos extremos e dos radicalismos. Porque é a única alternativa que resta depois, quando já não há mais centro.”
A alusão à Alemanha é a mesma, as ideias são semelhantes, mas a intensidade da convicção sobre a formação conjunta de Governo é diferente. Afinal, 2019 é um presente por desembrulhar…
A centralidade do Parlamento
No primeiro ano e meio de mandato presidencial, “os astros estiveram bem alinhados em Portugal”, como disse o neurocientista António Damásio, conselheiro de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa, na edição do Público de 21 de janeiro de 2018. O PS de António Costa beneficiou da melhor conjuntura que poderia ter desejado: um amparo parlamentar à esquerda para derrubar o muro de austeridade que asfixiava o país; um apoio esporádico da direita na aprovação de medidas exigidas por Bruxelas; um crescimento económico sustentado no consumo, no turismo e na conjuntura mundial; e um Presidente da República empenhado em fazer história com base no sucesso do país — e, para isso, do Governo. No Parlamento, onde quase tudo se decide, as estatísticas mostram que o nível de concordância entre os partidos na aprovação de diplomas é muito maior do que parece pelos acesos debates parlamentares. Isso mesmo é comprovável através do hemiciclo.pt, um site independente que faz a análise estatística e o escrutínio dos trabalhos dos deputados e da Assembleia da República. Durante a liderança de António Costa (desde 22 de novembro de 2014), o PS convergiu com todos os outros partidos parlamentares em mais de metade das quase 5000 votações efetuadas até ao Orçamento do Estado para 2019, sendo o partido que mais vota ao lado das restantes bancadas, tanto da esquerda como da direita. Durante este Governo, suportado pelas posições conjuntas assinadas com BE, PCP e PEV, Costa soube procurar apoios ora à esquerda ora à direita para se conseguir equilibrar ao centro — mais à esquerda em matérias sociais e económicas, mais à direita em assuntos financeiros. Em Belém, Marcelo Rebelo de Sousa segue ao pormenor a dinâmica política e parlamentar. Desde o início, implementou um calendário regular de audições com os partidos e os parceiros sociais, de reuniões do Conselho de Estado e do Conselho Superior da Defesa Nacional, que lhe permite ir acompanhando o pulsar das sensibilidades em tempo (quase) real. A estes encontros, que se realizam três ou quatro vezes por ano cada um, juntam-se outros momentos de distensão e convívio com os mais variados agentes políticos, em momentos festivos e comemorações várias, efemérides, receções de Estado, deslocações pelo país e viagens ao estrangeiro. Por todos os corredores e lóbis, circula a informação vital do regime. Belém torna-se o coração deste sistema sanguíneo, por onde tudo passa e de onde todos saem também alimentados de informação. Este Presidente omnipresente sabe quase tudo o que se passa nos partidos, não apenas pelo que lhe é dito pelos respetivos líderes, mas também pelos amigos e conhecidos que semeou por todo o lado ao longo da vida. E que continua a semear.
Pouco depois de ter sido eleito, aquele que já sabia que queria ser o Presidente dos afetos foi ao Palácio de São Bento reunir-se com o titular do segundo cargo mais alto do Estado, o presidente da Assembleia da República. Aos poucos, fechava as arestas da sua pirâmide de influência, assente numa base popular e erguida até ao topo da hierarquia nacional. Eduardo Ferro Rodrigues e Marcelo Rebelo de Sousa conheciam-se há muito tempo, e nem sempre tinha sido uma relação fácil, sobretudo quando o primeiro liderava o PS e o segundo as audiências televisivas de domingo à noite. Mas isso são águas passadas, como assume Ferro Rodrigues, na conversa que com ele mantivemos:
“Percebi logo que as coisas iam correr muito bem, porque a postura perante a nova situação política era completamente diferente da do Presidente da República anterior. (…) Do ponto de vista pessoal, acho que ganhei um amigo nestes três anos, porque efetivamente as preocupações dele, mesmo quando tive uma fase mais difícil do ponto de vista da saúde, foram muito claras, interessantes e amigas. Não houve nenhum dia em que eu estivesse hospitalizado em que [Marcelo] não me tivesse ido ver e oferecer qualquer coisa: um livro, um gelado… E não era para as televisões saberem nem para fazer número. É porque ele é assim.”
Marcelo Rebelo de Sousa adora os gelados da Santini e também adora oferecê-los. Uma vez mandou um assessor ligar à mulher de Ferro Rodrigues para saber qual o sabor de que ele mais gostava, para lhe poder fazer uma surpresa no hospital. E fez. Mas o episódio mais divertido que Ferro recorda foi o dia da sua segunda intervenção cirúrgica:
“Eu estava na sala do recobro e esperava o enfermeiro para me levar para o quarto. Era dia do Sporting-Benfica, que era mesmo ali em frente no Estádio de Alvalade, e eu queria sair rapidamente do recobro para não ouvir o barulho. E foi ele próprio [Marcelo] a transportar a maca pelos corredores, em alta velocidade, mas conduzindo perfeitamente bem, com os outros enfermeiros e doentes completamente perplexos com aquela cena fantástica.”
Para Ferro Rodrigues, a relação institucional do Presidente com a Assembleia da República tem sido “exemplar”: “A fluidez da comunicação é total, entre os gabinetes e entre mim próprio e o Presidente quando é necessário.”
Ainda que oriundos de maiorias alternativas, a relação institucional e pessoal entre ambos é boa, sendo frequentes os encontros para lá dos atos protocolares. Já foram juntos ver a seleção nacional de futebol, encontraram-se na homenagem a Zé Pedro dos Xutos e Pontapés e, longe do olhar mediático, também jantam uma ou outra vez, acompanhados das respetivas companheiras. Gestos que certamente dão outra respiração a uma democracia sob ameaças pouco visíveis, mas reais. A amizade entre os dois parece ser para sempre. Sendo inegáveis neste tempo os momentos de solidariedade institucional (como, por exemplo, na “crise dos deputados fantasmas”), isso não significa que cada um deles passe um cheque em branco a outro... Até porque falamos aqui de dois homens que sempre respiraram a política em lados opostos.
A vida parlamentar não reserva, pois, grandes surpresas ao chefe de Estado, que permanentemente antecipa as questões e não tem problema em pegar no telefone e ligar para quem mais bem colocado está no tabuleiro do xadrez político em cada momento. Rui Rio, Carlos César e Assunção Cristas confirmam que falam regularmente com Marcelo Rebelo de Sousa, e embora Catarina Martins e Jerónimo de Sousa tenham preferido não ser entrevistados para este trabalho, sabemos que também o Bloco de Esquerda e o PCP têm pontos de contacto com Belém. A intensidade e profundidade é que podem variar. O CDS, em particular, mantém o Presidente da República a par das suas iniciativas, como nos contou Assunção Cristas:
“Temos feito este trabalho de pacotes legislativos, com agendamentos potestativos — natalidade, envelhecimento ativo, interior — e eu vou dando nota disso ao Presidente. Quando o Presidente fez o desafio aos partidos sobre o pacto da Justiça, nós já tínhamos um grupo a trabalhar em questões mais infraconstitucionais na área da Justiça e dei-lhe nota de que isso estava muito avançado. Depois do apelo do Presidente, criámos um grupo liderado pelo professor Rui Medeiros para olhar também para as questões de arquitetura do próprio sistema, que podem implicar uma revisão constitucional. O Presidente sabe quais são as prioridades do CDS, quais as preocupações e até qual é o ritmo, porque eu gosto de trabalhar com um horizonte significativo e, por isso, o Presidente já sabe o que nós vamos apresentar de estruturante até ao final deste ano [2018].”
Esta proximidade aos partidos é vista como positiva pelo presidente e líder parlamentar do PS, Carlos César:
“Há um contacto muito próximo e muito assíduo com os partidos e com o Governo. (…). É frequente, por exemplo, os partidos parlamentares serem contactados, direta ou indiretamente, pelo PR em função das matérias que estejam pendentes, para ter informação sobre elas ou até para se conhecer a opinião do PR. Isso conforta a decisão que é tomada, porque é também um elemento de informação, uma vez que está reservado ao PR o direito de veto. (…) Também nisso [no uso do veto político] o Presidente tem sido prudente. Eu acho que se deve em muito à proximidade que ele tem com a atividade legislativa, com o Governo e com os partidos. E quando veta deixa sempre uma porta [que permite a acomodação dos reparos]. É curioso que até hoje não tenha havido uma reconfirmação [de leis vetadas], porque os vetos são feitos com o cuidado de proteger as iniciativas e de proporcionar alterações, aliás, ao contrário do anterior Presidente.”
As autoras do livro Marcelo – Presidente todos os dias seguem o novo acordo ortográfico