O que se esconde atrás da porta da Casa dos Prazeres?
José Avillez criou uma nova parceria, desta vez para abrir, no Chiado, dois espaços asiáticos, um balcão de sopas e um restaurante. As cartas do Rei da China e da Casa dos Prazeres são assinadas por Estanis Carenzo, um argentino fascinado pela Ásia - e agora também por Lisboa.
Ter um bar que serve sopas “é um projecto só possível em Lisboa”, garante Estanis Carenzo, o chef argentino que se apaixonou primeiro pela cozinha asiática e depois por Portugal, e que, em parceria com José Avillez, abre agora no Chiado dois espaços: o Rei da China (a partir de hoje em soft opening) e a Casa dos Prazeres (com abertura prevista para a próxima semana).
“O contacto português com a Ásia é tão antigo, há costumes que estão diluídos com tanta naturalidade que, como os azulejos, já fazem parte da identidade do país”, nota, conversando com a Fugas ao balcão do bar da Casa dos Prazeres, um ambiente de clube nocturno da Xangai dos anos de 1940 – que, como se espera de um lugar com um nome destes, fica nas traseiras do Rei da China, com entrada por uma porta discreta.
Não lhe interessa, diz, “fazer uma revisão histórica das receitas portuguesas” e da sua ligação com o Oriente. “Estou interessado na Lisboa e no Portugal de agora. [Pensar] o império é interessante mas seria apenas um exercício de estudo.” Voltando às sopas, “não há muitos países no ocidente europeu que adorem sopas, para podermos fazer uma experiência como esta” e Estanis está convencido de que “se abrisse um bar de sopas na Argentina, duraria três meses – é interessante mas não é real e eu gosto de me relacionar com a realidade do lugar”.
É a realidade do lugar, aliás, que faz com que, sendo argentino, se tenha dedicado à gastronomia asiática. “O primeiro contacto que tive com ela foi de maneira muito natural, em Buenos Aires, onde passei parte da minha infância e onde vi crescer o bairro chino-taiwanês. Tornou-se parte da minha normalidade e, por isso, não é uma cozinha exótica.” Formou-se mais tarde na cozinha clássica francesa e viveu em Paris e Nova Iorque, em ambos os casos em bairros asiáticos, um vietnamita e outro chinês, respectivamente.
Estas experiências possibilitam-lhe hoje um olhar com grande liberdade para a gastronomia, sem se deter demasiado em fronteiras ou limites. “Não sei se temos técnicas assim tão diferentes, se há uma grande diferença entre uma sopa de borrego e um assam laksa de borrego em Singapura.”
Pode, assim, usar uma mesma técnica e mudar-lhe os ingredientes base ou os condimentos (o “azeite” da casa tem uma base de óleo, malagueta e presunto de porco preto em vez do tradicional camarão seco, que dá a proteína e o umami). “Estamos neste momento a trabalhar um caril vinha d’alhos, o momento anterior ao aparecimento do vindaloo [prato indiano que tem origem na carne em vinha d’alhos]. Tomamos a técnica base da Madeira, a carne vem de uma maceração no vinagre e tudo termina num caril forte, azedo, seco.”
Claro que a Ásia é um mundo e qualquer olhar ocidental acaba por ser redutor – tal como é redutor “chamar dim sum a todos os raviolli” ou achar que a malagueta vale apenas por ser picante, quando Estanis a vê como “um vegetal”. Mas o mesmo é verdade do outro lado. “Se na Ásia falarem de cozinha ocidental, misturam coisas que para nós são evidentemente diferentes, como um prato italiano e um espanhol. Nós cometemos o mesmo erro quando falamos da culinária chinesa, por exemplo”, que é muito diferente mesmo que pensemos apenas nas várias regiões da China.
A isto junta-se o facto de nada estar parado, estanque. “A Ásia é uma zona viva, está a mudar todo o tempo, e nós queremos acompanhar isso, estamos a experimentar com produtos, técnicas, situações”. Estanis morou ano e meio no Japão – “o que mais gosto no Japão é a precisão de trabalhar com algo até à perfeição, uma perfeição que é dada pela repetição dos movimentos”, diz – e viajou por toda a Ásia.
Nesse périplo, foi-se apercebendo de ligações: o que fazia um pão de trigo numa zona tropical? Como tinha chegado ali? “Nessa altura nem sabia bem diferenciar a origem de um prato português ou espanhol.” Mais tarde, em 2011, quando conheceu José Avillez, começou a aprofundar estas histórias e, depois de ter aberto o seu restaurante, o Sudestrada, em Buenos Aires e, em 2003, também em Madrid, decidiu agora instalar-se em Lisboa com dois novos projectos.
O Rei da China é um espaço pequeno, para refeições rápidas, com um balcão e serviço de take-away. A estrela são as sopas (8,50€ e 9€): um pho bo (caldo vietnamita), um ramen de porco e um dandan mian (vegetariano). Mas há também petiscos (de 1,80€ a 2,50€), das chamuças de caril grão-de-bico com chutney de tamarindo aos bolinhos de bacalhau à tailandesa, passando pelas batatas fritas do Oriente ou a salada japonesa de grelos. E os “infiltrados” (entre os 5,80€ e os 9,50€): banh mi carcaça (sanduíche vietnamita de alcatara), o banh mi do budista e o frango com arroz à macaense.
O verdadeiro mergulho na complexidade da cozinha asiática (e da forma particular como Estanis Carenzo a interpreta) é feito, contudo, na Casa dos Prazeres. Aí, depois de um cocktail (também de cruzamento entre a Ásia e Portugal e um destaque especial para a oferta dos sakés) no bar podemos subir uma escada, por entre medusas ondulantes, e provar pequenos pratos (entre os 5 e os 10€), como a sopa azeda de nabo assado na brasa, camarão fresco com manjericão tailandês e sumo de berbigão do Norte; beringela assada na brasa com bacalhau fumado, citronela, shiso japonês e funcho frito; pastel de nabo de Macau com morcela assada e molho de malagueta com rum da Madeira; ou satay de borrego na brasa com raita de iogurte de ovelha, mel de urze e sambal-bacalhau.
Há também pratos grandes (dos 12 aos 15€), como o caril de porco em vinha d’alhos, com vinho da Madeira, tamarindo e cenouras assadas, ou os filetes de peixe ao vapor, com cogumelos frescos e manteiga tostada de feijão fermentado. Para quem quiser ficar com uma ideia mais completa do universo gastronómico desta Casa dos Prazeres, o chef sugere um menu (65€ para duas pessoas) com 10 pratos, do couvert à sobremesa.