O “primeiro fascismo” nasceu há 100 anos
Há cem anos, no dia 23 de Março, Mussolini fundou, com um programa revolucionário, os Fasci di Combattimento. Dois anos depois, darão lugar ao Partido Fascista. O futuro Duce, que foi líder da ala mais radical do Partido Socialista, marcou a História da Europa entre as duas guerras e teve uma projecção quase universal.
Quando e onde nasceu o fascismo? Observa o historiador Emilio Gentile que a resposta parece óbvia: o fascismo nasce há exactamente 100 anos, no dia 23 de Março de 1919, com a fundação dos Fasci di Combattimento (à letra, Feixes de Combate), promovida por Benito Mussolini durante uma assembleia realizada no salão da Aliança Industrial e Comercial, no n.º 9 da Praça San Sepolcro, em Milão. Mas a questão não é assim tão simples, adverte Gentile.
Autores como o israelita Zeev Sternhell deslocam o nascimento da ideologia fascista para a vaga anti-racionalista da viragem do século, na França e na Itália: estaria já patente no Manifesto Futurista, de Marinetti, de 1909. Há outras datas, como a da fundação Partido Nacional Fascista (PNF), em 1921. O fenómeno de 1919 é diferente do de 1921, o que suscita a Gentile outra questão: que fascismo faz hoje cem anos?
Como definir o fascismo? Responde Gentile: “O fascismo é um fenómeno político moderno, nacionalista e revolucionário, antiliberal e anti-marxista, organizado num ‘partido-milícia’, com uma concepção totalitária da política e do Estado, com uma ideologia de fundamento mítico, viril e anti-hedonista, sacralizada como religião laica, que afirma o primado absoluto da nação, entendida como comunidade orgânica e etnicamente homogénea, hierarquicamente organizada num Estado corporativo, com uma vocação belicista e uma política de grandeza, de potência e conquista, visando a criação de uma nova ordem e de uma nova civilização.”
Se o 23 de Março é uma data-chave, foi na sua altura um acontecimento insignificante, que a grande imprensa ignorou, à excepção de uma pequena notícia no Corriere de la Sera, de Milão, e de toda a primeira página do Popolo d’Italia, o jornal de Mussolini. Participaram na assembleia 119 pessoas. Nenhum contemporâneo poderia então adivinhar o futuro.
O termo italiano fascio (feixe) vem da expressão latina fasces lictoris: o feixe de vergas com um pequeno machado de bronze que, transportado pelos lictores, abria caminho aos altos magistrados, simbolizando a autoridade e um poder de vida ou morte. Foi um símbolo utilizado na Revolução Francesa e adoptado pelos intervencionistas revolucionários italianos durante a Grande Guerra.
O programa de San Sepolcro
A criação dos Fasci assinala um dos últimos momentos do “fascismo revolucionário”. Escreveu o historiador Renzo De Felice: “Acabada a Guerra, Mussolini deu vida aos Fasci di Combattimento, que queriam ser um anti-partido de curta duração, com um programa nacionalista, republicano, libertário, anti-estatista, tendencialmente anti-capitalista, além de, naturalmente, anti-bolchevista.” Em 1915, usa pela primeira vez a expressão “movimento fascista”.
Mussolini (1883-1945) foi dirigente da ala revolucionária do Partido Socialista Italiano (PSI) e director do seu jornal, Avanti, em 1912-14. Durante dois anos incitou o proletariado à luta revolucionária para abater o Estado burguês. A divergência surge com a Grande Guerra. O PSI e Mussolini defendiam a “neutralidade absoluta”. Mas, no fim de 1914, Mussolini passa a advogar a intervenção para derrotar o militarismo dos impérios centrais e acelerar a revolução mundial. Para isso funda o Popolo d’Italia, o que lhe vale a expulsão do partido.
Após 1918, Mussolini vê-se sem seguidores. Tenta fazer do seu jornal o porta-voz dos ex-combatentes e organizá-los nos Fasci. O anti-partido apresentava-se como anti-ideológico, em oposição aos partidos tradicionais. Agregava as mais variadas categorias: Marinetti e os futuristas; os arditi (valentes), ex-combatentes ultranacionalistas dispostos ao combate de rua, ou anarco-sindicalistas seduzidos pelo seu verbo revolucionário. A assembleia de Milão foi tumultuosa e dela saiu um estranho programa.
Destaco as principais reivindicações: proclamação da República; sufrágio universal, voto das mulheres e garantia das liberdades fundamentais; redução do papel do Estado e descentralização; abolição do Senado; abolição da polícia política; magistratura eleita e independente; desarmamento; proibição da diplomacia secreta e uma política externa baseada na solidariedade dos povos; supressão das sociedades anónimas; jornada de trabalho de oito horas; a terra aos camponeses; gestão das indústrias e dos transportes pelos sindicatos.
A Mussolini não interessava o programa que, flexível e oportunista, lhe permitia pescar em diferentes águas. Interessava-lhe a organização. E, depressa, os Fasci se multiplicaram na maioria das cidades italianas, tendo no seu núcleo os arditi.
As eleições de Novembro de 1919 mostram que são uma força ainda marginal. A situação muda com o biennio rosso (biénio vermelho, 1919-20), marcado por vagas de greves, ocupação de fábricas e confrontos nos campos, onde o sindicalismo agrário assusta os proprietários. As “tropas de choque” de Mussolini lançam-se numa guerra contra os socialistas. Incendeiam a sede do Avanti. Esboça-se uma aliança entre o “primeiro fascismo” e os grandes interesses industriais e agrários, contra o inimigo comum: o PSI e os sindicatos. O dinheiro começa a afluir. Em fins de 1921, Mussolini dispõe de 250 mil fascistas, em 830 fasci, implantados em todo o território. É a hora de mudar de face e de substituir o “anti-partido” pelo Partido Nacional Fascista. O 23 de Março teria sido a fundação de um “primeiro fascismo”. Aquele que De Felice designou por “fascismo revolucionaríssimo do pré-Marcha sobre Roma”, em contraponto com o “fascismo-regime”.
A caminho do poder
Para relançar o movimento, Mussolini faz uma viragem. Dois factores serão decisivos: por um lado, a sucessão de governos débeis que fazer crescer a desconfiança perante a democracia liberal. Por outro, o “inimigo” vai dividir-se em Janeiro de 1921, com a cisão entre comunistas e socialistas.
O primeiro instrumento de Mussolini é o uso da violência em grande escala pelas suas milícias, os “esquadristas”. A primeira grande ofensiva, anota Gentile, “é lançada nos finais de 1920, após uma mobilização de burgueses e de classes médias anti-socialistas que coincide com a ocupação das fábricas em Setembro”. Os estatutos do PNF, fundado em Novembro de 1921, consagrará o ‘esquadrismo’ como instituição essencial do novo partido, dentro de um desígnio já totalitário.
Segundo outro historiador, Matteo Milan, a violência, banalizada pela brutalidade da Grande Guerra, é central no projecto fascista: “Os esquadristas praticavam a violência como algo natural e visceral: ela definia o seu conceito de fascismo e as suas vidas de ‘homens novos fascistas’. (...) Prosseguiam já o objectivo da conquista integral da sociedade e a realização do projecto totalitário de uma nova Itália e de um novo italiano, através da eliminação de todas as formas de oposição.”
A manobra complementar é a reconversão político-ideológica. “Acentuou a viragem à direita, ao sustentar que o fascismo era o mais atractivo e agressivo movimento de defesa da burguesia produtiva. Adoptou uma atitude respeitosa para com o catolicismo. Por último, acentuou as ambições expansionistas do fascismo” (Gentile). Se os burgueses encontravam em Mussolini um providencial aliado, também serão surpreendidos: ele não será um aliado, mas o Duce a quem se deverão subordinar.
Esta fase culmina em Outubro de 1922 com a Marcha sobre Roma, a grande lenda fascista. Interroga-se o historiador britânico Donald Sassoon: como chegou Mussolini ao poder? Era a maior força nas ruas, mas tinha uma escassa base eleitoral e não controlava os militares. Por que recebeu o beneplácito da monarquia? Porque se aproximou dos liberais e ofereceu-se como uma solução para a crise político-económica italiana. A elite política rendeu-se, apostando na integração de Mussolini no sistema.
Sublinha Sassoon que, enquanto os fascistas encenavam na Marcha sobre Roma um quadro de sublevação e violência revolucionária, Mussolini era nomeado primeiro-ministro no quadro da legalidade constitucional. Uma vez no poder, obtém a maioria absoluta nas eleições de 1924. Chegava a hora do partido único e do fascismo-regime.
A lenda de Mussolini
O fascismo marcou a História da Europa entre as duas guerras mundiais e seduziu milhões de europeus. A sua influência ideológica estendeu-se a outros continentes.
Explicou Sternhell, numa entrevista ao PÚBLICO em 1996: “Donde vem aquilo a que chamo o ‘charme secreto do fascismo’? É a vontade de encontrar uma terceira via entre o conservadorismo burguês e o marxismo proletário. De criar uma nova civilização, uma civilização viril, uma civilização de soldados e não de negociantes ou de intelectuais. O fascismo era uma fraternidade e um apelo ao sacrifício. Uma violência criadora, no sentido soreliano do termo. A procura duma civilização em que o motor do comportamento deixe de ser o lucro mas o sacrifício (…) O fascismo defende a coesão da sociedade e recusa tanto a luta de classes como a luta de ‘todos contra todos’ do liberalismo. É por isso que encontrou tanto sucesso no mundo, sobretudo na Europa.”
Um século depois dos Fasci di Combattimento e mais de sete décadas após a queda do fascismo (1943) e a morte de Mussolini (1945), este continua vivo na memória dos italianos, assinala Gentile. “Mas também permanece vivo na memória colectiva mundial. O termo ‘fascista’, por ele cunhado e referido à sua pessoa, é omnipresente e serve para identificar tudo quanto possa ser considerado de direita, autoritário e populista.”