Pablo Escobar como maldição
Victoria casou-se com Pablo Escobar quando tinha apenas 15 anos e ele 26. Depois da morte do narcotraficante, mudou de nome e de país e desapareceu dos radares do mundo com os dois filhos. Agora, escreveu um livro para contar a sua vida. Pede que o leiam, para que estejam esclarecidos, quando (e se) quiserem apontar-lhe o dedo.
Victoria Eugenia Henao viveu os últimos 25 anos como María Isabel Santos Caballero, mas quando decidiu escrever um livro sobre o que foi a sua vida ao lado de Pablo Escobar assinou-o com o seu primeiro nome. Aquele que tinha quando, com apenas 12 anos, conheceu o homem que viria a tornar-se o maior narcotraficante da história e um dos mais violentos assassinos do mundo. O homem que se tornaria seu marido, quando ela tinha apenas 15 anos e ele 26. Quem a conhece como “Tata” da série Narcos, da Netflix, encontrará uma pessoa diferente em Pablo Escobar Minha Vida, Minha Prisão, mas ela não tem grandes ilusões. Apesar de escrever no prefácio da obra que espera que este regresso ao passado a ajude a deixar de ser apenas “a viúva de Pablo Escobar”, admite, em entrevista ao P2: “É muito difícil terminar com uma história tão complexa como esta e que é conhecida em todo o mundo. É impossível que desapareça essa qualificação.”
María Isabel fala devagar e fica vários segundos em silêncio antes de começar a responder às perguntas que lhe chegam pelo telefone. Falou com o P2 a partir de Buenos Aires, na Argentina, onde vive e criou os dois filhos, desde que deixou a Colômbia, meses depois da morte de Pablo Escobar, a 2 de Dezembro de 1993. As primeiras perguntas são dela — se o livro foi lido na íntegra, que idade tem a pessoa que está do outro lado da linha? “Porque a idade tem que ver com a compreensão que temos de como é a vida para as mulheres, não é?” No final da conversa, quer saber se foi clara em todas as respostas, se ficou tudo esclarecido. Não lhe faltou clareza, mas é improvável que tudo esteja realmente esclarecido quando se fala de Pablo Escobar e da sua família.
Há sempre dúvidas que persistem, por mais respostas que María Isabel dê. Porque a história da sua vida é demasiado estranha e irreal para que uma resposta baste. Ela sabe-o, não restem dúvidas. Seja pelas reacções que obteve quando decidiu revelar quem era (“perdi muitas amigas e grupos a que pertenci durante anos, mas muitas pessoas também me acompanham, abraçam-me e reconhecem-me, como mãe e como mulher”), seja pelo facto de, ainda hoje, as autoridades continuarem a investigá-la por presumíveis ligações a narcotraficantes.
Com 58 anos, diz que quis, com o livro, dar uma oportunidade às pessoas de decidirem quem ela é, de forma mais esclarecida. “Dei-me conta de que não podia continuar a viver escondida. Não me estava a fazer bem à saúde, nem à minha auto-estima ou ao respeito por mim própria. Tomei a decisão de encontrar uma voz para contar esta história tão dolorosa para mim e nisto fui sempre apoiada pelo meu filho. Quis que escutassem a minha voz, para que ao escutar-me cada pessoa pudesse escolher como opinar acerca da minha vida”, conta.
E a história começou aqui: “A minha primeira recordação dele remonta a 1972: vejo um jovem que passeia nas ruas do novo bairro La Paz, de Envigado, numa vistosa moto italiana Vespa, branca e vermelha, que um vizinho lhe vendeu por 3500 pesos e que ele se comprometeu a pagar em prestações mensais de 300 pesos. O seu sucesso com as mulheres é evidente porque não são poucas as que lhe sorriem e lhe fazem sinais para que as leve a dar uma volta pela vizinhança. Era um verdadeiro sedutor, com lábia para os piropos e um pinga-amor, daqueles de quem as raparigas estão sempre a falar, referindo-se a ele como ‘o rapaz da moto’. Nessa altura, na verdade, não me interessou saber sequer quem ele era, embora os rumores da vizinhança tenham tornado impossível não saber: chama-se Pablo Emilio Escobar Gaviria, tem 23 anos, está a fazer o secundário no Liceu da Universidade de Antioquia e nota-se a léguas que tem um estilo de vida que contrasta com o meu, que acabei de fazer 12 anos e tenho de pedir autorização para sair de casa.”
É Victoria quem escreve estas palavras no livro que chegou a Portugal há poucas semanas, através da editora Planeta. Segue as pisadas do filho Juan Pablo (Sebastián Marroquín, na segunda versão das suas vidas), que escreveu dois livros sobre o pai, mas conta uma história mais íntima, sempre a partir da sua perspectiva. Primeiro, da criança que é seduzida por um homem mais velho; depois, da mulher mil vezes traída, mas que se submete às desculpas do marido; por fim, da viúva que teve de negociar a sobrevivência do filho e de toda a família com os chefes dos cartéis que se tinham envolvido numa guerra com Pablo Escobar.
Para o último capítulo guardou o que descreve como “o triste segredo” que manteve secreto durante 44 anos. O que fala de como, com apenas 14 anos, Pablo a obrigou a fazer um aborto — sem que ela tivesse sequer a noção de que estaria grávida, depois do que terá sido o primeiro contacto sexual entre ambos, e que ela descreve assim: “Um dia abraçou-me, beijou-me e nesse momento senti-me paralisada, gelada de medo. Não estava preparada, ainda não sentia malícia sexual, não tinha as ferramentas necessárias para entender o que significava esse contacto íntimo e intenso.” Foi preciso passar quase toda uma vida para contextualizar esta experiência. “Nas terapias de trauma que frequento regularmente, perguntei ao meu médico, depois de lhe dar mais detalhes, e ele respondeu que aquilo que me aconteceu deve ser considerado como uma violação”, escreve no livro.
Nada é simples e há passagens na obra que apontam claramente para a estranheza do mundo em que a família se movimentava, tão distante da do cidadão comum. Como quando escreve que, no final da vida de Pablo, este se preocupava com “a progressiva falta de dinheiro”, comentando com um dos seus homens que “apenas lhe restavam uns quantos milhões de dólares em numerário”. Ou quando descreve como viajou para a Suíça, quando organizava a primeira comunhão do filho, porque lhe disseram “que nesse país europeu encontraria os melhores apetrechos para esse tipo de celebrações”. E como daí foi para Itália, onde comprou, em Roma, “o fato da primeira comunhão” e, em Milão, os vestidos para ela e a filha, Manuela.
Estava-se, então, em 1986, e se a jovem mulher de Escobar poderia ter ignorado, no início, as suas actividades, aqui já não lhe podiam restar dúvidas. O dinheiro entrava a rodos, os jornais tinham publicado, três anos antes, que ele estivera detido por tráfico de cocaína — o que ditou o fim da sua curta carreira política — e a violência estava mais do que instalada. O assassinato do ministro da Justiça, Rodrigo Lara Bonilla, pelos homens de Escobar, já acontecera em 1984, levando a família a fugir para o Panamá. Victoria, nessa altura com 23 anos, estava grávida de Manuela (actualmente, Juana), que acabaria por nascer naquele país.
Mãe aos 16 anos
Juan Pablo tinha nascido muito antes, quando Victoria tinha apenas 16 anos. Não tinha passado sequer um ano desde que se casara com Escobar, depois de fugir de casa, num acto de rebeldia contra a família que se opunha à relação. Os primeiros anos de casamento passou-os na escola, a terminar os estudos. De novo, segundo o que escreve no livro, foi preciso enviuvar, mudar de nome, de país e ver a filha chegar à idade que tinha então para se aperceber da dimensão do que tinha vivido. Foi na festa do 15.º aniversário da jovem. “Ver a Juana crescer e sabendo que, com a sua idade, eu já estava casada com o Pablo, foi todo um choque emocional. Como tinha sido possível que uma criança tivesse mantido uma relação com um homem tão mais velho que ela? Costumava olhá-la longamente e surpreendia-me a sua inocência, o seu modo de falar, de comportar-se. Foi aí que entendi os ralhetes da minha mamã, a minha rebeldia e o sofrimento dos meus pais ao ver-me a viver aquela relação, sendo tão nova.” Ao P2, acrescenta: “Quem me dera que a minha mãe continuasse viva por muitos anos para que eu lhe pudesse continuar a pedir perdão mil vezes por não a ter escutado.”
Foi por isso “uma criança” que se casou em Março de 1976 com um adulto de 26 anos. Pouco mais de dois meses depois, ele era preso e Victoria recebeu a notícia pela mãe. “Apanharam-no com 26 quilos de pasta de coca”, terá dito a mulher. “Pasta de coca? O que é isso?”, questionou-se a jovem esposa. Ele, libertado cinco meses depois, assegura-lhe que foi “ilibado de todas as acusações”. Ela diz que acreditou.
Como diz que acreditou, depois, nas desculpas que ele lhe daria quando o dinheiro começou a permitir todas as extravagâncias. “Ele dizia-me que estava a fazer nesse momento negócios imobiliários muito rentáveis”, diz, enquanto insiste que não havia muito espaço para perguntas. “Nesta cultura machista, as mulheres, as esposas de empresários ou políticos, pelo menos na Colômbia, não têm direito a perguntar o que os maridos fazem no emprego, na política. O que se sabia era o que era público, o que se falava, mas o Pablo nunca me deu qualquer espaço para esse tipo de conversa. Nunca me deu autoridade como mulher ou esposa. Por mais perguntas que fizesse, ele respondia-me sempre que eu não perguntasse porque disso não entendia nada.”
Um tsunami diário
Mais tarde, quando a violência explodiu com toda a sua força, quando sentia que vivia “um tsunami” todos os dias, Pablo continuava a tentar manter a família à margem. María Isabel recorre ao filme A Vida É Bela (de Roberto Benigni, 1999) para descrever esses anos em que quase não via o marido porque ele andava fugido à justiça e ela vivia praticamente encerrada com os filhos em diferentes casas, para evitar um atentado. “Fazia-nos crer que, embora estivéssemos num campo de concentração, não estávamos nele. Contava-nos muitas histórias e nós estávamos fechados, não tínhamos muito contacto com o exterior. Não sabíamos com quem falar nem a quem perguntar”, diz.
E depois, para justificar tudo, está a resposta de que ela ainda hoje não abdica: o amor. Aguentou tudo e ficou com Pablo Escobar até ao fim “por amor”. Depois da catarse que poderá ter sido escrever este livro, ainda dá a mesma resposta? “Realmente, sim. Por amor seria a minha resposta imediata. Às mulheres, nesta cultura machista, nunca nos ensinaram direitos, sempre nos ensinaram deveres. Eu senti que cumpri todos os deveres como esposa, como mãe. Cumpri com todos os deveres da igreja. De ficar ao lado do meu esposo, na alegria e na tristeza, no desespero também. Eram esses os mandamentos da igreja e da família, que era muito religiosa e que me pedia para permanecer ali”, diz. No livro, contudo, acaba por ir um pouco mais longe: “No final desta história de dor que hoje partilho convosco, sinto que pude reviver a crueldade de Pablo e meditar sobre se o que realmente me uniu a ele foi o medo ou o amor.”
Depois do assassinato de Rodrigo Lara Bonilla, a espiral de violência provocada por Pablo Escobar assume proporções de uma verdadeira guerra contra o Estado colombiano e todos os que se opunham ao líder do cartel de Medellín. Já não é só o traficante de droga sanguinário que assusta uma nação inteira, é um terrorista. A 6 de Novembro de 1985 as provas contra ele (e outros) que estariam guardadas no Supremo Tribunal de Justiça são destruídas, depois da tomada do edifício pelos guerrilheiros do M-19, com o apoio de Escobar. Mais de cem pessoas morreram. A 13 de Janeiro de 1988, um carro-bomba explode junto ao edifício Mónaco, que Victoria tinha ajudado a desenhar e que enchera com as obras de arte que comprara em todo o mundo, transformando dois dos pisos no seu lar. Ela estava em casa com os dois filhos (Pablo não estava, ao contrário do que é retratado em Narcos), e os três escapam praticamente ilesos, mas nunca mais puderam regressar ali. O ataque terá sido orquestrado pelo cartel de Cali e matou três pessoas.
A 18 de Agosto de 1989 o candidato presidencial Luís Carlos Galán é assassinado por ordem de Pablo, que, a 27 de Dezembro desse ano, coloca uma bomba a bordo de um avião da companhia Avianca, onde deveria estar o candidato e futuro presidente César Gaviria. Morreram 107 pessoas. No ano seguinte, mais de 300 polícias são mortos depois de Escobar oferecer dois milhões de pesos por cada agente uniformizado assassinado. Seguem-se sequestros, incluindo o da jornalista Diana Turbay, que acaba por morrer atingida pelas forças de segurança, numa confusa operação de resgate.
Entre Julho e Setembro de 1990, Victoria não estava na Colômbia para testemunhar parte destas atrocidades, que deixaram um rasto de corpos ensanguentados, conduzindo directamente ao seu marido. Nesse período viveu com os filhos na Suíça, até que Escobar ordenou que regressassem a casa, por suspeitas de que teriam sido localizados pelos seus inimigos. No ano seguinte, depois de um longo processo de negociações com as autoridades, o líder do cartel de Medellín entra na prisão que ele próprio construíra, e que ficou conhecida como La Catedral.
Divórcio? Estás louca?
Para a Colômbia, iniciava- se um poderoso suspiro de alívio, por uma trégua na violência. Para Victoria, nascia a esperança de outra coisa. “Finalmente, sete anos depois de correr e correr, invadiu-me, no início, uma agradável sensação de tranquilidade porque imaginei que ia recuperar a minha feminilidade, o meu lugar de esposa, de mãe, de companheira e de amante. Pensei que ele cumpriria muitos anos de prisão, mas que, sem qualquer dúvida, acabaria por pagar a sua dívida para com a sociedade”, escreve, para, alguns parágrafos à frente, acrescentar: “Três semanas. Foi o tempo que durou a ilusão de que a minha vida com Pablo viria a ter, alguma vez, algum nível de normalidade.”
Porque, rapidamente, se tornou evidente que La Catedral era uma prisão apenas no nome. Festas, visitas de muitas mulheres, droga, jogo — tudo passava por ali. Victoria escreve que descobriu que as infidelidades do marido continuavam atrás dos portões do edifício, ao ler “cartas escandalosas de mulheres que recordavam, com todo o género de pormenores, os encontros íntimos recentes com ele e que o convidavam a repeti-los quantas vezes quisesse”. Foi durante esse ano que Escobar passou detido, antes de fugir a 22 de Julho de 1992, que Victoria deu um passo que, no momento do casamento, lhe pareceria impensável. “Vou contar-lhe algo que não conhecem. Quando Pablo estava na cadeia e havia todo aquele mundo de mulheres, em desfile, eu fui pedir-lhe literalmente o divórcio. Disse-lhe: ‘Não quero saber mais de ti como esposo.’ E que me respondeu? ‘Isso não vai acontecer nunca. Nunca deixarei o meu lar, em qualquer circunstância. Adoro-vos e vocês são o mais importante que tenho na vida e a razão pela qual luto.’ Essas palavras ficaram presas na minha mente e continuam lá.”
María Isabel assegura que esta não foi a única vez que o tema separação surgiu em conversa — ela que garante ter vivido os últimos dez anos de vida de Pablo quase sem o contactar, já que ele andava permanentemente em fuga. O tema surge quase despercebido no livro que agora chegou a Portugal, por iniciativa da chancela Planeta. Uma frase apenas, quando lembra que, no processo de negociações com os cartéis, pediu conselhos a um advogado que contactara quando pensara em separar-se de Escobar. “Ao Pablo muitas vezes lhe disse, lhe pedi, e ele, na sua sedução, dizia ‘nunca nada nos vai separar, nada nos vai prejudicar eu vou ficar contigo até à morte’”, conta. O advogado acabou por não ser de maior auxílio: “Disse-me, ‘Victoria, estás louca? De que separação estás a falar? Isso é impossível, o que estás a pedir.’” E, assim, o assunto ficou arrumado.
Pablo Escobar foi baleado pela polícia no seu último esconderijo. Morreu num telhado, descalço e em fuga. O filho acredita que a última bala, a que o matou, saiu da arma do próprio pai; que, no final, Escobar se suicidou. Aos 33 anos, Victoria ficava viúva.
Para o mundo, começava a grande pergunta, que ainda hoje continua a ser repetida: onde estava a imensa, astronómica e desmesurada fortuna que o narcotraficante acumulara enquanto inundava o mercado internacional de toneladas de cocaína? Perguntem quantas vezes quiserem. María Isabel continua a dar a mesma resposta: não há dinheiro. Pablo era um gastador. Nos tempos áureos, o rancho Nápoles, onde criou um exótico jardim zoológico, não foi a sua única excentricidade.
Terá comprado inúmeras propriedades por toda a Colômbia, algumas das quais usaria como esconderijo e outras, segundo María Isabel, foram colocadas no nome de colaboradores, sem que a família chegasse a saber exactamente quais e quantas eram. Carros (incluindo alguns para satisfazer a sua paixão pelas corridas), aviões, viagens extravagantes, jóias e obras de arte, prendas para a família e as muitas amantes ajudavam ao sorvedouro. O dinheiro entrava, mas também saía. E, depois, a guerra contra o Estado colombiano e contra o grupo criado por outros narcotraficantes e grupos paramilitares, fartos da violência de Escobar, que os punha a todos em risco, e que se intitulou Perseguidos por Pablo Escobar, os Pepes, terá custado muitos milhões. Por fim, a apreensão de bens por parte do Estado e o pagamento feito aos líderes dos cartéis e dos grupos paramilitares, negociado directamente por Victoria, após a morte do marido e que, segundo ela, foi a única forma de conseguir garantir a sobrevivência da família, esgotaram os fundos que restavam. No final, garante, não restava nada.
Nada pelos parâmetros da família, entenda-se. Havia o suficiente para doar “uma verba considerável” a uma instituição moçambicana, como contrapartida para que Victoria e os dois filhos se pudessem instalar naquele país, quando mais ninguém os queria receber. O suficiente para lá chegar, detestar tudo o que viram, e apanharem, no dia seguinte, um voo de regresso à América Latina. Para se instalarem, finalmente, em Buenos Aires, já com a nova identidade, obtida legalmente em colaboração com o Estado colombiano, para garantir a segurança da família. Para viverem nos anos que se seguiram — Juan Pablo tinha 16 anos quando o pai morreu, Manuela apenas nove. Para, agora ela, investir no mercado imobiliário, procurar especialistas, formar-se em coaching.
Perdão e suspeitas
E, assim, chegou a nova vida de Victoria, Juan Pablo e Manuela. A vida de María Isabel, Sebastián e Juana. Só que — lá está, nada é linear nesta história — o que ficou para trás não ficou para trás. Incluindo Pablo Escobar.
Poder-se-ia esperar que com o desaparecimento do homem que tanta dor levou à família (e María Isabel não se cansa de o repetir) esta procurasse apagar ao máximo a sua presença na nova vida que construiu. Mas não. María Isabel diz que ainda hoje fala com ele. É certo que a conversa não é muito agradável, pela menos a parte que ela revela. “Eu hoje pergunto-lhe: ‘Pablo, de que família estavas a falar? Qual era o sacrifício que fazias por esta família?’ Passaram 25 anos e parece que foi ontem. Continuamos a pagar um preço impensável neste mundo por causa dele e porque o nome de Pablo está inexoravelmente relacionado com o mal. Como somos a sua família, vêem-nos assim”, conta. Há uma passagem no livro que diz mais ou menos a mesma coisa, quando um dos líderes dos Pepes com quem Victoria tinha de negociar, lhe diz: “Depois de ter vivido tantos anos ao lado daquele monstro, a senhora deve ser parecida com ele.”
María Isabel garante que não e que tem passado a segunda metade da sua vida a combater essa ideia. “Perdão” é uma palavra que sai muitas vezes da sua boca — pede insistentemente perdão a todas as vítimas do homem que foi seu marido. É também por elas que diz, depois de um longo silêncio, que não pode incluir-se nessa lista. “Por respeito às vítimas da Colômbia, não me posso considerar uma vítima dele. Só por essa razão”, diz.
As outras palavras que mais repete prendem-se com o que diz ser o trabalho “muito enriquecedor” que hoje desenvolve junto de mulheres maltratadas. “É muito forte ver-me retratada na dor dessas mulheres que vêm ter comigo. O que me dedico a trabalhar com elas é o que venho trabalhando comigo nestes 25 anos de solidão e viuvez: a auto-estima, o auto-respeito e a confiança. Se consegues impor a tua dignidade, podes ter a força de escolher a vida que vais viver. Há léguas de distância e travessias gigantes por fazer. Oxalá que nós, mulheres, nos possamos unir, para podermos cuidar-nos como não fizemos durante décadas”, diz.
Mas nem todos parecem acreditar que a nova vida da antiga mulher de Pablo Escobar passa apenas por aqui. Apesar de nunca ter sido acusada de qualquer crime na Colômbia, María Isabel já se viu a braços com a justiça por duas vezes desde que se fixou na Argentina. Em 1999, foi detida por lavagem de dinheiro e passou quase 18 meses na prisão (o filho foi preso na mesma altura, tendo passado cerca de mês e meio detido em Buenos Aires), mas acabaria absolvida pelos tribunais argentinos, que condenaram várias pessoas, incluindo um juiz, por terem montado um esquema incriminatório contra a família.
Uma experiência complicada que María Isabel diz ter sido particularmente dura para Juana, já que a jovem só descobriu nesta altura a verdadeira história dos Escobar. “Nunca lhe tínhamos contado o que fazia o pai”, escreve no livro. “A Juana não conhecia a sua história, tinha-se escondido anos a fio a pedido dos seus pais, mas nunca tinha perguntado a razão pela qual tinha de esconder-se. Apenas obedecia. Era muito pequena quando o Pablo desencadeou a nossa tragédia”, acrescenta.
Agora, mãe e filho voltam a estar sob investigação. A polícia descobriu um documento que comprova um pagamento feito por Mateo Corvo Dolcet, que as autoridades acreditam ser um testa-de-ferro do narcotraficante colombiano Piedrahita Ceballos, à família de Pablo Escobar. María Isabel dedica todo um capítulo do livro ao tema, garantindo desconhecer as actividades ilícitas de Ceballos e justificando o pagamento que recebeu como uma comissão por ter posto os dois homens em contacto para legítimos negócios imobiliários. Ao P2, dá uma das respostas mais sucintas de toda a entrevista: “À parte da dor que isto significa, tenho uma absoluta tranquilidade da mulher que sou. Sinto-me tranquila porque não cometi qualquer delito.”
Ser neto de Pablo Escobar
A sua preocupação, garante, hoje como sempre, continua a ser a família. Agora maior, depois da chegada do filho de Sebastián. O neto de María Isabel tem seis anos e, apesar de conhecer o avô pelos retratos dele que tem em casa, ainda não conhece a história da família. “Espero que ele possa pelo menos desfrutar da sua inocência como puderam os meus filhos nessa idade. Falamos-lhe do avô, tem fotografias em casa e tem tido contacto com ele desde muitos lugares, mas ainda estamos a trabalhar com profissionais e especialistas em toda esta problemática, preparando-nos para lhe contar quando chegar a altura”, diz.
Porque María Isabel quer que ele saiba. Quer que esteja preparado para se defender do bullying que antevê que a criança irá sofrer, quando os colegas de escola descobrirem as suas raízes. “Há muito bullying nos colégios. No mundo, todos opinamos e apontamos o dedo. Não sabemos porquê, mas fazemo-lo. Quero acompanhar o meu neto neste desafio, para o ajudar a perceber connosco cada uma destas terríveis situações”, explica.
Se calhar é por isso que Pablo continua tão presente no seio da família. Como o exemplo do que não se deve fazer, do que não se deve ser. É isso, pelo menos, que María Isabel evoca, quando recorda como, no almoço dos 33 anos da filha, no ano passado, voltou a chamar o marido à conversa. “Foi muito forte. Disse-lhe: ‘Filha, quero contar-te que aos 33 anos fiquei viúva, com dois filhos e com o mundo a olhar-me de lado e a morte nas mãos.’ E nesse almoço, ela disse-me: ‘Mamã, não me contes isso.’ ‘Conto’, disse-lhe eu, ‘para que possas diferenciar o que estás a cumprir aos 33 anos e como os cumpri eu’.”
Pablo Escobar nunca vai passar. A investigação mais recente a María Isabel e Sebastián ainda decorre. E se ela for arquivada, não há qualquer garantia de que outra não surja. As séries de televisão e os filmes vão, provavelmente, continuar a ser feitos. Ela diz que viu pedaços de Narcos, “por obrigação”, porque sabia que lhe iam fazer perguntas sobre isso nas entrevistas a que a publicação do livro a obriga. “Custa-me imenso porque a série está muito fora do contexto. O meu filho já apontou uma série de erros, com os quais concordo plenamente. Quando me mostram a dizer que o apoio incondicionalmente… Não é assim. Acompanhei-o como pai dos meus filhos e no meu amor havia uma incondicionalidade, mas não nas coisas que fazia”, garante.
María Isabel poderá continuar a dizer até ao fim da vida que era uma ingénua vítima da cultura machista do seu país, inocentemente apaixonada pelo seu marido e unicamente preocupada em cuidar da família, que haverá sempre quem repita, como o rancoroso líder dos Pepes: “Depois de ter vivido tantos anos ao lado daquele monstro, a senhora deve ser parecida com ele.”
Ela pede que leiam o livro — como ela continua a fazer, várias vezes, diz, para nunca se esquecer da responsabilidade que tem no mundo, a responsabilidade de cada uma das palavras que ali escreveu. “Peço que me olhem nos olhos e comecem a distinguir um ser humano que tem responsabilidades. Eu tenho responsabilidades com os meus filhos, o meu neto de seis anos e as próximas gerações. Tocou-nos uma história muito dolorosa e tenho trabalhado com muita gente, porque este fenómeno das drogas é um fenómeno mundial e precisa de muitas vozes para que possamos transcendê-lo. Estou a ler o livro Trás el grito, do jornalista britânico Johann Hari [Chasing the scream, no original], sobre a guerra às drogas e este é um fenómeno que começou 40 anos antes de Pablo Escobar nascer. Há uma responsabilidade global para que possamos trabalhar entre todos, para que esta história não se repita”, afirma.
Antes de desligar, María Isabel pára para pensar na resposta a mais uma pergunta. Se pudesse voltar atrás, o que faria de diferente? Começa por falar com um suspiro preso às palavras. “Aprendi que uma pessoa precisa de uma vida para aprender e outra vida para vivê-la.” E, depois, resume tudo, na sua voz pausada e pesarosa que não consegue esconder. “Esta história foi muito dolorosa e forte para mim. Fiquei viúva aos 33 anos, mas há dez que vivia sem Pablo Escobar, porque ele andava fugido à justiça. Posso dizer que desde os 23 anos que estou sozinha. Tenho 58 anos e o preço que paguei por esta história foi negar-me a possibilidade de voltar a ter um homem ao meu lado, porque morro de medo, tenho pânico de me apaixonar e ser responsabilizada pelas decisões de outra pessoa. Creio que esse preço que pago por não ser mulher, por não poder voltar a abraçar a vida e o amor, é resposta suficiente para o que me perguntas.”