Espanha: a segunda transição
É o próprio ser da Espanha que se torna matéria polémica. Daí que não se possa considerar surpreendente o regresso de um discurso pró-franquista.
Durante anos o processo de transição política do franquismo para um modelo de organização democrática de tipo Ocidental, ocorrido em Espanha na segunda metade da década de 70, foi apresentado e percebido como um inesperado sucesso. Nos últimos tempos, contudo, surgiram vozes críticas contrárias à aceitação dessa tese. Os acontecimentos mais recentemente vividos no país vizinho convocam-nos para uma discussão profunda sobre o assunto.
Contrariamente ao caso português - no qual houve necessidade de uma ruptura institucional geradora de um momento revolucionário, frustradas as expectativas numa hipotética abertura marcelista e perante a óbvia incapacidade de um regime obsoleto resolver o problema colonial - os espanhóis conseguiram levar a cabo uma transição suave da ditadura para a democracia. Para que tal pudesse suceder contribuíram múltiplos factores, desde a argúcia e a coragem do homem que liderou o processo de transição, Adolfo Suarez, até ao excepcional sentido de Estado revelado pelo líder comunista Santiago Carrillo. Há, aliás, sobre essa época, e em particular sobre essas duas personagens históricas, um livro excelente da autoria de Javier Cercas, Anatomia de um instante, que merece ser lido. O instante a que o escritor espanhol se refere corresponde à tentativa de golpe de Estado levada a cabo em 23 de Fevereiro de 1981, mas a obra aborda todo o período da transição. A verdade é que durante cerca de três décadas a Espanha percorreu um caminho extraordinário de modernização política, económica, social e cultural, assumindo um lugar de relevo no quadro europeu e projectando os seus interesses estratégicos no contexto mundial, com particular destaque para a influência exercida em toda a América Latina, parecendo assim ter encerrado as suas fases mais negras. A única coisa que perturbou este processo foi a actividade criminosa prosseguida pela ETA em nome de uma aspiração nacionalista e marxista de têmpera basca.
Há dez anos atrás era completamente implausível que a sociedade espanhola se visse hoje confrontada com as profundas divisões criadas pelo aparecimento, com uma forte expressão eleitoral e parlamentar, de uma esquerda crítica do processo da transição e dos equilíbrios institucionais nela alcançados, de um poderoso nacionalismo independentista na Catalunha e de uma direita nostálgica do franquismo, fundada no ideário de um velho nacional-catolicismo espanholista. O quadro político espanhol dificilmente poderia ser mais complexo do que aquele que se depara em vésperas de eleições legislativas. Há motivos sérios para acompanhar com preocupação a evolução da situação neste país.
A tendência para a valorização de posições extremistas que se tem verificado um pouco por todo o lado nos últimos anos tem vindo a adquirir em Espanha proporções especialmente dramáticas. A virulência do discurso político de uma nova esquerda que se autodeclara populista e antiliberal, protagonizada pelo Podemos, força partidária que soube utilizar as novas redes de comunicação e transmissão de informação, veio alterar radicalmente a natureza do confronto ideológico até então predominante. Por si só, isso abalou um certo consenso ao centro, que com melhores e piores dias marcara todo o período pós-transição. A erupção do independentismo catalão reabriu por seu lado uma discussão eminentemente passional sobre a identidade mais profunda da Espanha, a natureza do Estado espanhol e a legitimidade dos chamados nacionalismos periféricos. Aqui chegados, facilmente passamos do plano da discussão política para o domínio do questionamento ontológico. É o próprio ser da Espanha que se torna matéria polémica. Daí que não se possa considerar surpreendente o regresso de um discurso pró-franquista, que tendo estado submergido nunca desapareceu inteiramente em vários sectores da direita espanhola.
Daqui a pouco mais de um mês os espanhóis vão votar. As sondagens mais recentes apontam para um triunfo do PSOE com maioria relativa e para um cenário de fragmentação parlamentar pouco propício à emergência de uma solução governativa forte, estável e duradoura. Hoje não há um único líder partidário em Espanha que se imponha como uma referência indiscutível do ponto de vista do fulgor da inteligência, da elevação do carácter, da qualidade política. A forma como os líderes do PSOE e do PP compuseram autocraticamente as listas de candidatos a deputados dos seus respectivos partidos revela a mediocridade das suas lideranças. Ontem o editorial do El Pais apontava precisamente para esse facto: em lugar de promoverem a constituição de listas que reflectissem minimamente o pluralismo próprio de partidos democráticos, optaram por privilegiar a fidelidade, numa demonstração de sectarismo muito pouco recomendável numa época tão difícil como aquela que a Espanha atravessa. Preferiram a subserviência à independência, escolheram a uniformidade que reduz em prejuízo da diversidade de pensamento que alarga o horizonte do debate político. Isto não pressagia nada de bom para o futuro da Espanha.