A culpa não está nas estrelas
O "Brexit" conseguiu a proeza de mergulhar numa crise constitucional um país que nem sequer tem uma constituição escrita.
Ah, Londres nos anos 1600! Assistir ao Júlio César de Shakespeare, com Shakespeare, num Globe Theatre acabadinho de estrear. Ir à estalagem “O Pato e o Ganso” e ouvir Guy Fawkes e os seus amigos católicos conspirarem para rebentar com a Câmara dos Lordes e matar o rei Jaime I no dia 5 de novembro — Remember, remember / the 5th of November. E no meio de tudo isso, o gesto mais desapercebido e o de maior consequência. Ver Edward Phelps, o presidente do Parlamento, tomar a sua pena, molhá-la em tinta, e escrever:
“Regra de 2 de Abril, 1604. Que uma questão colocada ao parlamento, e respondida afirmativamente ou negativamente, não pode ser colocada de novo, mas deve ficar como decisão da Casa.”
Anteontem, a poucos dias de esta singela regra fazer 415 anos, Theresa May descobriu que por causa dela o seu governo não pode trazer de novo à aprovação do Parlamento o seu acordo de saída da União Europeia que foi já chumbado por 230 votos de diferença primeiro e, depois de modificações, por 149 votos. Isso significa que o “Brexit” conseguiu a proeza de mergulhar numa crise constitucional um país que nem sequer tem uma constituição escrita. Mas, mais urgente, isso significa que a nove dias do momento em que, às 23h00 de 29 de março, expira o prazo de dois anos fixado pelo artigo 50 do Tratado da União Europeia para a saída requerida por um estado-membro, e o Reino Unido se encontrará fora da UE sem acordo — a não ser que peça um adiamento e ele seja aprovado por unanimidade dos outros 27 estados-membros.
À primeira vista, nada que surpreenda ou desagrade, certo? Sair da UE é o resultado do referendo de 2016, é o que os políticos britânicos votaram ao decidir o envio da notificação a que se refere o artigo 50, há dois anos, e uma saída sem acordo é aquilo que o governo de Theresa May e os seus brexiteiros sempre disseram que seria preferível a um mau acordo. Então por que não cruzar os braços e esperar para ver o que acontece? Sempre teria a vantagem de se saber finalmente como é mesmo uma saída abrupta da UE depois de quarenta anos de estreita integração jurídica e económica e de tirar a limpo, na prática, aquilo que por agora é apenas teoria. Se não houvesse muita gente a sofrer na prática por isso, seria interessante de ver.
O problema é que os brexiteiros passaram três anos a discutir consigo mesmos, não sabem ainda o que significa o “Brexit” nem o que preferem e, consequentemente, não deixaram o Reino Unido preparado. Resta a hipótese de pedir um adiamento aos exasperados parceiros europeus, mais avançados nos seus planos de contingência do que os britânicos, e com pouca vontade de continuar a ver a sua agenda monopolizada pelo tema do “Brexit”. E esse adiamento seria curto, para mais dois meses desta charada, ou longo, para mais dois anos desta charada?
Por detrás destas perguntas esconde-se uma outra: por que deve o resto da UE ajudar a resolver uma crise constitucional britânica quando já se sabe que a reação do lado de lá do Canal da Mancha consistirá em culpar a UE de qualquer das formas? Efetivamente, um dos eurocéticos mais conhecidos da política britânica, o meu ex-colega no Parlamento Europeu Daniel Hannan, acusou logo a UE de “esvaziar a democracia interna nos Estados-membros” por causa desta decisão tomada exclusivamente pelo Parlamento britânico de acordo com as regras do Parlamento britânico.
Vamos lá ver. Durante anos os brexiteiros exigiram sair da União Europeia por considerarem que a supremacia do Parlamento britânico não estava a ser respeitada e que precisava de ser restaurada. Quando se prova que essa supremacia exista mas é exercida num sentido diferente do que gostariam, a culpa tem de ser da UE. Ora, já se sabe que a UE para os autoproclamados eurocéticos tem propriedades mágicas: ora ela é composta por estúpidos e incompetentes sem estratégia, ora ela tem uma maquiavélica e inteligentíssima estratégia para dominar o mundo. Ainda assim, o que a UE não pode ter feito é viajar no tempo para pôr nos livros do Parlamento britânico uma regra que já estava lá 388 anos antes da União Europeia ser fundada...
A incapacidade dos autoproclamados eurocéticos em admitirem qualquer erro de análise ou estratégia da sua parte faz com que não consigam ver o que está diante dos olhos: verdade é que os brexiteiros tiveram o “Brexit” nas mãos, e se estão a correr o risco de o falhar não terão mais ninguém a quem culpar senão eles mesmos.
Sei que isto não mudará nada e que Dan Hannan e outros como ele continuarão a achar que a culpa é das estrelas — no caso, as doze estrelas da bandeira europeia. Fariam no entanto bem em viajar até àqueles anos de 1600 para ler o que Shakespeare escreveu em Júlio César: “A culpa, Caro Brutus, não está nas estrelas. Está apenas em nós, seus inferiores”.