A amêndoa no seu “solar” florido
Pela Terra Quente de Trás-os-Montes, entre o branco e o rosado: assim se pintam as amendoeiras, assim se cobrem aqui as paisagens por estes dias. Este ainda é o seu reino, mas o Alentejo está à espera da sua vez. Porque as amendoeiras não são só o “espectáculo”: a amêndoa está na moda e todos a querem produzir.
São inescapáveis por estas paragens, ainda que, neste início de Março, não sejam homogéneas: há manchas extrovertidas, que vemos mesmo ao longe, descaradas como novelos brancos a salpicar vales e montes (ou dentes de leão ondulando e exibindo a mesma insustentável leveza do ser); há manchas introvertidas, que só de perto percebemos o que são (e o que hão-de ser); há despudoradas intromissões brancas solitárias entre o verde pardo de olivais. As amendoeiras em flor sabem que são um espectáculo e por isso agem como divas – que é como quem diz, não se exibem ao mesmo tempo.
Pelo menos em terras transmontanas, (ainda) a maior mancha de amendoais do país, por onde as camionetas já circulam, durante os fins-de-semana, carregadas de mirones – espera-se que continuem até Abril. Se nestas coisas quem manda é a natureza, “tudo depende do tempo”, diz-nos Ana Gil, da Cooperativa Agrícola de Produtores de Amêndoa de Trás-os-Montes e Alto Douro (CAPATMAD, sede em Torre de Moncorvo), a verdade é que como a floração acontece a dois tempos, o melhor ainda pode estar para vir: as amendoeiras já floridas que vemos são “das antigas”, “as modernas” florescem mais tarde – e são a maioria, a ganhar cada vez mais terreno.
A floração é, precisamente, um dos motivos. Quanto mais tardia, menos vai sofrer – e o fruto com ela – com as geadas. As variações climatéricas, explica Bruno Cordeiro, da CAPATMAD, prolongaram o período de geadas “até meados de Março”, o que queima a flor e o fruto. As novas variedades, que vão surgindo regularmente em laboratórios, tentam contornar essas e outras condicionantes, buscando, então, a floração tardia, juntamente com a “resistência à seca, o crescimento rápido, o calibre grande” e, claro, o sabor. Tudo com o objectivo de melhorar a produtividade das amendoeiras – se há um factor decisivo entre as variedades tradicionais e as modernas é esse: a produção das tradicionais é muito menor do que a das modernas. Os números não mentem: “Em 100 quilos das modernas, há 23, 25 quilos de miolo, em média. Nas tradicionais entre 17 a 20”, aponta Bruno Cordeiro.
À CAPATMAD chegam amêndoas de todo o país, “menos do Algarve” (é uma amêndoa com características especiais). “Temos associados de várias regiões, porque além de cooperativa somos associação de produtores e há muito poucas”, sublinha Ana Gil. Chegam tradicionais e modernas, nas suas muitas variedades, “limpas e secas”. “A única separação que fazemos é entre as de casca rija [as tradicionais] e as de casca mole [as modernas].” Daqui da cooperativa em Torre de Moncorvo, as amêndoas seguem, na sua maioria, para Espanha (“embora cada vez menos”), “para transformação”. Há poucas fábricas em Portugal, abundam no Sul de Espanha, que, além de ser o maior produtor europeu, é um grande centro de investigação.
É aí e a França que se vão buscar variedades como a Guara, a Ferraduel, a Lauranne e a Ferragnès, cada vez mais cultivadas numa região onde resistem com dificuldade variedades tradicionais como Casa Nova, Parada, Verdeal, Bonita e Fura Sacos, que até contribuem para um produto DOP, a “Amêndoa Douro”. “Nunca vingou, nunca andou”, afirma Bruno Cordeiro, “o caderno de especificações é retrógrado, as variedades de amêndoas que podem ser certificadas quase não existem e nunca houve mais-valia em termos monetários para os produtores.”
A área mais constante de amendoais antigos aqui na zona será o Vale do Côa. “Não teve muito investimento na agricultura, há muito abandono”, justifica Ana Gil. Em Torre de Moncorvo, Mogadouro e Valpaços assistiu-se, ao invés, a “um aumento brutal de área cultivada”. Houve incentivos governamentais, houve um aumento de preços: estes podem já não estar no seu pico, mas a amêndoa “continua rentável”. E a Terra Quente (Alfândega da Fé, Carrazeda de Ansiães, Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Valpaços e Vila Flor) continua a ser “o solar da amêndoa”, embora tal possa ter os dias contados, nota Bruno Cordeiro. O Alentejo descobriu a amêndoa muito graças ao Alqueva e “com regadio e planície” tem todas as condições para suplantar o nordeste transmontano e o Alto Douro.
Por enquanto, em região de tradicional triunvirato vinha-olival-amêndoa, é esta última que se tem expandido. “Aqui, já ninguém planta olival [a queda de preço do azeite ajuda a explicar], a vinha dá muito trabalho”. Sobra a amêndoa. “Instalou-se” muita gente, embora nem todos a tempo inteiro. Há os jovens que vivem no Porto ou Lisboa e vêm ao fim-de-semana para trabalhar nos pomares; há os agricultores que têm amendoais “e companhia”. “Poucos têm apenas amendoal”, nota Bruno Cordeiro, “porque parte do ano é parada”. A apanha faz-se em Setembro, segue-se a poda (em seco) e até Março não requer quase nada; depois vem a lavra, a fertilização, novamente a poda (verde) – “dá pouco trabalho”, considera.
Bruno Cordeiro sabe do que fala. O engenheiro instalou-se como “jovem agricultor” já com amendoeiras. Começou com 27 hectares e todos os anos vem aumentando. Como tantos outros, vai fazendo reestruturações: “Já arranquei, plantei novas variedades... Melhores, espera-se”. Mas os amendoais são omnipresentes, “aqui quase toda a gente tem alguma coisa”, nota Ana Gil. Uns são mais profissionais, outros herdam-nas e continuam a tratá-las, “é tradição”. Ana ainda se lembra de a avó passar a noite, à lareira, a britar amêndoas (a “partidela”), com pedras (“bruíços”) e ferros (“partidor”) – as cascas “eram aproveitadas para a lareira”.
Antes de chegarem às noites transmontanas, as amêndoas eram apanhadas: varejadas e recolhidas do chão para baldes (mais tarde, o toldo – agora a mecanização impõe-se: tractor, vibrador e guarda-chuva sempre que a topografia permite). “Era uma festa”, recorda, “a amêndoa era muito valorizada”. Pagava-se à “jeira” (jornada diária) e havia até quem pedisse para ir ao “rebusco” (ir recolher o que fica da amêndoa – e da azeitona – depois da apanha). Compradores iam de porta em porta, comprar aos agricultores para vender às britadeiras – a CAPATMAD, criada em 2006, veio suprimir esses intermediários, fazendo a centralização da venda, e quer ir mais longe. “Queremos britadeira”, assume Bruno Cordeiro, “a produção dos agricultores [1300 associados] seria muito mais valorizada”.
O pai de Carolino Araújo começou exactamente a comprar amêndoa e avançou para a britagem. Carolino acrescentou-lhe a transformação quando fundou uma nova fábrica, a Amendouro (1990), durante alguns anos a única fábrica de transformação de amêndoa em Portugal. No início apostou, aliás, apenas na pelagem e processamento – a britagem (a primeira fase: separa a casca do miolo) manteve-a na outra fábrica. Alguns anos depois, montou a britadeira nas instalações logo à entrada da zona industrial de Alfândega da Fé, onde a Amendouro emprega 15 pessoas. Por estes dias, o desafio é o aumento da capacidade, assume Carlos Araújo (filho de Carolino, que acompanha, sobretudo, a produção – a filha dedica-se às vendas e ao mercado externo): “Temos de trabalhar o dobro porque a produção é o dobro.”
A britadeira impõe-se quando entramos na fábrica: o barulho do monstro mecânico (silos, passadeiras, vários andares em ferro) é tal que os funcionários têm de usar protecções. Casca para um lado, miolo para o outro: este passa pela calibradora, pela pelagem (com última inspecção humana: hoje é Isabel quem, no tapete de escolha, retira “cascas, amarelas e algumas com pele”) –, de seguida pode ser palitado, laminado ou granulado; outra opção é a farinha, como a que vemos já embalada em caixotes preparada para seguir para a Alemanha. “Blanched California Almond Meal”, lê-se.
É Joana Araújo, a filha de Carolino, quem nos conduz pelos meandros da fábrica e revela que “muito do miolo é importado”. “É opção de mercado”, afirma, “a americana é mais barata” – 70% da colheita mundial vem dos Estados Unidos. E é a que inunda o mercado português. “Tem a ver com hábitos de consumo”, explica, e em Portugal “não temos a amêndoa como snack, vai mais para a confeitaria e doces”. Nesse caso, continua, “a americana trabalha-se melhor”, é mais mole, o tamanho é homogéneo e têm menos gordura (resistem mais tempo embaladas). Não importa o sabor, bastante diluído nas produções intensivas dos Estado Unidos, porque se carrega com açúcar: “Amêndoas de Páscoa, chocolates e bolos corresponde a dois terços do consumo português.” Em compensação, nos países nórdicos o consumo como fruto seco é muito maior: para esses mercados (“o grande pulmão” do negócio), a Amendouro exporta mais amêndoa nacional (o que nem sempre é fácil, sublinha Joana, já que há alguma desconfiança: “Ninguém associa Portugal a amêndoas”).
A verdade, porém, é que em Portugal também se assiste a uma alteração de hábitos. As regras da vida saudável apontam para o consumo de frutos secos e se há 10 anos a amêndoa só se vendia por altura do Natal, agora o consumo é constante ao longo do ano – e sempre a aumentar, não fosse a amêndoa rica em vitaminas e minerais (com um senão: o valor calórico). Para responder a esta nova tendência, a Amendouro, cuja actividade central é B2B, passou a comercializar também amêndoa embalada (miolo, com ou sem pele), com a marca Montes do Sabor, para o mercado regional (nacionais indiferenciadas) e para o nacional (biológicas). “É uma vantagem”, assume Joana, “estamos a pagar dois euros a mais pelas amêndoas biológicas e são estas que utilizamos para o mercado nacional.” É cada vez maior a procura por estas e, avalia Carolino, “é uma boa solução aqui no Norte”. “Não é uma cultura que necessite de muitos herbicidas e insecticidas, o que torna fácil a transformação para biológica.”
No exterior da fábrica, Carolino plantou uma espécie de montra de amendoeiras, “uma brincadeira” inacabada – Ferragem, Ferraduel, Guara, Laurane, Vairo, Constantine, Marinada, Soleta e Belona. São algumas das variedades modernas (e predominantes) que chegam à recepção da fábrica, onde se mede, por exemplo, a humidade: “É um momento crítico, porque pagamos em função do miolo.” “Tentamos separar o mais possível”, explica Joana, “até porque assim obtemos lotes mais homogéneos. Mas a grande separação é entre modernas e tradicionais. E também trabalhamos as variedades de Faro [Algarve] separadamente”. As amêndoas do Algarve, explica, têm ainda mais gordura e mais amargor do que as restantes nacionais – “Bélgica e Holanda são grandes consumidores, usam-nas no maçapão”. O que é certo é que, “antes, cada país tinha variedades de amêndoa diferentes”, sublinha Carlos, “agora, através de laboratórios, criam-se variedades que são muito mais rentáveis para os agricultores e para nós”. E “tudo passou a ser igual na Europa”. “As amêndoas são ‘mediterrânicas’.”