Carlos Ferreira, guardião das máscaras de Sendim: "A máscara é o mundo que nos rodeia"
As palavras mágicas são secretas — talvez em mirandês. Estamos em Sendim, no fim do mundo, onde as máscaras são moldadas a formão e goiva.
Estamos em Sendim. Estamos à porta da Caverna de Ali Babá. "E quem conhece as palavras mágicas é que entra". Carlos Ferreira disse-as por nós e mostrou-nos os tesouros que lá guarda, a arte por lapidar, os troncos (de nogueira, de choupo, de olmo, de laranjeira, de azinheira, de amieiro...) que vão ser rachados a meio e moldados em máscaras, almas gémeas separadas e penduradas nas paredes como troféus de caça. "A máscara é o mundo que nos rodeia."
"Estamos no sítio onde eu procedo ao crime. Uma coisa singela, muito simples", diz Carlos, 58 anos, que se lembra de surripiar a navalha ao pai para "afiar paus". "Emprestar era difícil... que nós partíamos o bico". Ainda cá está "a velha enxó" do bisavô Francisco entre muitas ferramentas. "Não há assim muito aparato, muita maquinaria. São essencialmente coisas para furar, lixar e motosserras", enumera, destacando "os formões e as goivas". "O meu pai Abílio era artesão. As máscaras não eram a temática dele. Fazia muitas miniaturas: de rocas, de reco-recos, de carros de bois... E a minha mãe era artesã na área da lã de ovelha: fiava, tricotava..." A linhagem de artistas prolongou-se no tempo.
Chega um tronco à oficina e Carlos dá-lhe um corte longitudinal, expondo duas faces que depois serão desbastadas. A madeira da máscara deve ser uma madeira leve. "Porque a máscara é para o ritual. E o ritual pode muitas vezes demorar quatro, cinco, seis horas. Quanto mais leve for a madeira da máscara que traz a pessoa que encarna o ritual, melhor. É muito físico. As pessoas correm e saltam!", explica o artesão que guarda mais ou menos 120 peças em permanência — entre a sua colecção intocável e máscaras que vai vendendo entre os 100 e os mil euros.
Pode ser um disfarce, um objecto lúdico, religioso ou artístico. "Tanto pode revelar como esconder uma identidade ou, ainda, transformar a vida de quem a usa", aponta Carlos, multifacetado como as gentes de Sendim (formado em Geografia do lançamento Regional, assina o belo livro L Miu Purmeiro Lhibro an Mirandés e gere o hotel rural La Tenerie, que significa fábrica de curtumes em mirandês, e onde funcionou uma ligada à diáspora judaica, entre os séculos XVI e XVIII).
Estamos no interior da Caverna de Ali Babá. Estamos em Sendim. Estamos no fim do mundo. "O sangue demora mais a chegar às extremidades do corpo humano, aos dedos dos pés e das mãos. E por isso temos mais problemas de circulação. No resto é igual. A capital significa cabeça. Tudo o que a cabeça pensa demora mais a irradiar até às pontas." Em Trás-os-Montes, sugere Carlos Ferreira, "ficou um espaço, um território que preservou muito a ancestralidade — como o Mirandês, uma língua que se manteve viva por causa do isolamento."
A máscara "existe em todo o lado do mundo". Mas nesta zona do país as máscaras são descaradas, ajudam a revelar barreiras de comunicação com o Litoral, esse privilegiado. "Os caminhos vão afunilando", explica. "Para entrar em Lisboa temos cinco ou seis auto-estradas, com várias faixas em cada uma. E depois os caminhos vão estreitando, estreitando, estreitando até que aqui chegamos. Aqui há alcatrão desde que se fizeram as barragens. Antes havia caminhos de terra batida para burros."
Das fraquezas, os artesãos e outros criativos fazem forças, formões e goivas em riste. "Hoje em dia, estamos numa outra fase a nível civilizacional, vivemos um tempo de mundialização. O facto de nos termos preservado, ajuda-nos. Porque do ponto de vista das potencialidades turísticas o que conta mais é a diferenciação. Nós somos diferentes dos outros. E por sermos diferentes vale a pena ver. Hoje há que cultivar a diferença. Porque a mundialização uniformiza-nos."