Steve Paxton: E se desta vez o visitante dançasse em vez de ficar só a olhar?
Quando se faz uma exposição em torno de um dos mais influentes bailarinos e coreógrafos da segunda metade do século XX não é de estranhar que ela traga um convite para dançar. A partir deste sábado, a Culturgest, em Lisboa, promete activar o espaço das suas galerias e o corpo dos seus visitantes com base no trabalho de Steve Paxton, que é todo um universo (ou mais).
Ver uma exposição transformada num estúdio e, ao mesmo tempo, num arquivo de movimentos e reflexões, num território marcado pelo acto constante de experimentar com o corpo todo não é comum mas justifica-se plenamente quando o que nela se quer explorar (mostrar seria neste caso demasiado redutor) é o trabalho do coreógrafo, bailarino e improvisador Steve Paxton. É que nada no que este norte-americano trouxe à dança nas últimas seis décadas é comum, nem mesmo quando lida com os gestos aparentemente mais vulgares do dia-a-dia.
Esboços de Técnicas Interiores (até 14 de Julho), exposição que a partir deste sábado ocupa boa parte das galerias da Culturgest, em Lisboa, é sobretudo um convite à dança e ao pensamento, um repto para que quem ali entra abdique do seu estatuto de espectador e aceite transformar-se num fazedor.
“Não nos interessava abordar o trabalho do Steve apenas a partir de vídeos em que ele dançasse as suas peças. Isso seria pobre e muito difícil. Para o fazermos teríamos de ser exaustivos já que ele acredita que cada apresentação é como que uma peça nova, única, irrepetível. Quisemos criar uma experiência”, explica Romain Bigé, bailarino que se tem dedicado à filosofia da dança e que divide o comissariado da exposição com João Fiadeiro que, tal como ele, estudou com Paxton e que em Portugal está entre os que mais exploraram as possibilidades do Contacto Improvisação, técnica criada pelo norte-americano em 1972. “Quisemos traduzir para o visitante uma percepção física do trabalho do Steve”, diz por seu lado o bailarino e coreógrafo português.
Imagens de arquivo de peças de Steve Paxton, entrevistas, publicações e instalações originais reunidas num lugar onde se passa, também, por John Cage e Bach (estão lá, por exemplo, as Variações Goldberg numa interpretação do histórico Glenn Gould, partitura de que Paxton se apropria em 1986, dançando-a até 1992), um lugar onde se pode dançar, meditar e até dormir ao som da voz do coreógrafo e bailarino americano lendo o seu último livro Gravity (Contredanse, 2018).
A ideia, explica Fiadeiro, é que, inspirados pelo que de Paxton se pode ver projectado nas paredes e no tecto, os alunos de várias escolas, como a Superior de Dança, a Faculdade de Motricidade Humana e o Centro em Movimento, se tornem “okupas” deste espaço. “Uma das salas vai funcionar como um estúdio, com um pequeno vestiário onde as pessoas podem deixar as suas coisas e dançar. Os alunos só têm de comprar bilhete uma vez e depois podem voltar sempre que lhes apetecer. Queremos que vejam as galerias como um espaço de trabalho. Mas elas estão abertas a qualquer pessoa que queira tirar os sapatos e dançar. No estúdio ou nas outras salas.” Fiadeiro e Bigé fizeram-no na quinta-feira, durante uma visita guiada para jornalistas, e fá-lo-ão certamente ao longo dos quatro meses da exposição, esperando que muitos outros os acompanhem.
E é para “qualquer pessoa” porque o trabalho de Paxton, escreve a historiadora e crítica de dança Sally Banes em Terpischore in Sneakers, “abriu o leque do movimento ‘não dançado’, uma variedade de estruturas não-hierárquicas”. Para entrar no estúdio desta Esboços de Técnicas Interiores basta caminhar ou simplesmente estar de pé. “Andar é uma coisa que toda a gente faz, até mesmo os bailarinos que não estão em ‘on’. Andar cria uma ligação empática entre os performers e os espectadores, é uma experiência partilhada que admite idiossincrasias e estilos individuais. Não há apenas uma maneira correcta de andar”, lembra Banes.
O que Steve Paxton e outros da sua geração fizeram pela dança foi, entre outras coisas, aproximá-la das pessoas sem formação na área, abrir a porta e dizer-lhes que também elas podiam entrar. Esta exposição-homenagem — Fiadeiro e Bigé não têm qualquer intenção de esconder o seu fascínio pelo coreógrafo e pelo seu trabalho — quer imitar-lhes o gesto. “Conheci o Steve Paxton aos 23 anos e isso mudou completamente a minha percepção da dança, do mundo, das pessoas”, recorda o coreógrafo português, cuja técnica Composição em Tempo Real beneficia da sua experiência com o Contacto Improvisação.
Primeiro, andar
O visitante/interveniente é convidado a percorrer uma rede de oito espaços, alguns comunicantes entre si, como as duas salas logo à entrada, que partilham o muro onde é projectada uma das peças mais marcantes do início da carreira do coreógrafo e pensador norte-americano, Satisfyin’Lover (1967).
“Aqui o Steve pega em 42 pessoas e propõe-lhes que atravessem o espaço. São pessoas comuns, que podemos encontrar na rua, mas estarão a andar como andariam se estivessem na rua?”, pergunta Fiadeiro, enunciando, assim, uma das muitas questões que servem de base ao trabalho e à reflexão que Paxton faz a partir do caminhar. “O que é que faz com que um gesto quotidiano possa ser encarado como performance? Posso andar ou agarrar alguma coisa em palco sem que esse contexto de apresentação altere a maneira como o faço? Foi nestas e noutras perguntas que partem do movimento pedestre que tudo começou para ele depois de ter trabalhado com o Merce Cunningham [Paxton dançou na companhia deste coreógrafo americano absolutamente incontornável na história da dança entre 1961 e 1964]”, lembra o coreógrafo.
A estrutura desta exposição, concebida numa lógica cronológica e para que o visitante seja levado a experimentar as sensações de um bailarino, tem seis núcleos centrais, cada um deles dedicado a criações seminais, técnicas ou momentos particularmente significativos do caminho até aqui percorrido por Steve Paxton, para quem a dança é muitíssimo mais do que uma sucessão de movimentos pré-determinados e confinados a um vocabulário restrito, entendível e executado apenas por um punhado de iniciados.
Depois de Satisfyin’Lover, “um estudo sobre movimento pedestre”, assim é apresentado, surge o módulo centrado no grupo nova-iorquino Grand Union (1970-76), de que Paxton fez parte, composto por artistas que se dedicavam a improvisações colectivas, criando peças em que a hierarquia tradicional — um a dirigir, os outros a serem dirigidos — era completamente posta de parte. Nesta segunda sala (“um estudo da anarquia” que, neste contexto, tanto agradava ao coreógrafo e tão em consonância estava com a reacção ao momento político que se vivia naqueles anos 70) mostram-se exemplos das sessões do Grand Union e ainda, numa pequena televisão ao canto, Air/Beautiful Lecture (1973), obra do mesmo período em que Paxton combina imagens de um filme pornográfico, com as do primeiro discurso televisivo do Presidente americano Richard Nixon sobre o escândalo Watergate e outras ainda do clássico O Lago dos Cisnes, numa interpretação do Bolshoi.
“O Steve costuma dizer que esta peça é uma lição sobre uma das obsessões do mundo ocidental, o orgasmo. No bailado clássico a narrativa, o movimento e a música procuram um clímax, também Nixon procurou criar momentos dramáticos num discurso que era, já de si dramático”, explica Romain Bigé. O trabalho do Grand Union, e o de Paxton em particular, contraria precisamente esta ideia de clímax. “As sessões do colectivo chegavam a durar três ou quatro horas. Tudo aquilo se fazia numa lógica de continuidade, de ritmo constante, sem picos, sem clímax. Numa lógica de preliminares”, acrescenta Fiadeiro. “Eram três ou quatro horas de negociações entre corpos”, completa Bigé.
Um corpo em negociação
Depois de na terceira sala de Esboços de Técnicas Interiores, o estúdio, o foco incidir sobre o Contacto Improvisação (objecto da tese de doutoramento de Bigé, Le partage du mouvement), sobre o que acontece quando dois corpos se encontram, os núcleos 4 e 5 convidam o visitante a deitar-se (“um estudo da gravidade”) e a permanecer de pé sem sair do mesmo lugar (“um estudo da imobilidade”). Um e outro complementam-se já que, “mesmo quando estamos de pé, estamos a executar a continuidade da queda”, lembra o comissário.
No exercício de imobilidade, enquadrado pelas pesquisas que o músico e compositor John Cage faz em torno do silêncio, será possível experimentar uma técnica que Paxton usa com os bailarinos, mostrando-lhes os pequenos ajustes que o corpo faz para que possa estar de pé, algo que pode ser mais complicado do que parece. “Todos nós somos especialistas na técnica do Steve Paxton, só que não sabemos. Todos nós andamos, caímos, todos nos sentamos ou deitamos. E se assim é, podemos dançar, não temos de ficar só a olhar”, defende Fiadeiro.
“A partir daquilo a que ele chama ‘small dance’ podemos pensar no que sobra do movimento quando estamos parados”, acrescenta o bailarino-filósofo Romain Bigé. “Há sempre movimentos que ficam, involuntários, pequenas negociações que fazemos com o nosso corpo para que se mantenha quieto, direito, deitado ou em qualquer outra posição.”
As últimas galerias da exposição são consagradas a Material para a Coluna — técnica que Paxton começou a desenvolver em 1986 e que se concentra nos músculos que suportam a coluna vertebral e nas ligações que ela mantém com a pélvis, a cabeça, as omoplatas —, nas possibilidades e impossibilidades do trabalho a solo e no dueto PA RT (1981), que o bailarino dançou com Lisa Nelson durante 25 anos. E um quarto de século depois, continuava a questionar-se, sublinha o comissário: “Como posso dançar um dueto sem que haja de imediato uma leitura romântica, heteronormativa típica? Como posso dançar contigo, Lisa, depois de o fazer há já 25 anos e de te conhecer há 50, como se fosse a primeira vez?”
E é porque as perguntas que faz a si mesmo têm o infinito poder de intrigar, que a obra de Steve Paxton não deixará de inquietar. Fiadeiro e Bigé oferecem disso uma amostra na exposição que abre este sábado, eixo central de uma “grande operação”, assim lhe chamou Delfim Sardo, assessor da Culturgest para as artes visuais, que inclui as peças seminais Flat e Satisfyin’Lover interpretadas pelo esloveno Jurij Konjar (este sábado, às 19h), uma conferência do coreógrafo norte-americano (este domingo, 18h30) e muitos workshops, sessões de improvisação e conferências até Julho.
“Esta exposição permite-nos um exercício a que chamo de retroprospecção — olhar para a contemporaneidade buscando referências para o futuro no passado recente, como aconteceu com o Michael Snow”, diz o curador Delfim Sardo, explicando em seguida por que razão nunca poderia ser o comissário de Esboços de Técnicas Interiores: “Em se tratando de Steve Paxton, era preciso alguém que conhecesse com o corpo o seu trabalho e que tivesse reflectido o suficiente sobre ele.”
Alguém que já tivesse dedicado muito tempo a perguntas como: “O que está o meu corpo a fazer quando não tenho consciência dele?” ou “Como é que sabes que não estás a improvisar?” Esta e outras questões atravessarão o ciclo que Fiadeiro definiu aos jornalistas na quinta-feira como uma “oportunidade para pensar”, um “convite”. A seu lado, pouco depois e por breves momentos, Steve Paxton falou sobre o que a exposição propõe – um passeio pela sua obra, num arco cronológico que vai de 1967 a 2010. E fê-lo como sempre, como se tudo fosse demasiado evidente e, por isso, dispensasse muitas palavras: “Quando se vê dança, e a boa dança é muito estimulante, toma-se a experiência do bailarino através do olhar. Eu nunca tentei representar a vida, só a vivi.”