Vítor, que buscou entre os krahô “um outro mundo”
Os krahô gostam de se deixar filmar, mas a noção de ficção é nebulosa. Notícias de um “outro mundo”, trânsito que permite compreender “o nosso jeito ocidental de ver o mundo”.
Nascido e criado em Brasília, onde se formou em Ciências Sociais “com mais ênfase na Antropologia”, Vítor Aratanha “zarpou”, aos 24 anos, em Novembro de 2008, para Itacajá, interior do estado de Tocantins. Foi coordenar o escritório local do Fundo Nacional do Índio. Três anos depois começou a trabalhar na aldeia de Pedra Branca, comunidade krahô, na escola e na comercialização de artesanato. O seu caminho cruzou-se com o cinema quando se cruzou com Renée Nader Messora, futura realizadora, com João Salaviza, de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (rodado com os habitantes de Pedra Branca), e com o projecto de Renée de organizar oficinas de captação de imagens nas aldeias krahô. Levaria à formação do colectivo Mentuwajê Guardiões da Cultura, “em que os jovens aprenderam a filmar e a montar os seus próprios filmes.”
“Os krahô vêem o cinema no mesmo léxico de significados onde está o espírito, a alma: o seu duplo. Chamam-lhe ‘brinquedo’, tudo é carõ, carcarõ — carrinho de brinquedo —, krarecarõ — boneca. Mas encontramos logo uma lacuna interessante: a noção de ficção ainda é nebulosa para eles. Ainda só uma minoria entende que a novela da televisão ou os filmes de luta são armações roteirizadas” — Vítor assistiu à chegada de energia eléctrica à aldeia em 2016. “Só agora os mais jovens estão a acompanhar mais as novelas e muitos ainda não entendem que cada queda, soco ou beijo é tudo montado. Ao mesmo tempo, gostam de se deixar filmar para depois se verem — se for entre eles; se for um não-indígena a filmar é outra coisa. Passa por aí o entendimento do universo do cinema e da produção de imagens”.
A chegada de Salaviza à aldeia, levado por Renée, “foi tranquila. A Renée é uma figura querida pela comunidade há algum tempo” — há dez anos que está entre eles. “Acredito que o viam como o namorado, marido, da Renée, até hoje não fazem ideia de quem ele é para o cinema. Lá, ele é o Wyhwy, tem uma família e tem relações de amizade com quem já pode ficar mais tempo a conversar, a conhecer...”
Vítor é casado com uma krahô, com quem cria três filhos — “o mais velho é meu enteado, os dois mais novos têm a minha mistura.” Fala de uma “auto-estima ontológica muito baixa” entre os krahô, o que é “reforçado pela relação com os regionais, que afirmam a inferioridade deles”. Foi em Cannes 2018 que ouvimos Ihjãc, o intérprete de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, dirigir-se aos espectadores da sessão admitindo que em circunstâncias normais aquelas pessoas lhe meteriam medo.
“Temos que entender isso em dois ambientes diferentes: a sociedade do entorno, os municípios de Itacajá e Goiatins, bem mais hostil e preconceituosa, no entanto próxima na comunicabilidade, e a sociedade cosmopolita, representada pelas figuras das grandes cidades que convivem com eles de forma mais respeitosa e que buscam a troca constante — eu, a Renée e o João estamos nesse grupo. Porém a barreira linguística é acentuada e como não dominam o português, ficam perdidos nas conversas, não conseguindo interagir. No caso do Ihjãc, por ser novo, essa diferença de compreensão da realidade é ainda maior. Realmente a relação com os regionais é mais tensa, e somando-se ao problema do alcoolismo, alguma situação pode descambar em violência física, infelizmente.”
Vítor buscou entre os krahô “um outro mundo”. Nada de sacerdócio ou vocação. “O que muda é a percepção do mundo. Viver entre dois mundos permite que nos consigamos deslocar com facilidade para compreender, inclusive, as próprias atitudes e recalques que marcam o nosso jeito ocidental de ver e lidar com o mundo”.