Circum-navegação: a Magalhães o que é de Magalhães, a Elcano o que é de Elcano. E sem nacionalismos
“Devemos pôr lado a lado Magalhães e Elcano na hora de atribuir méritos na primeira volta ao mundo?”, perguntámos a seis historiadores portugueses e espanhóis. Eis as reflexões que fizeram a partir desta pergunta algo maniqueísta.
Foi há 500 anos que partiu a armada que viria a dar a primeira volta ao mundo, ainda que de início não fosse esse o objectivo. Em Espanha, as comemorações de uma viagem feita sob a alçada de um rei castelhano, que começou por ser capitaneada por um português, foi concluída por um basco e narrada por um italiano, levantaram polémica nas páginas dos jornais. Artigos a acusar Portugal de se apropriar da primeira circum-navegação, sublinhando os feitos do navegador Fernão de Magalhães e ignorando inexplicavelmente os de Juan Sebastián Elcano, sucederam-se. “Devemos pôr lado a lado Magalhães e Elcano na hora de atribuir méritos na primeira volta ao mundo?”, perguntámos a seis historiadores portugueses e espanhóis. Uma pergunta algo maniqueísta para estimular a reflexão.
Não há duas histórias, há só uma
Toda esta discussão é na essência negativa, cheia de ressaibos de um nacionalismo básico. É preciso que se abandone esta posição tacanha de reclamar feitos heróicos do passado, muitas vezes simplesmente imaginários. Fernão de Magalhães e Juan Sebastián Elcano deram a volta ao mundo apenas por força das circunstâncias. Nenhum deles tencionava ser o autor deste feito marítimo, porque, simplesmente, nenhum deles tencionava circum-navegar o globo quando saíram de Espanha: as instruções que tinham diziam exactamente o contrário, aliás: a ideia era ir às Molucas e regressar pelo mesmo caminho.
Elcano completa a viagem porque o Magalhães foi morto e porque não estão disponíveis outros capitães e pilotos. E fá-lo pela Rota do Cabo, mesmo correndo o risco de encontrar os navios dos portugueses. “Perdido por 100, perdido por 1000”, terá pensado: voltar pelo mesmo caminho, depois do que lhes tinha acontecido na travessia do Pacífico — que foi terrível — não era uma opção. A primeira viagem de circum-navegação foi, por isso, circunstancial. O processo de valoração é muito posterior e dá-se, sobretudo, a partir do século XIX.
A polémica a que agora assistimos na imprensa espanhola é artificial e só afecta quem não tem a capacidade de ver as coisas friamente, com o necessário distanciamento de patriotismos primários. Esperemos que não extravase para os media portugueses: já nos bastam as falácias sobre o “Museu das Descobertas” inventadas por discursos de pendor exclusivamente ideológico e mal informados (mas verdade se diga que até o nome foi mal escolhido). Não há duas histórias, há só uma, e nós não temos de escolher entre uma versão espanhola e outra portuguesa. Não temos.
Francisco Contente Domingues
Professor catedrático de História dos Descobrimentos e da Expansão do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor, entre outras obras, de Navios e Viagens: A Experiência Portuguesa dos Séculos XV a XVIII. É o director do Dicionário da Expansão Portuguesa (Círculo de Leitores, 2016)
Uma visão tradicional e passadista
Não creio que seja necessário recordar a distinção introduzida por Max Weber e velha de mais de um século entre o político e o cientista ou lembrar que os historiadores profissionais sempre alertaram para os usos políticos e sociais da História para concluir que esta “polémica” — sublinho as aspas — me parece claramente excessiva e com argumentos anacrónicos.
Não se trata de negar a pluralidade própria das perspectivas e representações da História enquanto passado, mas de sublinhar que leituras políticas do passado no espaço público em nome de um certo presente, além do ruído produzido, não coincidem com a interpretação dos historiadores que se dedicaram a estudar esses temas.
No caso da primeira viagem de circum-navegação do globo (1519-1522) e do modo como a efeméride está a ser perspectivada por sectores da sociedade espanhola — e referindo-me em concreto às reacções plasmadas em alguns periódicos —, eu diria que esta reacção nacionalista radica numa visão tradicional e passadista das relações no mundo ibérico, mas também nas fracturas actuais e nas preocupações soberanistas face aos problemas constitucionais de Espanha.
Uma visão tradicional da História é aquela que ignora ou que pretende secundarizar o facto de que a História de Portugal e de Espanha é uma história conectada e que foram gerações de políticos e de historiadores ao serviço dos Estados-nação que contribuíram para escavar e aprofundar um fosso entre os dois países.
Querer separar o processo de expansão europeia e a construção dos impérios em espaços estanques é ignorar a complexidade da História e a porosidade dos impérios. No final do século XV e início do século XVI, portugueses participavam com ingleses na navegação e exploração do Atlântico Norte, do mesmo modo que italianos foram agentes da expansão portuguesa. Nas primeiras décadas do século XVI, portugueses e castelhanos eram tanto rivais como colaboradores. A viagem que começou sob o comando de Fernão de Magalhães e terminou comandada por Juan Sebastián Elcano é um bom exemplo dessa interacção.
José Damião Rodrigues
Professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e um dos autores da História da Expansão e do Império Português
Magalhães? Elcano?
Houve um tempo em que, imitando Plutarco, esteve na moda criar vidas paralelas. Não creio que essa seja uma maneira oportuna de fazer história, já que comparar dois grandes homens acaba por levar, de forma maniqueísta, à pergunta — qual foi o melhor? — cuja resposta depende da opinião de cada um, sobretudo num tema como este, que pode ficar enlameado de preconceitos nacionalistas.
Na minha opinião, todo o mérito da viagem, até à sua morte em Mactan, pertenceu a Magalhães. Se o motim organizado por alguns espanhóis tivesse triunfado no Porto São Julião e a armada tivesse regressado a Sevilha (como fez, depois, a San Antonio), nunca se teria atingido o objectivo desejado, a especiaria. E desde logo Elcano teve um papel muito activo nesta sublevação, armando a artilharia na coberta da nau San Antonio para que se pudessem impor pela força. Se a rebelião tivesse vingado, a ele lhe caberia parte da culpa no falhanço desta empresa. Magalhães, porém, jamais pensou em fazer uma circum-navegação: tinha-se comprometido a não sulcar águas sob jurisdição portuguesa e ele, homem de palavra, teria sem dúvida cumprido a promessa, tentando, caso tivesse sobrevivido, regressar pelo Pacífico.
Elcano ganhou protagonismo depois do massacre de Cebu. Restando só duas naus na armada, Elcano e Espinosa decidiram que cada um tomaria um rumo diferente para informar Carlos I [futuro imperador Carlos V] do êxito da missão: o primeiro, pelo Cabo da Boa Esperança; o segundo, pelo Pacífico. Foi assim que acabou por se realizar a navegação até então impensável. Nesse grande périplo [de regresso] todo o mérito pertence a Elcano, um homem com uma personalidade menos vincada que Magalhães (Pigafetta não o cita), mas um navegador igualmente formidável.
Por isso, se temos de festejar hoje a descoberta do Estreito e a travessia do Pacífico, celebremos Magalhães; se temos de festejar a primeira circum-navegação, elogiemos Elcano. Não sejamos mesquinhos com as glórias de cada um. E mais, quanto a mim, neste aniversário devíamos louvar não apenas os sobreviventes, mas todos os homens que, de uma maneira ou de outra, participaram naquela grande proeza (entre eles 31 portugueses, 26 italianos, 19 franceses e nove gregos). Seria também uma maneira bonita de ir construindo, com este reconhecimento global, a Europa unida que todos desejamos.
Juan Gil
Catedrático de Filologia Latina da Universidade de Sevilha e autor, entre outras obras, de Mitos y Utopías del Descubrimiento e Columbiana. Estudios sobre Cristóbal Colón. 1984-2006
Imaginada por um português, acolhida por um espanhol
A premissa básica a partir da qual se deve desenvolver a presente discussão é que a História não deveria servir de pasto a tendências nacionalistas, venham de onde vierem.
Se a viagem de 1519-1522 — concebida e iniciada sob o comando de Fernão de Magalhães e levada a bom porto por Sebastián Elcano — foi sancionada pelo poder político castelhano, e por ele organizada e financiada, nela é impossível obscurecer a importância dos contributos portugueses.
Desde logo, o esboço da viagem só é compreensível atendendo ao processo expansionista de Portugal, no âmbito do qual se concebeu linearmente a exploração da costa ocidental africana, a chegada à Índia por via do Atlântico e a construção de uma rede marítimo-comercial nos mares da Ásia, em que as especiarias raras das ilhas de Maluco [Molucas] se afiguravam vitais aos interesses mercantis geridos a partir do empório de Malaca. O interesse de Carlos V pelas ditas ilhas apenas se definiu na sequência da intervenção dos súbditos de D. Manuel I naquela parte do mundo e da concomitante obtenção de rendimentos, em articulação com a convicção de que estariam na área de influência castelhana definida em Tordesilhas.
E, em concreto, como nasceu o interesse de Carlos V? Por sugestão de Magalhães, que tivera acesso a dados úteis ao serviço de D. Manuel I. Consumada a ruptura com o rei Venturoso, foi de forma óbvia que Magalhães viu o reino vizinho como espaço de afirmação, à semelhança, aliás, do que Vasco da Gama ameaçou fazer pela mesma época. Se foi portuguesa a fonte do projecto de alcançar as ilhas de Maluco por via de uma passagem marítima no extremo meridional do continente americano e de estabelecer ali a tutela castelhana, eram também portugueses diversos pilotos e tripulantes da armada que largou de Sanlúcar de Barrameda.
Se a viagem de 1519-1522 não representou oficialmente um empreendimento ibérico, atentando mesmo contra os interesses de D. Manuel I, a verdade é que muito dificilmente teria sido realizada sem a inspiração e as colaborações do lado português. Neste âmbito, que papel deve então a História reservar a Elcano? O de um agente que ganhou protagonismo circunstancialmente, após a morte de Magalhães, mas que teve o engenho de conduzir a nau Victoria de volta a Sanlúcar, consumando, de modo imprevisível, a primeira circum-navegação da Terra.
Alexandra Pelúcia
Professora auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, investigadora do CHAM – Centro de Humanidades e autora de Afonso de Albuquerque: Corte, Cruzada e Império
O extraordinário e o circunstancial
A primeira viagem de circum-navegação é, sem dúvida, um marco na História dos Descobrimentos e da globalização pelo facto de ter sido a primeira travessia do oceano Pacífico que ficou registada na História e isso deveu-se ao génio de Fernão de Magalhães. Aliás, a pertinácia de Magalhães foi o factor determinante para que a expedição atingisse as Filipinas, pois foi ele quem persistiu junto das autoridades castelhanas a fim de obter autorização e financiamento para a constituição da armada, foi ele quem teimou em prosseguir para sul até encontrarem o estreito que ganhou o seu nome e foi ele, finalmente, que teve o conhecimento e a intuição para traçar a rota certa para atravessar o oceano Pacífico sem dispor de nenhuma informação prévia.
Sebastián Elcano era um oficial da expedição que só assumiu a capitania de uma das embarcações por causa da confusão causada pela morte de Magalhães e de outros oficiais, e que decidiu buscar a Europa prosseguindo a navegação para oeste. Elcano comandou, assim, os poucos homens que completaram pela primeira vez uma viagem de circum-navegação da história da humanidade.
Logo no século XVI a fama e o prestígio resultantes desta expedição distinguiram mais a memória de Magalhães do que a de Elcano, mas os méritos de cada um deles são diferentes e tanto uns como outros devem ser evocados hoje como duas partes complementares de uma única viagem, ainda que o protagonismo de Elcano seja uma consequência dos feitos extraordinários de Magalhães.
João Paulo Oliveira e Costa
Professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, director do CHAM – Centro de Humanidades, coordenador e co-autor de História da Expansão e do Império Português
Ligar o mundo em todos os sentidos
Esta viagem estabeleceu, querendo ou não, uma nova fronteira na história da humanidade. A expansão europeia dirigida ao Atlântico de finais do século XV e inícios do XVI conseguiu globalizar o mundo (mostrou que a Terra era um planeta e um planeta oceânico), ligando-o em todos os sentidos e unificando-o. Em apenas 30 anos, entre 1492 e 1521, dois terços do globo foram “explorados”, ficando “conectados”, com todas as consequências que isso implicava e que devem ser apontadas.
Não deve esquecer-se, para se ter uma ideia dos avanços da geografia nesses 30 anos, que a distância (a medida é feita sobre a linha do Equador e no sentido oeste-este) entre a costa atlântica castelhana/portuguesa e a capital do império chinês é apenas um terço da totalidade dos 40 mil km equatoriais. Os outros dois terços correspondem à distância entre a mesma costa atlântica, agora no sentido este-oeste, e o mar da China, precisamente o curso seguido por Magalhães e que Elcano continuou até completar os 360º da circum-navegação para poder regressar a Sevilha pelo caminho mais curto.
O estabelecimento destas gigantescas conexões atlânticas, unindo pela primeira vez os cinco continentes, foi sem qualquer dúvida um processo colectivo. Fica fora de qualquer visão nacionalista, dado que nele participaram actores procedentes da maior parte das regiões europeias e asiáticas, afectando também importantes sociedades americanas, africanas e da Oceânia.
Este processo foi impulsionado pelas monarquias castelhana e portuguesa, empenhadas numa expansão comercial e política para ocidente, contando com grandes avanços na tecnologia náutica, na cartografia e na astronomia que permitiam que a navegação avançasse oceano dentro. Um desenvolvimento alcançado nos portos atlânticos portugueses e andaluzes, promovido a partir de centros comerciais de primeira ordem, como Lisboa e Sevilha, motores desta expansão.
Por sua influência, milhares de “ventureiros” (quem procura sorte nos bons ventos) vindos dos mais variados cantos da Europa fixaram-se nestes portos, oferecendo os seus conhecimentos e os seus serviços em projectos que lhes permitiriam alcançar as utopias da época: unir glória e fortuna, conseguindo por si mesmos honra, fama e riquezas. Pela primeira vez, os ventos não arrastariam os marinheiros a seu bel-prazer, como tinham feito a Ulisses; os ventos levá-los-iam a onde eles queriam ir.
Juan Marchena
Catedrático e director da Área de História da América da Faculdade de Humanidades da Universidade Pablo de Olavide, Sevilha. É autor, entre outras obras, da América Latina. De los Origenes a la Independencia (com Juns C. Garavaglia)