Quem é que acabou de entrar pela velha Hollywood?
É um período estranho, este, pela coabitação de tempos que parecem excluir-se: um sistema aflito com a crise e algo de novo que ainda não se erigiu como modelo. Mas sente-se uma “presença”. É uma nova Hollywood? E Roma, é um cavalo de Tróia?
Se Roma, de Alfonso Cuarón, vencer esta madrugada, será o melhor Óscar do melhor filme em uma década. Para que se lide com a subjectividade deste statement, e para que cada um possa fazer também o seu, eis a lista: em 2010 ganhou Estado de Guerra, de Kathryn Bygelow, nos anos seguintes as escolhas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood foram O Discurso do Rei, O Artista, Argo, 12 Anos Escravo, Birdman, O Caso Spotlight, Moonlight... Mas, nos últimos meses, uma ansiedade de fim de festa vem sendo palpável. Um apresentador da cerimónia desapareceu, os prémios técnicos estiveram para desaparecer nos intervalos da transmissão televisiva para o show ser mais amigo das audiências... Enfim, uma turbulência que, a juntar à tentativa, depois abortada, de criar um Óscar para o filme mais popular, mostra que Hollywood duvida da sobrevivência do seu capital simbólico e da persistência dos espectadores em seguirem o (seu) espectáculo. No meio desta aflição, temos o Netflix, o serviço de streaming que até agora não queria jogar as regras do jogo do cinema tal como o conhecíamos e desprezava a experiência em sala, a fazer tudo para que Roma chegue ao Óscar.
Gastou muito dinheiro em promoção, mas deu outro sinal: passou a matizar a sua inflexibilidade, fazendo com que o projecto pessoal do cineasta mexicano pudesse ser descoberto de forma tradicional em vários territórios antes do streaming. Isto é, o “novo” vem procurando a caução do “velho”. E isso nitidamente desde que Roma arrebatou o Leão de Ouro de Veneza, festival em que o Netflix começou a recortar de forma mais determinada o seu perfil de objecto de desejo, porto de abrigo dos autores (Scorsese está por lá também...). Ele, o Netflix, que no Lido até se mostrou “salvador” de Orson Welles, ao possibilitar a descoberta do incompleto The Other Side of the Wind. Cuarón, aliás, não poupou elogios à forma como foi tratado: assume que sem o Netflix, e apenas com o modelo de exibição tradicional, um pequeno e pessoal filme mexicano como o dele não teria visibilidade nas salas povoadas de super-heróis.
É um período estranho, este, pela coabitação de tempos que parecem excluir-se: uma ordem em crise e algo de novo que ainda não se erigiu como modelo. Mas sente-se uma “presença”. É uma nova Hollywood?
Não por acaso, há dias a Atlantic forçava a nota e lia “bizarros” paralelismos entre a cerimónia dos Óscares de 1969 – um espectáculo que também decorreu sem apresentador e que apostou como guest stars num misto de clássicos e de recém-chegados, para representar a contracultura que gritava lá fora e desnorteava o sistema a braços com o decréscimo de espectadores nas salas... – e esta cerimónia de 2019. Em que há coisas que há muito não aconteciam e coisas que são uma primeira vez.
Não é a primeira vez que um título concorre ao Óscar para melhor filme estrangeiro e está nomeado também para melhor filme. Mas é intenso o favoritismo de Roma para que o espanhol e uma língua mixteca triunfem sobre o hollywoodiano mapa com a América no centro – o crossover, que resulta da mudança dos critérios de voto na Academia, estende-se às actrizes do filme, Yalitza Aparicio e Marina de Tavira. Mais: desde 1977, desde esse glorioso ano de 1977 (é ver quem andou por lá: Taxi Driver, Escândalo na Televisão, Os Homens do Presidente, Rocky ou Ingmar Bergman...), que não acontecia dois realizadores estrangeiros estarem nomeados por filmes não falados em inglês: aconteceu com Bergman (Face a Face) e Lina Wertmuller (Pasqualino Settebellezze), acontece agora com Cuarón e com o polaco Pawel Pawlikowski (Guerra Fria). Pode aliás criar-se uma tempestade perfeita e com poder simbólico imprevisível se o Óscar do Melhor Filme e o do Melhor Realizador forem repartidos por estes dois estrangeiros que filmaram a preto e branco. Aliás, Roma, Guerra Fria e o alemão Nunca Deixes de Olhar, de Florian Henckel von Donnersmarck, juntam entre si 15 nomeações em várias categorias.
Há mais ainda: no ano em que Spike Lee consegue, três décadas depois da sua estreia, a primeira nomeação como realizador (mas BlacKkKlansman é uma decepção: vai reduzindo a inacreditável história de um polícia negro que se infiltra no Ku Klux Klan a programa de situações humorísticas), há apenas um americano branco entre os nomeados: Adam McKay, por Vice.
Roma, primeiro filme do realizador mexicano em cinco anos, é sobretudo a criação de um cenário – o bairro da casa familiar na Cidade do México nos anos 70 – à espera que uma memória seja libertada. Parte com dez nomeações, como A Favorita, de Yorgos Lanthimos, terceiro filme do grego em quatro anos, ambientado na corte inglesa nos anos de 1702-1707, no palácio da Rainha Ana (Olivia Colman), disputada por duas cortesãs (Emma Stone e Rachel Weisz). Não podia haver gestos mais diferentes: a suposta iconoclastia de Lanthimos é um grotesco de recursos estilísticos limitados, invariavelmente uma lente para distorcer e dizer que o mundo está na lama – onde o realizador deseja aliás que as actrizes se batam ao pontapé. Parece Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975) em tom de Que Teria Acontecido a Baby Jane (Robert Aldrich, 1962).
As figuras do cinema de Lanthimos habitualmente pouco se explicam, mas por isso a sua abnegação em se tornarem personagens pode ser comovente. Não há nada disso aqui – talvez se vislumbre algo assim nos planos finais... É o mesmo cineasta, não é o mesmo cinema de Alps (2011).
Perante este espectáculo de marionetas, a démarche de Cuarón ainda se afigura mais delicada: nada força para aprisionar personagens. Todo o dispositivo criado – reconstituição dos cenários, exteriores e interiores já desaparecidos, para que neles os actores, que trabalharam sem conhecer de antemão o argumento, pusessem a sua memória vivida ou adquirida – tem um propósito libertador. Libertar a memória é o contrário de a aprisionar: é lidar com a perda.
O filme tem sido criticado por ser “vago”, por a personagem de Cleo (Yalitza Aparicio), a criada da família de Cuarón, figura que desencadeou o filme, não ter um lugar de fala, limitando-se Roma a disfarçar com boas intenções o que continua a ser o olhar do patrão. Em suma, disse-se, seria um filme sobre proletários para acalmar a culpa de um realizador e dos seus espectadores burgueses. Culpa pode existir. Mas mais do que isso: Cuarón sabe que, mesmo correndo para a resgatar, não pode filmar do lado da criada – esse tipo de agenda, demagógica e a roçar o obsceno, é a medida corrente dos filmes hoje e Roma foge a isso. Os críticos do filme não repararam, aliás, que não se sabe só pouco de Cleo. Também são “vagas” as personagens dos familiares do realizador. Uma das presenças mais aliciantes é, aliás, uma figura de existência trémula: o pai. Não há personagens principais, a não ser o cenário. Por aqui começa a espraiar-se, obviamente, a melancolia.
Ao lado de Roma, e tal como ele um filme que passa ao lado dos protocolos de representatividade vigentes, está Assim Nasce Uma Estrela, de Bradley Cooper. A sua primeira hora é o outro belo filme dos Óscares 2019. Pegando em material que é mitologia de Hollywood, a quarta versão da história de William Wellman e Robert Carson, Cooper agarra e espectaculariza a velha mas imprevisível química entre “astros”, sublimando qualquer retórica. É na química que tudo se ganha. As personagens de Cooper e de Lady Gaga encontram-se aliás num bar de transformismo, uma no man’s land sem referências, mas com todas as possibilidades de recriação. Há quem não encaixe isto de não se conseguir atribuir às personagens um lugar reconhecível e determinado, de elas serem apenas verdade de cinema. Isso é, quanto a nós, a distinção deste trabalho de puro artesanato hollywoodiano. Mas, certamente, vai ser-lhe fatal em termos de Óscares principais.
Se se consultar a lista dos vencedores de 1969, para voltarmos à proposta da Atlantic dos paralelismos com antigas histórias de Hollywood, vê-se que naquele ano em que o sistema, não podendo lutar contra as ameaças e por isso procurando incorporá-las, escolheu afinal o musical Oliver, de Carol Reed. O “velho” ainda era um automatismo. Mas os novos já tinham entrado. No ano seguinte, a Nova Hollywood seria coroada – O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger, um filme com a classificação X (a primeira e a última vez que tal aconteceu).
O principal concorrente de Roma em 2019 é The Green Book - Um Guia Para a Vida, de Peter Farrelly, inspirado num episódio verídico: a descida de um pianista clássico (Mahershala Ali) e do seu motorista (Viggo Mortensen) ao Sul americano segregacionista dos anos 60. Trinta anos depois de Miss Daisy, que se passava no final dos anos 40, e mesmo mudando a época e o lugar do branco e do negro na viatura, acontece o mesmo filme, o mesmo protocolo de aprendizagem e a mesma ligeireza a redimir preconceitos. Para alguns, isso é ofensivo: como se nada se tivesse passado três décadas depois daquele Óscar de Melhor Filme. Mas a verdade é que pode ser que o "velho" seja ainda o Óscar de 2019. Como pode acontecer também que algo já tenha entrado no sistema.