Mudou o jogo no Brasil: luta pelo poder entre “trumpistas” e militares
Os ministros militares de Bolsonaro parecem mais moderados e preocupados com a Constituição do que alguns ministros civis
Em quase dois meses da presidência de Jair Bolsonaro, o conflito político no Brasil mudou de actores e de natureza. De forma simplista: “pragmáticos” contra “ideólogos”, generais contra “trumpistas”. O epicentro da política deslocou-se para o interior da maioria. A oposição está na expectativa. O antipetismo já não é um tema eficaz de mobilização. Apagam-se também os alarmes sobre o “perigo fascista”.
Onde começa tudo isto? A direita que chegou ao poder é uma coligação de diferentes grupos de interesses, ideologias concorrentes e projectos diversos sobre o futuro do Brasil.
No Congresso, está na ordem do dia a reforma da Previdência, que se arrastará até Junho e onde se joga o equilíbrio das contas públicas. Conseguirá o Presidente salvar o essencial da proposta de Paulo Guedes, o “czar” da Economia, ou ficará refém dos parlamentares? O ministro da Justiça, Sérgio Moro, já retirou do projecto de lei anticorrupção a chamada “caixa 2”, relativa ao financiamento ilegal dos partidos. O assunto foi adiado. As relações de forças são instáveis. O Presidente já se confrontou com as primeiras crises, de que o último exemplo foi a demissão do ministro Gustavo Bebianno.
O desafio de Mourão
O conflito mais espectacular trava-se entre o vice-presidente, general Hamilton Mourão, e os chamados “antiglobalistas”, devotos de Trump. Articulam-se en torno dos flhos de Bolsonaro — Flávio, Carlos e Eduardo — aliados de Olavo de Carvalho, o guru da “nova direita”. Foram eles e Olavo que indicaram os ministros “ideológicos”, de que são exemplo Velez Rodríguez (Educação) ou Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Mourão atacou directamente Araújo (desautorizando Bolsonaro), ao denunciar a loucura de uma política anti-China, o projecto da embaixada em Jerusalém ou a sua política para a América do Sul. O Exército vetou outra tonteria: a instalação de uma base americana no Brasil, ideia que encantava o americano Mike Pompeo.
Mourão defendeu o deputado Jean Wyllys, que se demitiu e exilou, depois de repetidas ameaças de morte. Teve o apoio do general Augusto Heleno, o mais poderoso ministro de Bolsonaro. “Ameaçar um deputado é um perigo para a democracia”, disse Mourão. Olavo respondeu num tweet que começa assim: “Você não tem vergonha, Heleno? Mourão, você não tem vergonha de ir puxar o saco desse Jean Wyllys?” Steve Bannon entrou na polémica atacando Mourão. Heleno respondeu: “Quem se importa com as opiniões de Olavo”.
“Esses três irmãos podem se tornar um grande problema”, diz o jornalista Sylvio Costa. “Eles falam de mais, não conhecem as regras da política.” Eles têm muito poder: o pai e as redes sociais. Foi Carlos quem, de facto, “demitiu” Bebianno nas redes sociais. O Presidente apoiou o filho, o que motivou, pela primeira vez, uma reacção de conjunta dos ministros políticos e militares.
“Boa parte [dos generais] parecem mais moderados, racionais e preocupados em seguir a Constituição do que alguns ministros civis”, escreveu o politólogo (e esquerdista) Leonardo Sakamoto. Os “arroubos autoritários” são atribuídos aos “ideólogos” e ao “clã familiar”. Os militares são vistos como o “adulto na sala” e como garantia da Constituição.
O “desbocado” Mourão é hoje apreciado pelos diplomatas estrangeiros. Mas o seu braço-de-ferro com os “antiglobalistas” tem um risco: um conflito directo entre o Presidente e o seu vice. Não se esqueça que, depois de eleito, Mourão frisou que era o único que o Presidente não poderia demitir. Previne o analista Helio Gurovitz, a propósito do caso Bebianno: “Bolsonaro, na hora da dúvida, demonstra estar [com os filhos]. O potencial para conflitos é inesgotável.”
O projecto dos generais
Há oito generais no Governo. São o núcleo duro que o estrutura. Ocupam também as posições dominantes no segundo e no terceiro escalão do Governo: mais de 100 militares. Estão à frente de empresas e de institutos estratégicos. Sublinha Nelson Düring, especialista em assuntos militares: “As funções estratégicas do Governo estão na mão de pessoal dos quartéis.”
O Brasil de hoje não é o de 1964. Os generais tiveram um papel activo, embora discreto, na destituição de Dilma Rousseff e na prisão de Lula — estiveram sempre em contacto com juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) e com Sérgio Moro. O tweet do general Villas Bôas, então supremo comandante do Exército, terá pesado na recusa do habeas corpus de Lula. A posição do Exército foi debatida no seu comando, em Setembro de 2017, tendo sido firmado um pacto de respeito pela ordem constitucional, excepto em caso de caos institucional.
É sintomático que o problema tenha sido colocado. O Exército brasileiro não é “o grande mudo” como os contemporâneos exércitos de países democráticos. Desde o general Goes Monteiro (1889-1956), chefe do Estado-Maior e três vezes ministro da Guerra de Getúlio Vargas, que as Forças Armadas reivindicam o direito de tutelar a democracia. Escreveu Goes: perante a fraqueza do poder político e “as forças particularistas, (...) ficam o Exército e a Marinha como instituições nacionais e únicas forças com esse carácter e só à sombra delas é que, segundo a nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais forças da nacionalidade.” Em resumo: o que é bom para o Exército é bom para o Brasil.
Houve, depois de Goes, a Doutrina de Segurança Nacional dos anos 1950-60, formulada pela Escola Superior de Guerra, a “Sorbonne”. No seu pensamento, cabia à elite definir os objectivos nacionais. E quem era a elite? Eram os militares da “Sorbonne”, a começar pelo general Golbery do Couto e Silva, inspirador da ditadura militar.
Os tempos mudaram e mudaram os militares. Villas Bôas reconheceu que a ditadura militar foi um “erro”. Mas na Academia Militar de Agulhas Negras, as velhas ideias de Goes Monteiro não morreram. De resto, mesmo após a democratização, o Exército conseguiu manter-se como “um Estado dentro do Estado”.
O general Heleno usa outra argumentação. “O país resolveu aproveitar tudo o que investe na formação. É uma questão de coerência de aproveitamento do que foi investido nos militares, que nós possamos participar da vida pública. Não tem nada a ver com Governo militar, ninguém está pensando em intervenção militar, ninguém está pensando em autoritarismo, é um aproveitamento de gente que o país não estava acostumado a aproveitar. Pouca gente conhece o Brasil como nós.”
E do lado de Bolsonaro? Explicou Frank McCann, historiador americano e especialista no Exército brasileiro: “Bolsonaro está tentando dar ao seu Governo a imagem de severo, com base na popularidade da imagem das Forças Armadas. Ele quer que o prestígio dos generais reflicta numa melhora de sua imagem. Em outras palavras, o papel deles no Governo é prover uma estatura que o próprio presidente não tem”.
O que acima de tudo importa é o respeito da Constituição. Na grande maioria, os generais são conservadores de direita, detestando o Partido dos Trabalhadores. Neutralizado o PT, é lógico que agora tentem neutralizar os excessos do bolsonarismo.