O projecto autoritário de Bolsonaro: uma hipótese de trabalho
Devemos levar a sério as promessas dos políticos autoritários. Bolsonaro parece estar a montar uma “democracia musculada” sob tutela dos militares.
Se é justificado dar um desconto às promessas eleitorais dos “partidos burgueses”, ensina a experiência que, ao contrário, devemos levar a sério as promessas dos políticos autoritários. Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa de destruir o “sistema”, liquidar a elite política e cooptar uma nova. Durante meses, pareceu um candidato débil e acantonado num nicho minoritário. Com as eleições de domingo tudo mudou.
Bolsonaro vai dominar o Congresso. Parece querer também neutralizar o Supremo Tribunal Federal (STF) e instaurar um regime tutelado pelo Exército. É algo que já estará em curso, ainda antes da tomada de posse, a 1 de Janeiro. A “guerra cultural” e o fantasma do “golpe de Estado” desviaram as atenções do cerne da questão do regime.
Os cientistas políticos demorarão muito tempo a assimilar a vertiginosa mudança do Brasil. Dispomos de descrições e de hipóteses. É um tempo mais propício às imprecações do que à análise fria. Tudo o que hoje se escreve pode ser anulado pela voragem de um processo de que não temos as chaves. Mas os politólogos ou os simples jornalistas não podem abdicar de pensar — ou imaginar — aquilo que se anuncia.
O “arrastão eleitoral”
“A política tradicional morreu ontem”, disse ao Globo o politólogo Jairo Nicolau após o “arrastão eleitoral” de domingo. “Mudou tudo. Estamos diante de fenómenos nunca vistos.” Faltam os pontos de referência. Na Câmara dos Deputados, acabou a hegemonia dos três partidos oriundos do combate à ditadura e trave mestra do sistema inaugurado pela Constituição de 1988. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), — “o partido que manda no Brasil” — e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que disputava a presidência com o PT desde 1994, sofreram uma queda abrupta, que desarticulou a “política tradicional”.
Os analistas previam 15 a 20 deputados para o Partido Social Liberal (PSL), de Bolsonaro, que tinha quatro. Elegeu 52. Nos próximos meses deverá atrair 13 deputados de pequenos partidos que não chegaram aos 1,5%. Tornar-se-á então o maior partido, à frente do PT, que conquistou 56 lugares. Um bloco de partidos do “centrão”, somando 142 eleitos, deverá entrar na maioria. A soma não chega aos três quintos (308) necessários para aprovar reformas constitucionais — a começar pelas económicas —, precisando de votos do MDB e do PSDB, ambos divididos sobre o apoio a Bolsonaro. Sob liderança do PT, a oposição de esquerda deverá somar 160 deputados. Mais inesperado ainda foi o efeito de arrasto da votação presidencial sobre a eleição de governadores e prefeitos. No Senado, parcialmente renovado, o PSL, com quatro mandatos, necessitará sempre de acordos com o MDB e o PSDB.
Conclui Nicolau: “No domingo à noite, vimos um grande partido de direita nascer. Com os votos que obteve e os recursos [públicos] que receberá a partir de 2019, já nasce como um actor central do novo quadro partidário.” É uma “nova direita”, composta por uma área de extrema-direita, outra da direita “pragmática” e diversos centristas.
Erosão da democracia
A erosão das instituições é o grande tema. É aqui que surgem os mais sérios sinais sobre o futuro do regime democrático. Deixo de lado as mais notáveis tiradas antidemocráticas de Bolsonaro e centro-me em duas instituições: o Exército e o Poder Judicial.
O ex-capitão cedo anunciou: “Vou botar alguns generais nos ministérios caso eu chegue lá. Qual é o problema?” O sinal mais relevante é a equipa de generais na reserva — com acordo tácito do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas — que está a redigir, em Brasília, o seu programa de governo nas áreas ditas estratégicas. O grupo é coordenado pelo general Augusto Heleno, anunciado como próximo ministro da Defesa. Dele fazem parte alguns civis: o economista Paulo Guedes, o “czar da Economia”, os filhos do candidato, dois assessores políticos e ainda lobbyistas do agronegócio e da finança. Os militares estão particularmente interessados em campos como a ciência e tecnologia, as infra-estruturas, os negócios estrangeiros e, naturalmente, a segurança pública. Note-se que não há nenhum sinal de que os militares pretendam assumir o ónus da governação. A ideia será outra.
Há no Brasil um claro desequilíbrio dos poderes. Houve uma grande retracção do executivo, e também do legislativo, por corrupção e incompetência. É neste quadro de crise da democracia que o poder judicial se tornou um actor central, invadindo competências naturais do poder político. Deixando de lado o activismo de magistrados como Sérgio Moro, sublinho o estatuto de árbitro assumido — em grande parte a pedido dos políticos — pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Foi decisivo no processo de destituição de Dilma Rousseff e no processo de Lula.
Em Setembro, quando Bolsonaro estava em plena ascensão, tomou posse da presidência do STF o ministro (título dos seus membros) Dias Toffoli. A sua eleição foi contestada pela direita, visto ter sido nomeado por Lula. Mas depressa esclareceu a sua posição. Pediu ao Exército a nomeação de um assessor militar. Villas Bôas indicou o nome do general Azevedo e Silva, ex-chefe do Estado-Maior.
De resto, segundo a imprensa, Toffoli deu outras garantias ao Exército: adiar para 2019 a decisão sobre a prisão de Lula e vetar a publicação de uma entrevista do mesmo Lula. Note-se que, antes da decisão sobre a libertação de Lula, Villas Bôas manifestou o seu “repúdio da impunidade” e o STF rejeitou o habeas corpus.
Bolsonaro também anunciou outro projecto: elevar de 11 para 21 o número de membros do STF. Nomeará dois em 2020, em substituição de outros dois que se reformam. O alargamento do tribunal, que passaria a ter uma maioria por ele nomeada, levantaria uma oposição frontal no STF, como intervenção ilegítima no poder judicial, e dificilmente passaria no Senado.
Bolsonaro não é muito amado no Exército, que não aprecia a sua linguagem violenta. Mas a sua candidatura abriu-lhe as portas à tutela do poder político. O que, a haver uma “normalização” do STF, indiciaria o advento de mais uma “democracia autoritária”. É apenas um cenário que faz prever a eclosão de novos e graves conflitos, com previsíveis surtos de violência.
Todas as atenções se concentraram na “guerra cultural”. Anota Vladimir Safatle, professor de Filosofia na Universidade de São Paulo: “O que nós vimos foi uma anticampanha, baseada no esvaziamento do espaço político, exactamente por meio das provocações às minorias vulneráveis — negros, mulheres, LGBT — que se revoltam, com toda a justiça, mas esse jogo ocupa todo o espaço da campanha.” Da parte de Bolsonaro, e de quem o patrocina, terá sido um cálculo estratégico que, de facto, esvaziou a discussão política e encobriu um projecto autoritário.