É “inaceitável” que PSP caracterize risco de bairros pela “sua composição étnica”

Membros do grupo de trabalho que está a debater a introdução de categoria étnico-racial no Censos 2021 criticam a PSP. Recolha não é ainda permitida em Portugal e relação entre crime e determinados grupos estigmatiza, dizem. Associações no terreno querem que Governo esclareça.

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O sociólogo Rui Pena Pires, membro do grupo de trabalho do Censos, afirma que se trata de uma prática “grave” e “ilegal” Daniel Rocha

PSP está a ser criticada por usar a “composição étnico-social” na avaliação do grau de risco de zonas urbanas sensíveis. Vários membros do grupo de trabalho criado pelo Governo para discutir a hipótese de incluir no Censos 2021 uma pergunta sobre a origem étnico-racial da população colocaram em causa a legitimidade da prática revelada esta segunda-feira pelo PÚBLICO.  

Numa directiva confidencial da Direcção Nacional da PSP à qual o PÚBLICO teve acesso há uma grelha onde, entre outros subcritérios, se classifica o grau de risco de um bairro consoante a sua “composição étnico-social” é “estável, instável ou problemática”. No critério “características da população” incluem-se vários subcritérios como a “composição étnico-social”, a densidade populacional do bairro e a existência de residentes com antecedentes criminais.

A secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, responsável pela pasta, disse que nos relatórios enviados ao seu gabinete não existe qualquer “referência a características étnico-sociais” e que a existir alguma referência é para identificar [o bairro] na perspectiva da inserção”, afirmou.

O sociólogo Rui Pena Pires, membro do grupo de trabalho do Censos, afirma que se trata de uma prática “grave”, “ilegal”. “É completamente inaceitável que se faça a classificação de territórios com base nesta categoria”. E alerta: de “forma amadora”, a PSP usa o critério de uma forma que "confirma os preconceitos”.

Também Cristina Roldão, socióloga que faz parte do mesmo grupo, levanta a questão da legalidade: “A nossa lei prevê a possibilidade de recolha em condições muito particulares: gostaria de saber se essa recolha feita pela PSP preenche esses requisitos, porque a forma como é feita é muito pouco transparente. Segue os protocolos? Há consentimento das pessoas? A resposta é voluntária? Serve para o combate às desigualdades étnico-raciais? Se não, é puro e simples profiling.”

Embora não se tendo debruçado sobre se pode ou não ser ilegal, o advogado José Fernandes, representante de grupos de afrodescendentes no mesmo grupo, critica “eticamente” esta forma de rotular os bairros como zonas sensíveis porque “estigmatiza, faz rotulagem de quem lá vive com os residentes a serem tratados como potenciais criminosos”. A favor da introdução da categoria no Censos lembra que um dos argumentos que tem referido é justamente o facto de já ser feita informalmente a nível de escolas, hospitais, esquadras, como se comprova agora. “Há a tese de que recolher dados viola a Constituição, mas se assim é já está a ser violada há muito tempo.”

A deputada do PS Catarina Marcelino – relatora do relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação, promovido pela subcomissão parlamentar para a Igualdade e Não Discriminação da Assembleia da República que está a ser produzido –, diz que é “inaceitável caracterizar uma comunidade ou um bairro ou um território como de risco pela sua composição étnico-racial”. “Se a PSP faz essa relação não devia e espera-se que seja clarificado. Se for verdade, deve ser imediatamente corrigido”.

Rótulo "existe há anos" mesmo sem directiva

Bruno Gonçalves, da associação cigana Letras Nómadas, refere que “por muito” que existam polícias que digam que “não conhecem a directiva” o rótulo “está entranhado há anos”. E afirma: “Independentemente de as comunidades serem ou não racializadas há um estigma no procedimento de actuação da PSP nos bairros sociais - é mais rígida, mais violenta há uma repugnância que se vê na forma de olhar para as pessoas.” E não acredita na mudança, “mesmo que” a directiva “seja revogada” – o que tem “de acontecer é, de uma vez por todas, a consciencialização a nível político” de modo a se encontrar “formas de o minimizar”.   

Jakilson Pereira, da direcção do Moinho da Juventude, associação sediada na Cova da Moura (uma ZUS), questiona: “A PSP diz que não há critério racial na sua actuação mas como é que tem uma directiva com uma grelha em que identificam a população” com base em critérios étnicos? A caracterização não é novidade para quem está dentro da Cova da Moura e recebe frequentemente autos de notícia da PSP com referência à origem étnico-racial dos suspeitos, diz.

Exige “que os responsáveis” prestem esclarecimentos para “devolver aos cidadãos a confiança nas instituições”. “Isto acontece não por vontade de um polícia mas porque a estrutura o permite”, sublinha, referindo-se à directiva. Abre caminho a que grupos de extrema-direita tirem “vantagem dessa informação para criminalizar os bairros ou justificar a barbárie”.

De novo a questão no Censos

Embora critiquem o uso que a PSP faz do critério étnico, os sociólogos Rui Pena Pires e Cristina Roldão têm posições opostas sobre a sua introdução no Censos: o primeiro é contra, a segunda a favor.

Para Cristina Roldão o que se pretende fazer com a introdução dessa categoria no Censos é ajudar a definir políticas públicas de combate ao racismo e desigualdades étnico-raciais. “No Censos não só a resposta terá que ser voluntária, como deve ter a autorização pelo próprio, entre outros requisitos.” Além disso, acrescenta, fazer a recolha no Censos “permite estabilizar procedimentos éticos e técnicos de monotorização destas recolhas que têm sido feitas de forma ad hoc por instituições do Estado e com propósitos que podem ser eticamente problemáticos. No fundo, garante “uma vigilância social e política sobre este tipo de recolha”.

Com posição oposta, Rui Pena Pires considera que a sua utilização “deveria ser ponderada em todos os debates”. “As categorias estão carregadas de preconceitos. É evidente que os próprios podem apropriar-se delas e dar outro conteúdo, mas em regra têm menos poder, é um combate desigual. Neste momento há um revivalismo nacionalista na Europa que dá caução a este tipo de utilização.” Para o sociólogo este é, aliás, um dos riscos de introduzir a categoria no Censos: “é inevitável que mais coisas destas aconteçam”. 

Contactado pelo PÚBLICO, o Alto Comissariado para as Migrações diz que “desconhece a existência de qualquer orientação interna da PSP” que utilize aqueles critérios. Por isso, não pode comentar. Mas o Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial solicitou os documentos ao Ministério da Administração Interna, refere.

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