Bairros com menos Estado e mais polícia?
Muitos defendem que o conceito de zonas urbanas sensíveis está ultrapassado. A própria secretária de Estado admite revê-lo. Afinal, o que são? Sindicatos da PSP e especialistas explicam.
Como é que se define uma Zona Urbana Sensível (ZUS)? Que critérios são usados? Quais as indicações fornecidas ao agentes da PSP quando lá se deslocam? Faz sentido usar esta definição?
Para alguns investigadores o conceito deve ser revisto. A própria secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, admite que é necessário fazê-lo. Embora reconheça a necessidade de referência à "tipificação de alguns bairros", lembra "que as dinâmicas sociais alteram a realidade de dia para dia”. E acrescenta: “A mim não me interessa ter a classificação de ZUS se não for para intervir. Não é para as polícias estarem mais ou menos atentas e intervirem de determinada maneira em determinado tipo de bairro. É: sendo esta zona considerada problemática, o que é necessário para deixar de ser problemática?” Isabel Oneto considera importante focar o debate nos Contratos Locais de Segurança, parcerias com comunidades locais e autarquias que tem como objectivo reduzir a criminalidade ou prevenir a delinquência juvenil.
Porém, ainda é usada pela PSP a directiva de 2006 que define o conceito assim: a população juvenil revela um elevado grau de absentismo e de insucesso escolar, há casos de alcoolismo e toxicodependência, desintegração social e dificuldades de inserção no meio social, as habitações são barracas ou casas pré-fabricadas ou imóveis abandonados, há elevada densidade populacional, sentimento de aversão ao estado e suas instituições, sentimentos de anomia, inimputabilidade e impunidade, actividades ilícitas praticadas pelos residentes que envolvem drogas e armas, entre outros.
Para avaliar os diferentes graus de risco, existe uma grelha com vários critérios e uma cotação mínima de 7 (risco baixo, zona verde) e máxima de 21 (risco elevado, zona vermelha).
Isto é o que está no papel. Como é que quem anda no terreno vê, na prática, as ZUS? Embora digam que não têm acesso àquele documento, os agentes sabem quais são esses bairros, garante Paulo Rodrigues, da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP). As zonas sensíveis são muitas vezes bairros onde as pessoas “vivem em casas que não têm número”, “não há ordenamento” e não há organização “o que dificulta a acção da própria polícia” porque “facilita os que pretendem fugir às autoridades”, afirma.
Mário Andrade, actual dirigente do Sindicato dos Profissionais de Polícia (SPP-PSP), acrescenta que a classificação tem a ver com o número de ocorrências e detenções. Estão, por regra, nas ZUS “todos os bairros sociais”. A intervenção exige uma “postura totalmente diferente”, diz. “A PSP tem que actuar de uma forma mais preventiva no Bairro Alto, onde a maior parte dos crimes são furtos de carteira; na Musgueira, com a agressividade de potenciais crimes, tem que se estar muito mais atento porque estamos a actuar em prédios onde, de qualquer lado, pode vir uma ameaça”.
Na directiva refere-se que deverão “ser evitadas todas as formas de hostilização e marginalização das populações locais”. Será assim?
Esquadra de bairro versus corpo de intervenção
Para Susana Durão, antropóloga especialista nesta área, sempre houve um “impasse” sobre o policiamento dirigido a estes bairros: tratá-los “como uma extensão da cidade”, sujeitos aos mesmos programas e assentes na ideia de pequena esquadra de bairro, com policiamento de proximidade e resposta rápida; ou tratá-los como “comunidades violentas sujeitas à intervenção de brigadas anti-crime e corpo de intervenção, numa lógica de implementação de rusgas e formas mais agonísticas, armadas e equipas desfardadas com o propósito de ali intensificar a investigação criminal”.
O paradoxo é que estes bairros podem não ter a presença do Estado "social" com escolas, postos de saúde, etc, mas “têm mais presença policial do que a maioria dos bairros ‘históricos’", afirma. “Isto cria relações muito tensas e mais frequentemente tensas entre a população e as polícias”.
Paulo Machado, coordenador de um estudo que avaliou a situação de segurança nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, lembra que a criminalidade é razoavelmente concentrada no espaço e bastante diversificada em termos de autoria. Para si, é importante rever os critérios das ZUS de modo a não estabelecer “relações abusivas” entre crimes e origem social ou área de residência. Isto porque “a geografia dos suspeitos das delinquências juvenis não coincide directamente com a geografia do desfavorecimento social, dos pobres. O comportamento anti-social é bastante transversal à juventude portuguesa, embora minoritário em todas as classes sociais e com níveis de exposição diferenciados”.
O geógrafo João Ferrão, antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades (entre 2005-2009), esclarece: as ZUS são heterogéneas, diferentes de zona para zona e até dentro dos próprios bairros; têm situações diferenciadas a nível urbanístico (umas são para serem demolidas, outras recuperadas, etc); “a geografia dos sintomas, das causas e das soluções não coincidem” e as “causas e soluções em parte estão no bairro e em parte estão fora”. Ou seja, além de causas locais há causas estruturais – como as desigualdades sociais, o racismo e a xenofobia – e é nelas que é preciso actuar, defende.
Defende a polícia de proximidade. “A visão tradicional da polícia que intervém quando há um problema ou faz rusgas não altera nada de fundo, não altera nada na vida das pessoas.”
Proximidade e mediação é o que defende, por exemplo, António Ramos, que foi presidente do Sindicato dos Profissionais de Polícia (SPP-PSP) quando este desenvolvia um projecto de mediação entre a polícia e moradores, com associações de bairros da Área Metropolitana de Lisboa (AML), como Bela Vista (Setúbal), Cova da Moura, Santa Filomena e 6 de Maio (Amadora) ou Quinta do Mocho (Loures).
Em 2002, António Ramos iniciou um trabalho na Bela Vista depois da morte de ‘Toni’, um jovem de 24 anos que foi baleado por um agente da PSP de Setúbal. Recorda: “Pus jovens a jogar à bola com polícias da Amadora. E era muito criticado por fazer mediação. Convivíamos com as pessoas, sabia dos problemas destes jovens quando se candidatavam a um emprego e diziam de onde eram. A polícia devia ter gabinetes de mediação, ultrapassam-se muitos problemas.” O sindicato tentou criar um observatório que fosse comum à Área Metropolitana de Lisboa, mas não chegou a ir para a frente.
Susana Durão conclui com a questão do policiamento da pobreza e da selectividade racial associados à segregação residencial. “A sociedade portuguesa fez o seu trabalho de reflexão sobre o problema colonial tardio (que me parece ser ainda um tabu a resolver) ou continua a tratar estas populações empobrecidas e negras como diferentes e com défice de cidadania? A polícia é um dos actores mas não o único desta complicada relação. Seria injusto colocar todos os problemas no prato da polícia.”