Endogamia académica: mais vale ser bêbado conhecido do que alcoólico anónimo

No livro Cientistas Portugueses, o bioquímico e divulgador de ciência David Marçal traça um retrato de quem faz investigação científica no país. Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, chega às livrarias para a semana e na quarta-feira, às 18h, será apresentado pelo biólogo Nuno Ferrand de Almeida no Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Segue-se o capítulo dedicado aos cientistas que vivem fechados nas suas bolhas académicas.

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Bolas de sabão Marc Sendra Martorell

Os investigadores Arcadi Navarro e Ana Rivero fizeram um grande estrondo em 2001 quando publicaram na prestigiada revista Nature uma carta que quantificava o fenómeno da contratação de professores universitários com base em critérios de proximidade social em vez de qualidade científica. A bem instalada lógica de que “mais vale bêbado conhecido do que alcoólico anónimo”. De acordo com a definição da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC): “O conceito de endogamia académica, em inglês designado por academic inbreeding, refere-se, tipicamente, a situações de imobilidade profissional em que um docente do ensino superior desenvolve a sua actividade de investigação e docência na mesma instituição de ensino em que recebeu a sua formação académica original, sem que, de permeio, em qualquer período da sua carreira profissional tenha tido posições com duração significativa em entidades externas, por exemplo noutras instituições de ensino superior e de investigação, nacionais ou estrangeiras, em empresas ou em entidades governamentais.”

O critério usado por Navarro e Rivero foi muito simples: compararam a morada do primeiro artigo publicado pelos docentes com a morada da universidade em que eram professores do quadro. No caso espanhol, em 95% dos casos a morada era a mesma. Dito de outro modo: apenas cinco em cada 100 lugares de quadro tinham sido atribuídos a candidatos vindos de fora. Nos Estados Unidos a situação era inversa, com 93% dos quadros das faculdades ocupados por candidatos de fora. No Reino Unido os de fora perfaziam 83%. Em França, metade. A endogamia tem consequências na produtividade científica. Quando são escolhidos os amigos em vez dos candidatos melhores, o número e o impacto das publicações científicas baixa significativamente.

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O bioquímico e divulgador de ciência David Marçal Rui Gaudêncio

Em Dezembro de 2006 entrevistei Arcadi Navarro (na altura tinha interrompido o meu doutoramento para participar no programa Cientistas na Redacção, integrado na secção de Ciência do PÚBLICO durante três meses). A entrevista foi a propósito de um debate sobre mobilidade e endogamia nas universidades portuguesas, que decorreu no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. Os poucos dados existentes na altura sobre a situação portuguesa sugeriam também níveis de endogamia preocupantes. Nas várias intervenções foi unânime o reconhecimento do problema e a necessidade de tomar medidas para o contrariar. Por exemplo, Carlos Fiolhais, físico da Universidade de Coimbra, referiu que “preferem os defeitos dos de dentro às virtudes dos que vêm de fora”. António Coutinho, então director do Instituto Gulbenkian de Ciência, notou que “não é um problema exclusivo das universidades, é transversal a toda a sociedade portuguesa. As carreiras nos hospitais são tão ou mais endogâmicas que as universitárias”. Diogo Lucena, professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, considerou que “o Estado não deve proteger as instituições das consequências das suas más decisões”. Eduardo Marçal Grilo, então administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, considerou que “neste momento há condições políticas para legislar”. E Manuel Heitor, à altura secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, acrescentou que “não podemos resolver um problema tão complexo de forma simples”.

Perguntei a Arcadi Navarro quais eram as consequências da endogamia nas universidades: “São horríveis. As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a universidade torna-se uma maneira de arranjar salários para os amigos.”

Ao longo da entrevista, Navarro defendeu um conjunto de medidas para reduzir a endogamia académica e melhorar a produtividade científica. Enquadravam-se em duas linhas: por um lado, reduzir o poder das universidades na contratação dos docentes. Isto é, substituir os concursos para contratação feitos em cada instituição por concursos a nível nacional, com júris internacionais. Por outro, pôr as universidades a competir pelo dinheiro com a investigação. Ou seja, fazer com que as universidades precisassem de contratar investigadores capazes de ganhar financiamentos competitivos para sobreviver. Na verdade, algumas dessas medidas já estavam em curso em Espanha em 2006. E um pouco mais tarde alguns desses princípios também foram parcialmente incorporados em Portugal. Sem resultados, como veremos.

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A capa do livro

Na intervenção que fez no Instituto Gulbenkian de Ciência, Navarro apresentou dados dos percursos profissionais de 2500 professores e investigadores que trabalhavam em Espanha. E comparou as escolhas feitas em concursos locais (de cada universidade) para contratar investigadores com as escolhas resultantes de concursos a nível nacional. Os contratos atribuídos em concursos nacionais resultavam na contratação de 40 a 90% de candidatos externos à instituição de acolhimento (dependendo do programa e do tipo de contrato). Ao passo que os júris dos concursos abertos em cada faculdade escolhiam pouco mais de 5% de candidatos vindos de fora. Os seja, os concursos locais eram incomparavelmente mais endogâmicos do que os concursos nacionais. Navarro comparou depois a produtividade científica dos investigadores seleccionados pelos diferentes processos. De acordo com os dados que apresentou, os investigadores contratados em concursos nacionais superavam anualmente em cerca de 50% a publicação de artigos dos professores escolhidos em concursos locais.

Problema não melhora

Deixemos agora Espanha e Arcadi Navarro em 2006. Damos um salto a Portugal, ao ano lectivo de 2015-2016. Na introdução do relatório Indicadores de Endogamia Académica nas Instituições Públicas de Ensino Universitário pode ler-se: “A existência, numa instituição de ensino superior, de uma proporção excessiva dos seus docentes nestas condições [endogamia académica] é tradicionalmente vista como indesejável, pois poderá sinalizar uma comunidade académica menos diversa, mais fechada sobre si mesma, com menor abertura a ideias externas e com maior dificuldade de integração em redes de investigação nacionais e internacionais. Significa ainda que, nos concursos institucionais para posições académicas, os candidatos internos à instituição prevalecem sistematicamente.”

De acordo com os dados deste relatório da DGEEC, a Universidade de Coimbra é a campeã nacional da endogamia, com 80% de docentes doutorados na mesma instituição em que leccionam. Seguem-se a Universidade dos Açores e a Universidade de Lisboa (ambas com 74% de endogamia), a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (73%), a Universidade do Porto (72%), a Universidade de Aveiro (64%), a Universidade Nova de Lisboa (61%), a Universidade da Beira Interior (57%), o ISCTE (49%), a Universidade da Madeira (48%) e a Universidade do Algarve (40%). No caso das universidades de Évora e do Minho, não foi possível determinar a instituição de doutoramento de mais de 70% dos docentes, pelo que esses dados não são comparáveis com os restantes.

Os autores do relatório ressalvam: “Os níveis globais de endogamia académica das instituições escondem, tipicamente, grandes diferenças entre as suas diferentes faculdades ou unidades orgânicas. De facto, as diferenças entre as várias unidades orgânicas de uma mesma instituição tendem a ser mais acentuadas do que as diferenças globais entre as instituições. Ao nível das unidades, os casos de maior prevalência de endogamia académica aparentam existir na área do direito, encontrando-se, inclusivamente, faculdades desta área disciplinar em que praticamente 100% dos seus docentes de carreira realizaram o doutoramento na própria instituição. Em particular, isto significa que, nos concursos abertos para posições académicas nestas faculdades, praticamente nunca foi seleccionado um candidato doutorado fora da instituição. Os indicadores de endogamia apresentam valores muito elevados também em várias faculdades da área da medicina, desporto e letras, por exemplo, com taxas acima dos 90%. Na extremidade do espectro associada à maior mobilidade académica, ao invés, surgem diversas unidades orgânicas da área da economia, encontrando-se uma unidade em que 75% dos docentes de carreira realizaram o seu doutoramento no estrangeiro.

Os doutoramentos feitos no estrangeiro são um contraponto importante à endogamia. E ajudam a explicar a variação etária da endogamia, que é um fenómeno dos 27 aos 77. Curiosamente, é entre os professores com mais de 64 anos que a endogamia tem uma expressão mais baixa (66%). Nessas idades, a percentagem de docentes doutorados no estrangeiro é relativamente alta (27%). Entre os mais jovens há um decréscimo acentuado dos doutoramentos feitos no estrangeiro, fruto do grande aumento de doutoramentos em Portugal das últimas décadas. Mas os níveis de endogamia mantêm-se extremamente elevados. Veja-se, por exemplo, o caso dos professores que têm entre 50 e 54 anos (74% de endogamia, 17% de doutoramentos no estrangeiro), ou dos que têm entre 30 e 34 anos (68% de endogamia, 10% de doutorados fora do país).

Um valor: 70%

Em coerência, é também entre os professores catedráticos (o topo da carreira) que encontramos a percentagem mais baixa de endogamia (60%), sendo que é também nesse patamar que se verifica a existência de mais doutorados no estrangeiro (32%). Nos patamares inferiores das carreiras, tendencialmente mais jovens, há menos doutoramentos no estrangeiro e mais endogamia. Verificamos isso nos professores associados (68% de endogamia, 24% de doutoramentos fora do país) e nos auxiliares (73% de endogamia, 15% de doutoramentos fora do país). A endogamia académica não parece ser machista. As professoras do ensino superior são ainda mais endogâmicas (75%) do que os seus colegas masculinos (67%).

Este é um assunto de que muitas pessoas falam abertamente. Mas apenas de um modo geral, estatístico, como acabei de fazer. Quanto a casos concretos, nunca ouvi nenhum investigador apontar o dedo a uma contratação endogâmica específica em público. Mas em conversas particulares praticamente todos conhecem casos em que isso se verifica. Pode até não se concordar, mas sabe-se que é assim. Quando um concurso abre é normal ouvir-se perguntar: é para quem?

Falámos com Maria Santos, investigadora na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa: “Nos últimos tempos concorri a três concursos, em várias universidades em Portugal. Fiquei em segundo em todos eles. Claro que chegamos a um ponto em que não consigo olhar para estes concursos e pensar: ‘Esta pessoa não merecia nada.’ Porque as pessoas que entraram eram como eu. Estão há tantos anos nas instituições que até percebo que a instituição faça alguma coisa para as colocar. Acho é que os concursos valem o que valem. Porque os critérios vão mudando. O que noto é que aquilo que no meu currículo é apontado como falha num concurso, já não o é no outro concurso, onde a falha já é outra, num aspecto em que, por acaso, o candidato que é para ganhar até é muito melhor. Isso é sabido. Ainda não estive, e espero nunca vir a estar, num concurso daqueles absolutamente escandalosos. Daqueles em que a pessoa específica tem um currículo que é incomparavelmente pior do que o dos outros.”

Globalmente, cerca de 70% dos professores das instituições de ensino superior em Portugal doutoraram-se na mesma faculdade onde estão empregados. Sete em cada dez vezes, um candidato interno ganha o concurso para a entrada no quadro. A menos que achemos que os candidatos vindos de fora são, por qualquer motivo, de facto muito maus, temos que presumir que há uma viciação sistemática dos concursos a favor dos candidatos internos. Como? Irei socorrer-me das minhas próprias impressões e de muitas conversas com investigadores acerca deste problema.

A forma mais básica de viciar os concursos – formar um júri que escolhe um candidato objectivamente muito mais fraco do que outros – hoje já não parece ser a mais frequente. O expediente mais usado é, de facto, aquele referido por Maria Santos: abrir concursos à medida de um candidato. Dar um peso muito grande aos critérios de avaliação em que o candidato que se pretende que ganhe é forte, e muito pouco peso àqueles em que é fraco. Ou colocar requisitos muito específicos, decalcados do seu currículo, que permitam reduzir muito o número de candidatos. Às vezes, só falta o nome. Outra forma consiste num melhoramento rápido, num ano ou dois, do currículo de um candidato. Basta começar a pôr o seu nome em todo o lado: organizações de congressos, prémios, comissões várias, participação em júris de doutoramento, co-orientações, etc.

A endogamia é um problema grave. Não só cria situações de injustiça, como tem efeitos negativos na produção científica e gestão das instituições. Não é fácil de resolver, pois implica uma mudança na cultura das universidades. Olhando para os níveis avassaladores de endogamia entre os professores mais jovens (à volta dos 70%) é difícil de acreditar que essa mudança esteja em curso. O mesmo concluem os autores do referido relatório da DGEES: “Com alguma surpresa, verificámos ainda que a mobilidade académica não aparenta ser significativamente maior entre os docentes jovens, quando comparados com os docentes de grupos etários mais elevados.”

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