O coelho de Darwin ajudou a descobrir a resistência a um dos vírus que mais mata a espécie

Equipa internacional liderada por investigadores do Porto descobriu que o coelho-bravo está a ganhar resistência a um dos vírus que mais afecta esta espécie. O estudo que revela estas e outras descobertas é publicado esta sexta-feira na revista Science.

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Parte do esqueleto do coelho da colecção de Charles Darwin, do qual os cientistas retiraram uma amostra de ADN Trustees of the Natural History Museum

O coelho-bravo, ou coelho-europeu (Oryctolagus cuniculus), está a tornar-se imune a uma das doenças que mais afecta a espécie. A descoberta de uma equipa internacional de cientistas liderada por investigadores do Porto e publicada esta sexta-feira na revista Science prova que os coelhos da Austrália, de França e do Reino Unido adquiriram resistência ao vírus da mixomatose através da selecção natural.

O estudo do qual fazem parte Joel Alves, Miguel Carneiro, Sandra Afonso, Pedro Esteves e Nuno Ferrand de Almeida, do Cibio-InBio (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto)​, revela ainda que o combate ao vírus se deveu a pequenas mutações em vários genes e não, como acontece noutros casos, numa grande mudança num único gene.

Em 1950, um vírus oriundo da América do Sul chamado mixoma foi utilizado por cientistas para controlar a população de coelhos-europeus na Austrália que crescia a olhos vistos e prejudicava a agricultura e a biodiversidade local. O vírus foi libertado na Austrália e pouco depois já tinha dizimado milhões de coelhos, chegando a dizimar 99%. A certa altura, o vírus é ilegalmente levado para França e daí espalha-se para o resto da Europa, onde tem um resultado muito semelhante ao que se tinha passado no continente australiano.

No caso de uma espécie de coelho americana, o vírus é benigno e causa apenas alguns tumores de pele, mas para o coelho-bravo a mixomatose acabou por se tornar uma das doenças mais mortíferas, lado a lado com o vírus da febre hemorrágica. Em Portugal, o número de animais afectados pela doença tem diminuído. Ainda assim, o desaparecimento gradual do coelho-bravo apresenta perigos para outras espécies como o lince-ibérico e a águia-real, cujas dietas são à base do pequeno mamífero.

Alguns anos depois de o vírus ter chegado à Europa, alguns cientistas decidiram perceber se as populações de coelho estavam a recuperar do vírus. Para tal, recolheram alguns coelhos no meio selvagem e infectaram-nos com o vírus. O que verificaram foi que os animais estavam a tornar-se resistentes à doença e este fenómeno estava a acontecer em várias populações separadas por centenas de quilómetros de distância.

A equipa responsável pelo estudo agora publicado decidiu ir mais longe. O projecto concebido em Portugal ganhou um rumo internacional, mas nem por isso se tornou mais simples. “Não existia tecnologia que nos permitisse, por exemplo, ter amostras tão antigas de ADN e nós começámos com a esperança ingénua de que existia amostras de coelho guardadas em congeladores desde 1950, porque na altura esta questão foi bastante estudada na Austrália”, explica ao PÚBLICO o autor principal do estudo, Joel Alves.

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O esqueleto de um coelho da colecção de Charles Darwin, do qual os cientistas retiraram uma amostra de ADN Trustees of the Natural History Museum

Os investigadores chegaram à conclusão de que tais amostras não existiam e depositaram todas as suas esperanças em museus mundiais. Mas os museus apresentavam um problema: os coelhos não são espécies exóticas, logo não são as mais conservadas nestes espaços. No entanto, os cientistas acabaram por levar a sua avante. As amostras de coelhos recolhidos contam com exemplares do século XIX e uma delas pertenceu mesmo à colecção privada de Charles Darwin, o naturalista britânico autor da famosa teoria da evolução através da selecção natural, e cujo aniversário do nascimento se comemorou a 12 de Fevereiro.

Em muitos casos, os investigadores não sabiam o ano de morte dos coelhos, mas sabiam que a pessoa que os conservou tinha morrido antes de 1950, logo essas amostras podiam ser consideradas. “Muitas delas vieram de museus norte-americanos, que não foram a nossa primeira hipótese para obter amostras do coelho-europeu, o que faz mais sentido porque para nós essa espécie não é uma novidade, mas para um museu é, porque não possuem essa espécie”, explica Joel Alves.

“Fomos a museus e obtivemos amostras de coelhos recolhidas antes de 1950 em França, no Reino Unido e na Austrália. Comparando esses dados com amostras modernas, resultado de 70 anos de co-evolução com o vírus, observámos que o mesmo gene estavam a mudar e era um exemplo claro de evolução paralela entre o hospedeiro e o vírus”, diz o cientista.

Braço-de-ferro entre duas espécies

Através da selecção natural, os animais tornaram-se mais resistentes ao vírus da mixomatose, que se tornou também menos agressivo para os coelhos. No artigo agora publicado na Science, fruto de um projecto co-liderado pelo Cibio-InBio e pela Universidade de Cambridge (Reino Unido), a equipa de investigadores que inclui mais 20 instituições, entre elas a Organização da Commonwealth para a Investigação Científica e Industrial da Austrália, identificou as bases genéticas da resistência dos coelhos à mixomatose.

O estudo demonstra, pela primeira vez, que tanto na Austrália como em França e no Reino Unido as mudanças genéticas observadas nos coelhos resistentes ao vírus são as mesmas e que essas mutações ocorrem em diferentes regiões do genoma. Para que pudessem identificar as mutações que se tornaram mais frequentes desde as pandemias dos anos 50, quase 20 mil genes foram analisados através de técnicas de sequenciação de ADN. 

“É um exemplo clássico de uma espécie de braço-de-ferro entre duas espécies, porque percebemos que não são só os coelhos que estão mais resistentes, mas que o vírus também está a ficar menos violento, uma vez que se este for altamente letal e matar o seu hospedeiro rapidamente existe menos probabilidade de se espalhar”, explica Joel Alves.

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Os investigadores Joel Alves e Francis Jiggins com um coelho-europeu no Museu de Zoologia de Cambridge Nick Saffell/Universidade de Cambridge

A corrida às armas

No decorrer do estudo, foram observadas mutações significativas num gene com função imunitária (IFN-alfa 21A). “No laboratório, testámos as diferentes formas da proteína produzida a partir deste gene e descobrimos que as formas encontradas nos coelhos resistentes à mixomatose conseguem inibir de maneira mais eficaz a replicação do vírus”, explica Miguel Carneiro no comunicado do Cibio-InBio.

Os autores descobriram ainda que a mesma proteína que actua na resistência dos coelhos à mixomatose também pode combater a infecções por outros vírus como o que causa a estomatite vesicular. “Ao combater o vírus da mixomatose, os coelhos poderão ter também aumentado a sua resistência a outros vírus, entre eles o vírus causador da doença da febre hemorrágica, actualmente responsável pela morte de muitos coelhos”, acrescenta Miguel Carneiro.

O estudo assinala ainda o papel da diversidade genética no processo evolutivo ao demonstrar que “o rápido desenvolvimento da resistência à mixomatose pelos coelhos foi possível pela acção da selecção sobre um conjunto de genes do sistema imunitário”, pode ler-se num comunicado do Cibio-InBio sobre o estudo.

Mesmo com esta descoberta, o vírus da mixomatose ainda anda por aí. “A doença continua a circular nas populações de coelhos e a evoluir da mesma forma que evoluem os coelhos”, garante Joel Alves. 

O estudo começou em 2011 “de raiz e a partir de uma ideia de há muitos anos”, conta Joel Alves: “É inovador porque os estudos anteriores sobre o genoma do coelho focavam-se apenas no vírus e pouco que se sabia em relação à genética por detrás da resistência. Além disso, o problema nunca tinha sido abordado de uma perspectiva temporal.” Agora com recurso a ADN antigo foi possível obter amostras biológicas que não foram preservadas com esse fim.

Durante o processo, a equipa colaborou ainda com o Centro de Geogenética da Universidade de Copenhaga (Dinamarca), que forneceu a tecnologia de análise do ADN: “Trabalhar com estas amostras muito antigas não é o mesmo do que usar ADN dos dias de hoje. Precisamos de equipamento especial”, garante o cientista.

Apesar da drástica redução nas populações de coelhos causada pelos surtos de mixomatose, o estudo garante que os níveis de diversidade genética não sofreram alterações significativas e a proporção de coelhos que morreu de mixomatose tem vindo a diminuir desde 1950.

As mutações genéticas associadas à resistência dos coelhos à doença permaneceram nas populações que sobreviveram e acabaram por resultar numa maior capacidade de resistência à infecção. “Mas o vírus parece estar a encontrar formas de contrariar as adaptações genéticas que observamos”, remata o principal autor do estudo. “Recentemente, novas estirpes com maior potencial de infecção têm sido identificadas, portanto a corrida às armas continua.”

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