O genoma do lince-ibérico veio mostrar-nos quão frágil ele é
História evolutiva e demográfica deste felino único da Península Ibérica é agora contada pelos seus genes. Houve vários momentos de declínio das populações de linces, muitos antes daquele que bem conhecemos no século XX.
O genoma do lince-ibérico foi sequenciado por uma equipa de cientistas espanhóis, que anunciou esta quarta-feira a publicação dos resultados na revista Genome Biology. E da leitura de todas as “letras” da molécula de ADN, com que se escreve o genoma do felino mais ameaçado do mundo, os cientistas já tiraram conclusões – a principal é que as duas populações que restaram na natureza (ambas em Espanha) têm pouca diversidade genética, o que as torna muito vulneráveis e dificulta a sua adaptação a novas condições ambientais.
Coordenada por investigadores da Estação Biológica de Doñana, um dos locais onde há linces-ibéricos na natureza, a equipa sequenciou o genoma de Candiles, um macho oriundo da população de Serra Morena, o outro local onde sobreviveram na Península Ibérica. Para aprofundar a investigação, a equipa de cerca de 50 cientistas sequenciou outros dez linces-ibéricos (Lynx pardinus) de Doñana e da Serra Morena. E, ainda, um exemplar do lince-euroasiático (Lynx lynx), uma espécie-irmã do lince-ibérico, para que se pudessem fazer comparações sobre a história evolutiva de ambos.
Este trabalho que demorou cerca de cinco anos, diz-nos o investigador português André Corvelo, envolvido na investigação quando estava Centro Nacional de Análise Genómica (CNAG), em Barcelona, e agora trabalha no Centro do Genoma de Nova Iorque. “O objectivo da nossa equipa no CNAG era a produção do genoma de referência para esta espécie”, conta. “Este trabalho, pioneiro na península ibérica – é o primeiro mamífero completamente sequenciado em Espanha –, permitiu-nos desenvolver a capacidade técnica para levar a cabo projectos do mesmo tipo, alguns entretanto já publicados, como a sequenciação do genoma do pregado ou, mais recentemente, da oliveira.”
Primeiro os números: o lince-ibérico tem cerca de 21.257 genes. Nós próprios também temos à volta deste número.
Agora a análise dos resultados: a sequenciação genética veio contar-nos que o lince-ibérico e o lince-euroasiático começaram a separar-se e a evoluir em sentidos diferentes há cerca de 1,1 milhões de anos, lê-se no artigo da equipa, que incluiu outro cientista português a trabalhar em Espanha (Francisco Câmara) e ainda investigadores nos Estados Unidos e na Dinamarca. Há 2500 anos, as duas únicas espécies de linces que existem no continente euroasiático já estavam totalmente separadas, explica a equipa num comunicado de imprensa.
“Contrastando com o lince-euroasiático, que é maior, generalista e está espalhado pela Eurásia, o lince-ibérico é mais pequeno e especializado num habitat e numa presa, restringindo-se na região do Mediterrâneo à Península Ibérica, onde tem quase só os coelhos como presas”, diz o artigo. “Supõe-se que, em tempos, foi abundante e se distribuiu por toda a Península Ibérica, mas o declínio acentuado na segunda metade do século XX deixou menos de 100 linces-ibéricos em duas populações isoladas de Doñana e Andújar (Serra Morena), na Andaluzia.”
Por causa desta situação difícil, em 2002 o lince-ibérico foi classificado com o estatuto de “criticamente em perigo” na Lista Vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Em 2015, o seu estatuto foi alterado para outro um pouco menos gravoso – “em perigo” –, graças aos programas de conservação e de reintrodução de animais na natureza. Em Portugal, o programa de reintrodução da espécie no país foi desenvolvido desde 2009, em conjunto com Espanha, no Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico, em Silves. Os primeiros linces foram libertados no final de 2014, em Mértola, e desde aí soltaram-se outros, ainda que nem todos tinham tido sorte por sua conta.
Quatro declínios
O que a genética conta ainda é que, na história evolutiva e demográfica do lince-ibérico, ele teve quatro grandes momentos de declínio das populações. Isto é visível no chamado “efeito de gargalo” populacional, que depois se manifesta na redução da diversidade genética. O primeiro desses gargalos, que afectou as duas espécies de linces, ocorreu entre há 700 mil e 100 mil anos.
A segunda contracção das populações de linces-ibéricos ter-se-á devido à ultima glaciação na região dos Alpes, entre há 115 mil anos e 12 mil anos. Ainda assim, ele e o seu irmão terão continuado a ter alguns encontros e a reproduzirem-se na Península Ibérica e no Sul da Europa até há 2500 anos, trocando genes entre si. Mais recente, o terceiro declínio foi há cerca de 315 anos e reduziu a população do lince-ibérico para menos de 300 indivíduos. Aqui já houve a nossa mão – “este período é caracterizado pela expansão das populações humanas, levando à crescente perseguição de grandes carnívoros, destruição de florestas e expansão agrícola pela Europa”, refere o artigo.
Por fim, o último declínio, que provocou mais perda de diversidade genética, foi já no século XX e teve como causas a perseguição directa dos linces e os vírus que muito têm afectado os coelhos de que tanto gostam.
Tudo junto, chegou-se então até aqui, a uma baixa diversidade genética das duas populações de linces-ibéricos, que os programas de conservação da espécie terão de ter em conta: “Identificámos uma série de efeitos de gargalo populacionais importantes na história do lince-ibérico antes do declínio demográfico conhecido no século XX, o que teve grande impacto na evolução do seu genoma”, conclui o artigo.
“Este trabalho permitiu-nos estudar a história demográfica desta espécie e compreender o real impacto que os vários declínios populacionais sofridos pelo lince em tempos relativamente recentes tiveram sobre o nível de variabilidade genética actual – a mais baixa reportada até agora – e como esta baixa variabilidade pode vir a complicar a viabilidade da própria espécie”, sublinha André Corvelo. “Também tem uma aplicação prática muito importante: o genoma de referência vai permitir não só seleccionar que indivíduos se devem cruzar de forma a manter a variabilidade genética existente (que é extremamente baixa), mas também evitar cruzamentos dos quais resultem indivíduos portadores de variantes genéticas fracas ou associadas a certas doenças”, adianta.
“As consequências de níveis tão baixos de diversidade genética do lince-ibérico são difíceis de prever, mas é provável que limitem a sua capacidade de se adaptar a mudanças ambientais”, alerta por sua vez a equipa no artigo. “As estratégias [dos actuais programas de conservação] já não podem recuperar a diversidade que se perdeu para sempre.”
Por isso, os cientistas põem a hipótese de se usar a nova e controversa técnica de “corta e cola” do genoma, mas não só. Será que, para recuperar o lince-ibérico, uma solução passaria por voltar a cruzá-lo com o lince-euroasiático?