Lisboa: de majestosa a covil lastimoso
As eleições jamais podem ser uma "carta de alforria" para medidas autistas e autoritárias. A gestão de Fernando Medina tem sido abundante em medidas para lhe resolver problemas políticos (imundície e insegurança), rápidas e fáceis, mas ineficientes, e que, por isso, sonegam direitos e afectam indelevelmente a qualidade de vida aos cidadãos
Em meados do século XIX, o médico e romancista português Guilherme Centazzi escrevia sobre Lisboa: "Examinada em globo é uma coisa; em detalhe é outra. Em globo, ninguém lhe negará aparato, beleza, opulência, grandeza, etc., etc.. Em detalhe, de fora para dentro, é tal e qual como esse famigerado siciliano que, no domingo, se paramentava com luzentes vestiduras, sem despir a camisa com que tinha andado a mariscar os anzóis durante a semana. Lisboa, em síntese, é majestosa; em análise, é um covil lastimoso de miséria e lama".
Em pleno século XXI, sendo certo que Lisboa parece manter-se majestosa em síntese, não está, porém, muito afastada do outrora "covil lastimoso", mesmo sem a miséria e lama de outrora. Hoje, os espaços públicos da capital, se observados em pormenor, são horrorosos, sobretudo nos bairros históricos. Grafitis a esmo, pilaretes entortados e sem nexo, trotinetes em desalinho, detritos a competirem em número com pedras soltas da calçada, canteiros e jardins públicos degradados (senão vedados ou fechados), e agora, como "cereja podre em cima de bolo fétido", contentores esverdeados e mal-lavados em calçada portuguesa ladeando portas e janelas do Bairro Alto, Bica e Santa Catarina. Anda o século a correr pelo XXI, e Lisboa aos rebolões para o XIX.
Se o espaço público em Lisboa anda feio e doente – e se dúvidas houver, olhem! olhem! e voltem a olhar! –, há uma causa: a Câmara Municipal. A miopia da autarquia só alcança o turismo, mas lamentavelmente em breve apenas mostraremos o exotismo da degradação. E ao ritmo da caixa registadora, pois piores se mostram as intervenções quando há dinheiro. E nunca houve tanto. As receitas fiscais da autarquia passaram de 286 milhões em 2013 para quase 544 milhões em 2017 (+90%), e as receitas líquidas subiram, neste breve período de quatro anos, dos 476 milhões para os 759 milhões de euros (+59%). Temam o pior, portanto.
Não deveria ser necessário (re)lembrar o óbvio em democracia: as responsabilidades do presidente da autarquia de Lisboa, Fernando Medina, não decorrem de vitórias eleitorais; decorrem sim da necessidade de uma boa administração do espaço público em sentido lato. Infelizmente, nesta matéria, Medina e sua vereação têm laborado sobre dois lamentáveis equívocos.
O primeiro é considerar ser o espaço público de Lisboa uma pertença dos lisboetas – ou dos fregueses, como declarou há pouco tempo a presidente da Junta da Misericórdia para justificar a vedação "selvagem" do Jardim do Adamastor. Daí advém perigoso sofisma: como os autarcas de Lisboa são eleitos pelos lisboetas, em caso de contestação sempre eles justificam agir em defesa dos interesses dos lisboetas, mesmo não os "identificando", assim passando a ideia de ser a contestação de não-lisboetas, logo não legítima.
Sejamos claros: nenhum cidadão (ou autarca) pode reivindicar maiores direitos sobre o espaço público do que os demais. Por razões de democracia, e pelas próprias características de espaço público: não é possível nem desejável excluir as pessoas. E o seu uso e/ou usufruto, em situações normais, nunca se esgota, o que o torna um bem público. Ora, se um bem público é um espaço de socialização, também é de conflito, propenso a atitudes que causam externalidades negativas, mas que podem e devem ser conciliadas, não impostas.
Espera-se, por isso, que sejam as autarquias, como autoridade de proximidade, os melhores autores para gerir estes bens públicos, eliminando conflitos e externalidades negativas, através de acções interventivas, reguladoras, moderadoras e fiscalizadoras. Entre cidadãos e autarcas existe assim um contrato social: um serviço à comunidade, por autarcas, suportado por impostos e taxas.
Porém, e aqui reside o segundo equívoco de Fernando Medina, este contrato social não é o de Thomas Hobbes. No século XVII, socorrendo-se desse contrato, o Estado (Rei) poderia vedar um espaço público (transformando-o num bem privado, como o Jardim do Adamastor) em vez de disciplinar e fiscalizar o seu uso; poderia desleixar a gestão dos resíduos e meter depois contentores no nariz das pessoas; poderia ser inimiga das árvores e jardins; poderia até beneficiar a nobreza em detrimento dos peões; poderia deixar degradar os serviços para a seguir brandir medidas draconianas. E poderia fazer isto agora, sem dar cavaco, se não houvesse democracia.
As eleições não são "carta de alforria" aos políticos para medidas autistas e autoritárias. A gestão de Fernando Medina em Lisboa tem sido, infelizmente, orientada para resolver imbróglios políticos (imundície e insegurança), com acções rápidas e fáceis, mas ineficientes, e que, por isso, sonegam direitos e afectam indelevelmente a qualidade de vida aos cidadãos. Ou seja, em vez de as exterminar, é ele o agente causador de externalidades negativas. E impõe-nas, mesmo se, de tempos em tempos, desce do Olimpo para apresentações públicas de factos consumados. Em democracia não precisamos de Leviatãs, e muito menos preguiçosos. E nem os deveríamos suportar.