Município do Porto não tinha como saber que terreno na Arrábida era da APDL, dizem juristas
Os advogados Pedro Alhinho e João Faria voltaram a analisar terrenos da Arrábida envolvidos num empreendimento polémico, embargado por acção do Ministério Público.
A Câmara do Porto pediu aos advogados Pedro Alhinho e João Faria uma adenda ao parecer sobre a dominialidade dos terrenos na marginal do Douro, Junto à Ponte da Arrábida, onde está a ser construído um polémico empreendimento que o Ministério Público embargou, há três semanas. Perante a notícia do PÚBLICO, de 20 de Janeiro, que revelava que a obra está parcialmente implantada num terreno do Estado, sob jurisdição da Administração do Porto do Douro e Leixões, e que outra parte desse mesmo terreno foi entregue em 1999 ao município pelo grupo que queria construir nesta zona, os dois juristas concluem que a autarquia não tinha como saber que estaria a receber algo que não pertenceria ao privado.
A 20 de Janeiro, o PÚBLICO revelou que grande parte de uma propriedade do domínio público do Estado, com uma área de mais de 4000 metros quadrados, foi indevidamente registada por um casal, em 1996, com recurso à usucapião. Vendida, logo de seguida ao grupo Imoloc, que já tinha registado, a seu favor, uma outra parcela, a poente – que era, na verdade, propriedade do município – aquela foi integrada num projecto urbanístico cujos primórdios remontam a 1999.
Nessa altura, o grupo apresenta-se nos serviços municipais como dono de três grandes parcelas na Rua do Ouro, e propõe à Câmara que esta lhe ceda um espaço ajardinado de pouco mais de 300 metros quadrados, à face da rua e encravado entre os seus terrenos, para garantir uma frente urbana contínua. Em troca, promete doar-lhe cerca de 1600 metros quadrados mais perto da ponte da Arrábida.
O que o PÚBLICO explicou também, nesse artigo, é que estes 1574 metros quadrados que a câmara aceitou, e integrou no domínio público municipal, faziam parte dessa propriedade do domínio público do Estado, sob jurisdição da APDL. Entretanto, o Ministério do Mar, e a própria APDL, já assumiram que esta empresa pública vai litigar, em tribunal, para reaver o terreno alvo de usucapião, que está em parte nas mãos da Arcada - a empresa que detém, actualmente, os direitos sobre aquela propriedade que era da Imoloc - e em parte também, na esfera do município.
O PÚBLICO sabe que a APDL tem já na sua posse muita documentação que comprova a titularidade daqueles quase 4200 metros quadrados, e ainda na reunião de câmara de terça-feira Rui Moreira revelou que representantes do município e da APDL se reuniram, na semana passada, para analisar esta questão. Nesse mesmo momento, o independente adiantou que a autarquia “dará todo o apoio e documentação” que aquela entidade necessitar em relação “à dominialidade do terreno”.
Nessa mesma reunião, o autarca independente facultou à vereação a nova adenda ao relatório dos juristas Pedro Alhinho e João Faria, que em Setembro passado tinham feito uma análise à propriedade das três parcelas que deram origem ao terreno onde foi licenciada a obra da Arcada, mas não aprofundaram, então, a proveniência da propriedade alvo de usucapião. Apesar de consideram, no documento enviado então à câmara, que sobre essa “poderiam ser suscitadas dúvidas”.
Essas dúvidas acabariam por ser esclarecidas pelo PÚBLICO, cuja notícia motivou esta nova consulta. E nela, o que foi pedido aos juristas foi que analisassem se a autarquia tinha forma de saber, em 1999, no momento em que lhe é proposta a permuta de terrenos, que o que estava a receber era, na verdade, um bem pertencente ao Estado. E a conclusão é clara: o município “não tinha porque não confiar na verdade documentada no registo predial”, segundo o qual, toda a área em causa pertencia à Imoloc.
O que os juristas não explicam, nesta adenda de apenas cinco páginas, é como chegam à conclusão de que “[não] existiam evidências documentais que permitissem ou impusessem ao município concluir que a mesma [parcela de 1574 m2], em formulação negativa, não fosse da propriedade da permutante imoloc, ou, em formulação positiva, fosse da propriedade de terceiro”.
É verdade que, em 1998, o município, então liderado por Nuno Cardoso, ignorou uma informação interna, da directora do Departamento de Património e Aprovisionamento, que "apenas" alertava para a existência, no conjunto de terrenos da Imoloc, de uma parcela municipal, ignorando que o negócio envolvia ainda, ao lado daquela, uma parcela do Estado. Mas quando uma década mais tarde, já no mandato de Rui Rio, o assessor principal da Direcção Municipal de Finanças e Património, Moreira da Silva, voltou ao assunto, para insistir na mesma conclusão, na vasta documentação histórica que reuniu já era possível ler que a dita parcela municipal confinava, a nascente, com uma propriedade da Fazenda Nacional.
Foi com base nesta documentação, e noutra associada às expropriações para a construção da Ponte da Arrábida – também na posse do município desde os anos 60 – que o PÚBLICO conseguiu identificar a parcela que, sendo da Fazenda Nacional, estava, e estará ainda, sob jurisdição da APDL, e que foi, em grande parte alvo de usucapião, numa área bem delimitada na matriz das Finanças, também consultada.
Ou seja, se é claro que a edilidade não saberia, em 1998, que para além de uma parcela municipal estava em causa, neste negócio, um bem de “terceiros”, não deixa de ser claro também que, com uma investigação mais aprofundada, e com recurso a documentos que já estavam disponíveis, seria possível chegar a uma conclusão diferente. Em 1998, em 2008 ou em 2018, altura em que os dois juristas estudaram o caso e mostraram dúvidas quanto a esta usucapião, fundadas mas não exploradas no relatório que entregaram.
Recorde-se que, para além deste caso, o município foi no ano passado alvo de uma queixa da APDL por causa da jurisdição sobre a margem do rio – o domínio público hídrico (DPH) – e que, na sequência dessa queixa, o Ministério Público intentou no mês passado uma acção propondo a nulidade das decisões administrativas que levaram ao licenciamento do empreendimento da Arcada. A acção, que levou ao embargo da obra, fundamenta-se na consideração de que a área está sob tutela da Agência Portuguesa do Ambiente e da administração portuária, e em DPH, o que obrigaria qualquer particular que ali quisesse construir a provar que o terreno era privado antes de 1864, entre outras obrigações, entendimento que o município vem contrariando desde a aprovação da versão de 2006 do Plano Director Municipal.