A Venezuela no meio da tempestade
No que nos diz respeito, é importante deixar nítido que o que está em curso na Venezuela não se confunde com os reconhecimentos de governo de antanho.
A Venezuela aproxima-se do ponto culminante da crise política e social que, de forma visível ou larvar, se arrasta desde há vários anos. No tabuleiro global, Estados Unidos, China, União Europeia, Rússia, América Latina (de forma não homogénea) colocaram as suas peças, sem grande possibilidade de recuo. De um lado, aqueles que, a começar pelos Estados Unidos, reconheceram Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como líder do novo “Governo”; do outro, Rússia, China, Turquia, México e Cuba, que continuam a apostar em Nicolás Maduro. Algo está a mudar, e de forma acelerada.
Maduro já só governa de facto e, no terreno, Guaidó ainda não governa. Mas, é da natureza humana: o vento mudou e, dentro e fora da Venezuela, são cada vez mais os que se dizem “pró-Guaidó desde pequeninos”.
Não tem sido destacado aquele que parece poder ser o regresso em força da figura do reconhecimento de Governo. A questão é relevante porque nos envolve, e a regra tem sido a de que Portugal não reconhece Governos, reconhece Estados. Teremos mudado de posição? Não, e ainda bem que não.
Com efeito, quase não chegam os dedos de uma mão para enunciar os defeitos graves do reconhecimento unilateral de Governo. Foi instrumento típico de ingerência e da lei do mais forte, do arbítrio dos vários pesos e ainda mais medidas, da promoção por vezes grosseira ou violenta de um poder mais “amigo”. Nos últimos anos, alguns casos houve, nunca por razões convincentes. Tome-se a Líbia, quando, em março de 2011, foi reconhecido como governo “legítimo” (contra Khadafi) um Conselho de Governo Interino que ninguém sabia bem o que era e ao que vinha. Por estas razões, e no que nos diz respeito, é importante deixar nítido que o que está em curso na Venezuela não se confunde com os reconhecimentos de governo de antanho.
Hoje, a grande maioria coincide na reprovação das irregularidades graves que contaminaram sem remédio (democrático) os últimos processos eleitorais na Venezuela. Organizações internacionais, da OEA à UE, recusaram reconhecer os resultados das eleições regionais, para a Constituinte ou presidenciais. Em janeiro deste ano, o Conselho Permanente da mesma OEA deliberou, por ampla maioria, recusar reconhecer Maduro como Presidente. Ou seja, não é destes dias, ou de última hora, a convicção sobre a ilegitimidade do Governo na Venezuela.
Faltava a alternativa, pois que só se coloca um problema de reconhecimento de Governo quando se enfrentam duas pretensões opostas, identificadas e não conciliáveis. Foi o que aconteceu quando Juan Guaidó se proclamou Presidente interino. O apoio internacional pendeu, com naturalidade, para o seu lado.
E o povo, em tudo isto, perguntar-se-á? Muito se tem discutido um direito à democracia, dele sendo titular o povo do Estado, em casos-limite contra o seu próprio “governo”, com responsabilidade internacional de agir nessas situações. Infelizmente, a Venezuela parece preencher as condições para que para ela se olhe sob este prisma. Por outro lado, estarmos cada vez mais próximos de uma situação de caos político e de desastre humanitário acelera a urgência das decisões. A inflação, tresloucada, está na ordem dos milhões por cento ao ano. Os preços têm duplicado a cada quinzena. A violência política recrudesce, com várias dezenas de mortos nas recentes manifestações, para alarme das Nações Unidas. Os serviços públicos essenciais, quase ausentes, as situações de pobreza extrema e de fome a dispararem. Quase três milhões de venezuelanos deixaram o seu país, com a pressão que isso significa para os Estados vizinhos; e até já está em apreciação pelo Tribunal Penal Internacional uma queixa apresentada por vários Estados que invocam terem sido cometidos crimes internacionais na Venezuela.
Portugal tem estado bem, mesmo muito bem. Sem precipitações, com o recato, a sensatez e sentido de Estado que estes assuntos exigem, com os cuidados muito especiais que impõe a defesa e proteção dos tantos e tantos milhares de portugueses que vivem na Venezuela, e como futuro elemento do Grupo de Contacto que possa vir a ser constituído.
A União Europeia, também ponderada, tem recusado a escalada ou o espalhafato. E Federica Mogherini resistiu com firmeza à excitação bélica daqueles que, a partir de confortáveis sofás, tanto gostam de fazer voz grossa e mostrar o músculo (vocal).
Se a UE não reconheceu os resultados das presidenciais de maio de 2018, é em coerência que reforça a exigência de realização de novas eleições, desta feita livres, justas e escrutinadas. Porque, para dizer o menos, a situação na Venezuela não melhorou, e o tempo para uma solução negociada é manta cada vez mais curta. Até aqui, não se vê quem possa discordar.
A Maduro foram dados oito dias para anunciar a realização de “eleições presidenciais livres, transparentes e credíveis”. Maduro já disse não, e o ainda MNE venezuelano reiterou, perante o Conselho de Segurança. Fizeram mal. Espera-se, ainda assim, que esta atitude não seja a antecâmara de algo pior, de um conflito interno com mão(s) externa(s). John Bolton, veterano destas andanças, deixou que os jornalistas lessem “5000 soldados na Colômbia”; e os Estados Unidos dirigem as baterias contra a petrolífera PDVSA, a quem, até há dias, compravam mais de meio milhão de barris de crude/dia. Traduzindo: inimigos, inimigos, negócios à parte.
No meio da turbulência e das manifestações populares que vão ser cada vez mais (como se verá já neste sábado), não deve perder-se de vista o essencial. No centro do turbilhão, é crucial que as forças armadas e de segurança venezuelanas retirem o apoio a Maduro e colaborem na organização e salvaguarda de eleições livres no País. Essa é, de facto, a peça-chave do puzzle.
E, afinal, sobre o regresso do reconhecimento de Governo e seus defeitos? Por enquanto, não se voltou atrás: a avaliação da (i)legitimidade foi multilateral e sólida, o reconhecimento de Guaidó também envolveu essa dimensão. Em segundo lugar, o presidente da Assembleia Nacional terá um mandato delimitado, juridicamente sedeado no órgão a que preside. É assim lógico que, transcorrido o prazo para Nicolás Maduro se retirar, o Governo português reconheça Juan Guaidó como, e cito, “Presidente interino da Venezuela, nos termos previstos pela Constituição da Venezuela, com a incumbência de convocar as eleições”.
Vai tudo correr bem na Venezuela? Não, porque já está a correr mal. Espera-se é que, com estas decisões, se possa ainda ir a tempo de evitar que corra pior.
P.S.: Estamos na fase da corrida em que cada um tenta ser aquele que reconhece Guaidó primeiro, mais e melhor. Desta feita, foi o Parlamento Europeu. É um ato só político, de marcação de agenda. Mas mal não faz.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico