João César Monteiro foi de autocarro
João César Monteiro morreu e a última vez que o vamos ver no ecrã ele passeia de autocarro. Sempre a subir, sempre a subir, na carreira número 100, da Praça das Flores ao Príncipe Real, ao lado das pessoas do bairro.
Este texto foi publicado em 17 de Maio de 2003.
A última vez que o vamos ver ele chama-se João Vuvu, é viúvo e, diz o próprio, é já mais dado a extravagâncias do que propriamente a altas cavalarias ("Já não tenho idade para estas espiritualidades"). Está já de passagem, como quem vai partir, e está quase sempre recolhido na penumbra do seu apartamento. Protegido da luz lá de fora. Mas sempre pronto a explicar as várias etapas de uma cartilha sensual às raparigas que lhe batem à porta, sem carta de recomendação, para cumprirem a função de mulher-a-dias.
A última vez que o vamos ver é em Vai e Vem, um conjunto de rituais e jogos de iniciação, mas mais murmurados e em surdina do que aqueles que praticava um sátiro chamado João de Deus, que foi a vez anterior a esta em que o criador Monteiro se retractou sob os traços de uma criatura dos diabos (Recordações da Casa Amarela, de 1989, A Comédia de Deus, de 1995, provavelmente o seu filme mais inclassificável, e As Bodas de Deus, de 1998).
Vai e em passou ontem no Festival de Cannes, na Secção Oficial, numa sessão única (com a presença do Ministro da Cultura, Pedro Roseta, e do secretário de Estado, José Amaral Lopes) e na sala principal, cheia, do Palácio dos Festivais, onde foi prestada homenagem ao cineasta - representado pela equipa que ajudou a fazer esta última obra, a quem no final a audiência entregou aplausos.
Sempre a subir, sempre a subir, o que quer dizer que há alguém que não volta depois deste autocarro. E que não há volta depois deste filme. Vai ser impossível olhar para Vai e Vem sem encontrar nele a lucidez de obra terminal, a consciência, por parte do realizador, do seu fim (ou, simplesmente, de um fim — a solidão tinha-se tornado muito visível em Branca de Neve, o filme-escândalo, o filme da escuridão e do ecrã a negro).
Filme de despedida, disse-se já sobre Vai e Vem. Porque haveria marcas disso: a personagem de João de Deus a ficar para trás, a ser evocada como memória; uma câmara em movimento circular a juntar no plano recordações da Casa Amarela e de outros filmes, e da vida pessoal do realizador.
Será tudo isso, mas é mais do que isso: aquele percurso, ascendente, é de despojamento e de auto-irrisão — afinal, não é por acaso que um usurpador das inocências femininas vá acabar no hospital, violado por um gigantesco falo africano, fantasmas de aventuras etíopes do seu passado aventureiro.
O gesto final de César Monteiro, Vai e Vem, é desarmante e pudico. Abre-se a cortina, e a provocação, a blasfémia e a escatologia mostram-se como fingimento, criação. É isso o que irrompe num dos momentos mais reveladores deste filme: depois de uma tarantela em contra-luz com Jacinta/Rita Durão, e depois de João Vuvu a convidar a sentar-se sobre o seu nariz, o profanador rende-se a si próprio e abre os braços de exclamação: é tudo teatro. O que já era dito, afinal, pela delicadeza dos gestos e do toque nos corpos, pela fragilidade, mesmo durante o mais escatológico e profanador dos convites à provocação.
Quem fala aqui, e pela última vez, é o criador João César Monteiro, que nunca deixou de trabalhar afincadamente na criação de uma personagem pública de maldito, sujeitando-a a todo o tipo de mal-entendidos. Por isso, o momento decisivo não é tanto aquele em que se encena um funeral; é aquele que nos olha, durante longos minutos, no último plano de Vai e Vem.
É um olho, azul. Que nos olha, que interpela directamente o espectador. E nós, chegámos, verdadeiramente, a saber quem é que olhámos ao longo de toda uma obra?
Esse plano é outra forma, irreversível, de sentir que passou por aqui cinema. E foi assim, num autocarro, que vimos pela última vez João César Monteiro.