Marcelino da Mata, o racismo e a memória
A relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica.
A propósito de toda esta história do racismo em Portugal e das declarações de António Costa sobre a cor da sua pele, li há dias um curioso artigo de Camilo Lourenço no Jornal de Negócios onde a certa altura ele dizia isto: “Portugal não é um país racista; é um país onde isoladamente acontecem casos de racismo. Aliás, seria estranho qualificar de racista um país que tem governantes oriundos das ex-colónias (já olharam para a ascendência de Marcelo?), o primeiro negro (Mário Coluna) a capitanear uma selecção europeia e um negro como militar mais condecorado da sua História…”
Como os caros leitores sabem, na última semana houve imensa gente a classificar-me como um tipo ignorante. Aquela frase de Camilo Lourenço confirmou isso mesmo: eu não fazia a menor ideia de que o militar mais condecorado da nossa História fosse negro. Estou a falar de Marcelino da Mata. Embora já tivesse encontrado referências ao seu nome a propósito da guerra em África, onde foi o oficial mais destacado dos comandos guineenses, desconhecia o número das suas condecorações. Ora, entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata recebeu duas medalhas de 1ª classe, duas medalhas de 2ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de Guerra, e foi feito Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada, a mais elevada ordem honorífica do país.
Segundo sei, Marcelino da Mata tem 78 anos e continua vivo, a residir em Portugal. Teve a sorte de escapar com vida da Guiné (ao contrário de inúmeros elementos africanos das forças especiais portuguesas, que foram abandonados pelo Exército e acabaram fuzilados pelo PAIGC), mas teve o azar de cair nas mãos de militares de extrema-esquerda no pós-25 de Abril, acabando barbaramente torturado no quartel do RALIS (sim, houve muita tortura nos primeiros tempos da democracia portuguesa). Felizmente, conseguiu fugir para Espanha, tendo regressado a seguir ao 25 de Novembro.
Promovido por distinção a capitão do Exército Português, graduado em tenente-coronel, no ano passado falou-se da sua promoção a major. Vasco Lourenço opôs-se a essa promoção num artigo aqui no PÚBLICO, intitulado “A Guerra Colonial ainda não acabou?”. Argumentava Vasco Lourenço que Marcelino da Mata fora responsável por vários crimes de guerra (“resultado da acção de autênticos assassinos”), que constituíam “uma enorme vergonha para o Portugal de Abril”.
É muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exactidão quais foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber: não há qualquer biografia de Marcelino da Mata. Nenhum filme. Nenhum documentário. Sei que não vivemos nos Estados Unidos da América, mas bolas, deveria haver limites para a nossa falta de sensibilidade histórica e jornalística.
Pensem comigo: o militar português mais condecorado de todos os tempos é negro; esteve na guerra colonial; há testemunhas a dizer que cometeu crimes de guerra; há testemunhas a dizer que foi torturado em 1975; ficou com sequelas graves; está vivo; mora em Sintra. E, pelos vistos, ninguém acha que isto é uma história incrível. Como é possível?
Camilo Lourenço tem razão: a relação de Portugal com os habitantes das suas antigas colónias é dominada por uma profunda ignorância histórica. Se está mais do que demonstrado que o racismo está ligado ao medo do outro e ao desconhecido, talvez possamos começar por aqui: aprender alguma coisa sobre a história dos negros que marcaram a nossa História. Alguém entreviste este homem, se faz favor.