Jorge de Sena, António Ramalho Eanes: cultura, educação e uma homenagem
Não obstante a obra e a figura humana de Jorge de Sena, como podemos querer que o seu pensamento e os seus livros sejam homenageados se hoje, nas escolas e nas universidades, não se lê o grande romancista de Sinais de Fogo?
A pretexto da publicação recente do número 200 da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, e porque é a personalidade ímpar de Jorge de Sena (1919-1978) a ser homenageada, convém não esquecer que, neste ano de 2019, celebrando-se Sophia de Mello Breyner, igualmente devemos ao poeta de Fidelidade (1958), ao homem de cultura humanista que escreveu Uma Canção de Camões, uma homenagem que o traga ao nosso convívio.
Mais se justifica lembrar Jorge de Sena quando as palavras iniciais neste número da Colóquio são escritas pelo nosso primeiro Presidente da República democraticamente eleito (foi em fins de Junho de 1976), António Ramalho Eanes. No texto que dedica àquele que foi o conferencista principal aquando a celebração do 10 de Junho de 1977 (o célebre “Discurso da Guarda”), Ramalho Eanes começa por citar Eduardo Lourenço, lembrando que se “uma Pátria não deve nada a ninguém”, deve, porém, “tudo a todos”. Com a elevação e o compromisso cívico que caracterizam os seus escritos e as suas intervenções, Ramalho Eanes expende, a reboque de Sena, considerações muito importantes para os nossos dias. Logo no primeiro parágrafo destaca, a partir do binómio indivíduo/espécie humana, e à luz de Rousseau, a importância da cultura e da educação para a formação e desenvolvimento de virtudes cívicas que possam, no devir, encaminhar-nos em “rotas competentes”. Jorge de Sena surge-lhe, portanto, como um daqueles cidadãos que, como indivíduo, aprimorou o sentido da vida em colectivo. A pátria deve, pois, àqueles que são como marcos geodésicos da sua topografia cultural, o devido encarecimento, justamente porque contribuíram para que o caminho colectivo se orientasse na busca de valores perenes, tais a paz, a justiça, a segurança, a liberdade. Eanes vê bem a importância decisiva de Jorge de Sena nessa orientação da Res Publica. Escreve: “De vasta dimensão e rara qualidade é a sua obra cultural, enquanto poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e epistolografista” e, com justiça, coloca-o entre as figuras cimeiras do século XX português. Sublinha, no retrato que de Sena traça, a intervenção “em prol da liberdade” e a luta “contra a ditadura, a perversa colonização a que o Estado Novo submeteu a Sociedade Civil e os cidadãos portugueses”, com a concomitante situação de exilado a que, por se ter levantado contra o obscurantismo, se viu condenado – ele e a sua família.
Primeiro no Brasil, em 1955, e depois nos Estados Unidos, a partir de 1965, foi Jorge de Sena o actor principal (com Eduardo Lourenço e Casais Monteiro, com António Sérgio e Magalhães Godinho como seus pares de igual valia), o intelectual maior que, pensando Portugal e as suas gentes, apelou sempre, afirma Eanes, antes e depois do 25 de Abril, “à responsabilidade da participação cidadã”. Em nome dum patriotismo universalista, ciente de que, como Terêncio, nada do que é humano lhe deveria escapar, Sena encarna – ou deveria encarnar – para os portugueses nascidos já depois de Revolução de ’74 um modelo de comportamento.
Mas – dirigindo-me a António Ramalho Eanes, a todos quantos estiveram no dia 22 de Janeiro na Fundação Gulbenkian; dirigindo-me a Eduardo Lourenço e a Guilherme d’Oliveira Martins e a quantos partilham a responsabilidade de educar pensando o país (e por isso estas palavras são também para o ministro da Educação e a ministra da Cultura) – pergunto: não obstante a obra e a figura humana de Jorge de Sena, como podemos querer que o seu pensamento e os seus livros sejam homenageados se hoje, nas escolas e nas universidades, não se lê o grande romancista de Sinais de Fogo? A amnésia cultural, a ignorância quanto a factos, nomes e datas do nosso passado é evidente nas gerações mais novas – e a minha geração não foge à regra. É este um problema, creio, da maior importância e que só uma política educativa e cultural de absoluto empenhamento em nome do livro e da História pode resolver. É que só lendo os nossos maiores podemos, como deseja Ramalho Eanes, combater “provincianismos evasivos e perversos saudosismos, de maneira a termos autónomo futuro, no presente, e autónomo futuro, no futuro, como Pátria livre, forte, velha e de tão distintiva personalidade”.
Pátria livre, forte, velha, escreve Ramalho Eanes. Palavras densas, com espessura, mas que correm o risco de serem satirizadas pelo humor mais nefando que por aí pulula e faz opinião. Sim: de sermos livres se trata. Mas desconhecendo a nossa cultura, livres não estamos das mais subtis formas de bestialização social. Sim, de termos um país forte se trata, porque se deve cultivar a política com cultura, não a baixa política das manigâncias económico-gestoras. Forte um país dirigido com competência e memória, com bom senso e bom gosto. Forte porque se deve cimentar o espírito crítico e não o opinativo em que estamos atolados. Isso só será possível com a presença da literatura e da História, contrabalançando o paradigma da tecno-ciência. Sim, um Portugal velho que devemos conhecer porque é essa ancestralidade que nos distingue no contexto europeu e mundial – sem serôdios nacionalismos, antes com a seniana visão integrada do homem português nesse vasto mundo. A Literatura e a História – em todas as áreas de ensino, desde o 5.º ao 12.º anos – porque se deve formar o carácter. Porque, em rigor, é contra os populismos vários que Eanes escreve recordando Jorge de Sena. É um ex-Presidente escrevendo sobre um homem de enorme vulto cultural – é um texto, o de Eanes, formador, educativo. Um texto que tem de ser lido por quem tutela a Educação em Portugal.
Num Portugal em que os mais jovens, na verdade, desconhecem Jorge de Sena, lembremos também outros grandes esquecidos da Pátria: Camilo Pessanha, Sá-Carneiro e Nemésio; José Gomes Ferreira, Cardoso Pires e Carlos de Oliveira; Irene Lisboa, Natália Correia, Ruben A. Leitão, Augusto Abelaira e David Mourão-Ferreira; Afonso Duarte, Pascoaes, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira... Nenhum destes autores está nos programas escolares. Sena, estes que contamos entre os nossos maiores, está vivo – mas para poucos. Nas escolas, exceptuando as novas estrelas de uma literatura malsã, que vultos da nossa cultura os jovens conhecem? E por tudo isto este número 200 da Colóquio-Letras é imprescindível.