Documentário explica o fim da epopeia da caça à baleia nos Açores
Estreia-se esta sexta-feira um documentário com produção portuguesa sobre a transformação da indústria baleeira na actividade de observação de baleias no arquipélago açoriano.
Havia uma temática que não saía da cabeça da realizadora Sandra Cristina Sousa e da sua equipa constituída maioritariamente por açorianos: a caça à baleia nos Açores. “Era preciso fazer alguma coisa para arrumar este assunto”, conta-nos. Como tal, procuraram o que tinha sido feito sobre o tema e perceberam que faltava contar como a baleação nos Açores se tinha transformado na observação de baleias. Acabou-se por realizar o documentário Fortuna Escorregadia que se estreia esta sexta-feira na RTP1 às 21h.
Sandra Sousa, agora com 42 anos, chegou aos Açores com apenas nove meses. “Portanto, posso considerar-me uma açoriana”, brinca a realizadora. “A baleação é um assunto que está no sangue dos açorianos. Foi uma epopeia e esta geração gostava de explicar de uma vez por todas que os [baleeiros] não foram assassinos e que estavam mesmo a tentar sobreviver.” A explicação surge neste documentário de 52 minutos feito pela produtora audiovisual Comunicar Atitude, com sede na ilha do Pico, e com imagens subaquáticas de Nuno Sá.
Os antigos baleeiros são uns dos protagonistas da história. “O meu avô começou a levar-me ‘à baleia’ com 14 anos de idade [quando se podia ser tripulante de uma canoa baleeira]”, recorda Manuel Medina Azevedo no documentário. Mas este é apenas um dos testemunhos. “Íamos lutar contra um animal que tinha muita força, mais do que a gente”, ouve-se de outro ex-baleeiro. “A grande maioria – e falo por conhecimento pessoal do meu pai – foi àquela vida por necessidade, não por gostar de matar baleias”, diz por sua vez António Manuel Garcia, também antigo baleeiro.
“Houve uma fase em que se descrevia os baleeiros como assassinos, como os maus da fita”, recorda ao PÚBLICO Sandra Sousa. “Queremos mostrar que tudo se fez por uma questão de sobrevivência e por estabilidade financeira.” E até o nome do documentário – Fortuna Escorregadia – se refere aos baleeiros. A expressão (greasy luck, em inglês) pertence a um poema que os baleeiros costumavam escrever nos dentes de baleia durante viagens de baleação. Este poema é declamado por Orson Welles no filme Barbed Water (1969) realizado na ilha do Faial no Verão de 1968. “A caça às baleias nunca deu dinheiro aos baleeiros para se sustentarem”, explica Sandra Sousa sobre o uso da expressão.
Este documentário também pretende mostrar alguns “mal-entendidos e segredos” sobre o fim da baleação nos Açores. Em 1982, a Comissão Baleeira Internacional anunciou a suspensão da caça de todas as espécies de baleias com início a partir de 1985 e 1986. Ora, por esta altura, Portugal entrou para a Comunidade Económica Europeia (com a sigla de CEE e actual União Europeia) e fica mesmo impedido de caçar baleias, acabando por ser o último país europeu a abandonar a prática. “Pelo facto de estar à distância e pela sua insularidade, a maioria destas comunidades [açorianas] não terá entendido na altura o que era isto da CEE e porque iam acabar com a caça à baleia”, indica Sandra Sousa. Na altura, os baleeiros acabam por “culpar” o eurodeputado açoriano Vasco Garcia.
Além disso, a realizadora diz que os baleeiros não perceberam que havia um cheque de 100 mil dólares (87 mil euros) da CEE para conversão da indústria baleeira na observação de cetáceos. Em 1987, caçou-se um cachalote (na verdade, foram três), a CEE não gostou e cancelou o projecto. Vasco Garcia conta este episódio no documentário.
Projecto sobre turismo sustentável
Sandra Sousa refere ainda que o mais interessante foi saber que foram os ambientalistas que criaram as bases para fomentar a criação das empresas de observação de baleias nos Açores. “Percebe-se que a baleação pode passar para whale watching [observação de baleias], que pode haver aqui um negócio”, diz a realizadora. “Foram os ambientalistas que falaram com as comunidades. Hoje os filhos dos baleeiros trabalham nessas empresas.”
Por exemplo, em 1989, o velejador francês Serge Viallelle – outro dos protagonistas do documentário – criou o Espaço Talassa, a primeira empresa de observação de cetáceos em Portugal. Hoje, a protecção das baleias é a grande questão sobre estes cetáceos nos Açores e o turismo tem o seu contributo. “O facto de já existir muito turismo a recair sobre as baleias faz com que não exista um controlo efectivo da protecção destes cetáceos”, avisa Sandra Sousa. “Há muitas embarcações no mar, tudo a correr atrás das mesmas baleias.” Portanto, no final do documentário questiona-se se as baleias estão a ser protegidas e deixa-se no ar o que poderá ser feito.
“Ainda temos de encontrar um equilíbrio e é por isso que continuo a insistir neste trabalho: para falar do equilíbrio da biodiversidade e do bom senso que o homem tem de ter com o nosso planeta. Não é só com as baleias”, aconselha Serge Viallelle no documentário. Mesmo com a proibição da baleação foram capturadas entre 1985 e 2015 em todo o mundo 50.751 baleias, segundo dados de 2017 da Comissão Baleeira Internacional. No topo da lista está o Japão com a caça de 5519 baleias sem autorização e 15.315 para fins científicos. A seguir está a Noruega com a captura de 11.900 e Rússia com 6056, ambos os países sem autorização.
A realizadora conta que já está a preparar um documentário sobre turismo sustentável (não só sobre as baleias) nos Açores. Chama-se Terras d’um Caim, expressão que nasce a partir de uma comunidade no Pico que consegue ser auto-sustentável em terrenos de basalto. Na Bíblia, Caim refere-se a uma terra árida. Por agora, fiquemos com o Fortuna Escorregadia esta noite na RTP1, na RTP Internacional às 21h15 e em 2019 na RTP Açores e na RTP Madeira.