A misteriosa baleia-de-bico-de-true foi filmada debaixo de água pela primeira vez, nos Açores
Descrita pela primeira vez em 1913, continua a haver pouca informação sobre ela. Divulgaram-se agora fotografias e um vídeo desta espécie de baleia, e ficou a saber-se mais sobre a sua coloração: parece vestir uma máscara branca.
Imagine-se num barco insuflável no meio da tranquilidade do oceano Atlântico. Está bem perto da costa de uma das ilhas dos Açores, o Pico, e nesta visita de estudo pretende-se ver tartarugas-comuns. De repente, ouvem-se uns sons por baixo do barco. O guia Roland Edler, já com uma longa experiência, percebe que são baleias-de-bico, animais tão difíceis de observar. Com a maior rapidez possível, filma as baleias debaixo de água. Podia ter sido um passeio comum, sem grande história para contar, mas se estivesse estado mesmo neste grupo de observadores teria uma história para contar. Nesse dia, 5 de Maio de 2013, conseguiu filmar-se pela primeira vez as baleias-de-bico-de-true e esse vídeo é agora divulgado.
A baleia-de-bico-de-true (Mesoplodon mirus) foi descrita cientificamente em 1913 pelo biólogo norte-americano Frederick W. True. Já lá vão mais de 100 anos, mas mesmo assim não tem sido fácil estudar estas baleias. Gostam das profundezas, vivendo cerca de 92% do tempo no fundo do mar. E quando se diz profundezas significa que aguentam até duas horas a três quilómetros profundidade. Pertencem à família Ziphiidae, que tem 22 espécies de baleias-de-bico.
Os animais do género a que pertence a baleia-de-bico-de-true atingem envergaduras entre 4,5 e 5,5 metros. E como vivem nas profundezas do mar comem peixes e lulas, que estão a mais de 1000 metros de profundidade. Vivem no Hemisfério Norte, tanto no Oeste e Leste do Atlântico, indo até aos Açores e Canárias. No Hemisfério Sul, vão da costa da África do Sul até à Nova Zelândia e Austrália. Entre os dois hemisférios, há um enorme espaço, onde não se detectou a sua existência, possivelmente por falta de dados. E ficamos por aqui, pois não se sabe muito mais sobre estas baleias de focinho pontiagudo.
Ou ficávamos. Esta terça-feira foi publicado um trabalho na revista Peer J sobre as primeiras confirmações genéticas da baleia-de-bico-de-true no Nordeste do Atlântico e com novos dados sobre a sua coloração. Tudo graças a uma série de observações nos Açores e nas ilhas Canárias, que nos chegam através de um vídeo e várias fotografias.
A primeira observação aconteceu na ilha de Lanzarote, em 1984, quando uma baleia-de-bico-de-true deu à costa. Dez anos depois, Lisa Steiner, guia da empresa Whale Watch avistou uma destas baleias nos Açores em alto mar, mas ainda hoje há incertezas se esta seria mesmo uma baleia-de-bico-de-true. Em 2004, voltou a dar à costa uma destas baleias em Fuerteventura, nas Canárias, e não há dúvidas, era mesmo uma baleia-de-bico-de-true.
A genética também confirma
Nesse mesmo ano, foi encontrado um macho, que ainda não adulto, no pequeno porto do Alcaide, na cidade da Horta, na ilha do Faial. Tinha cerca de 3,7 metros e estava a boiar já morto perto da costa. “Esta foi uma das amostras analisadas geneticamente e a única em que se fez o teste [nos Açores]”, diz-nos Mónica Silva, bióloga do Instituto do Mar (Imar), na Universidade dos Açores, e uma das autoras do artigo. Entretanto, em 2009, foi observada no mar mais uma baleia em Lanzarote e, um ano depois, avistaram-se partes do corpo desta baleia nos Açores.
Nesse mesmo ano, uma baleia deu à costa em El Hierro, nas Canárias, e também se fizeram testes genéticos a este exemplar. “A identificação genética do sexo confirmou que ambas as baleias, a que deu à costa em El Hierro e uma baleia encontrada à deriva no canal do Faial-Pico, são machos”, lê-se no artigo. Além disso, confirmou-se que se tratavam de baleias-de-bico-de-true.
Mas as observações não terminam aqui. A 5 de Maio de 2013, Roland Edler, treinador de animais marinhos do Jardim Zoológico de Duisburg, na Alemanha, guiava um grupo de jovens cientistas numa visita de estudo ao Atlântico, perto da ilha do Pico. Treinador de animais há 34 anos, Roland Edler conhece bem as baleias e os golfinhos. O ambiente calmo no barco insuflável, onde dava explicações ao grupo sobre tartarugas-comuns, permitiu que se ouvissem uns sons e se percebesse que eram baleias-de-bico. E que sons eram estes? As baleias-de-bico produzem dois tipos de sons: assobios, para comunicar; e sons de ecolocalização, uma série de cliques para detectarem objectos, tal como os sonares. “Para estes animais, que passam grande parte do tempo em águas profundas, onde a luz não penetra, o som é o sentido mais importante e absolutamente essencial para a navegação, a orientação, alimentação e comunicação com outros animais da mesma espécie”, explica Mónica Silva.
Mas voltemos ao barco insuflável nas águas do Atlântico. Sabendo que estava perante as misteriosas baleias-de-bico, o guia pôs a sua câmara de filmar debaixo de água e captou cinco baleias-de-bico que tinha decidido “invadir” esta visita de estudo. Mas estava longe de imaginar que elas eram as ainda mais desconhecidas baleia-de-bico-de-true.
Mesmo assim, Roland Edler pressentiu logo que estas filmagens revelariam uma baleia para si nunca vista. Então pesquisou em livros e percebeu que esta era uma baleia realmente diferente de outras que já tinha observado. Foi então que enviou fotografias e o vídeo a cientistas em várias partes do mundo. Agora, é o autor do primeiro vídeo da baleia-de-bico-de-true debaixo de água.
No vídeo, de 46 segundos, podem ver-se quatro fêmeas adultas e jovens e um macho. “Apenas o macho baleia-de-bico-de-true tem dentes já nascidos, as baleias-de-bico usam a sucção e a trepidação sem precisarem de dentes. Isto sugere que os dentes provocam lutas entre machos, tal como os cornos largos nos veados”, explica-nos Natacha Aguilar de Soto, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, e principal autora do artigo. “Só os machos têm dentes”, salienta.
Em 2015, houve novos avistamentos em São Miguel. “Estava um bonito dia de Maio e viajávamos perto da linha da costa, quando o mar não tinha mais de 600 metros de profundidades (em média nos Açores tem 3000 metros)”, conta-nos Ida Eriksson, bióloga e guia da empresa de observação de baleias Futurismo, nos Açores. A ideia nesse dia era observar animais no mar, mas nunca se pensou avistar uma baleia-de-bico. “Normalmente, as baleias-de-bico são tímidas e dificilmente se vêem, mas conseguimos aproximarmo-nos delas.” Sim, nesse dia Ida Eriksson e o grupo viram duas baleias-de-bico-de-true, mais exactamente um adulto e uma cria.
Ida Eriksson já trabalha há quatro anos como observadora de baleias e já tinha visto outras espécies de baleias-de-bico, mas esta era uma nova espécie para si. A guia decidiu então tirar umas fotografias.
Essas fotografias tornaram-se novos dados para o estudo destas baleias e observou-se que as crias têm um focinho menos pontiagudo do que os animais adultos. “As crias das baleias-de-bico têm um focinho pouco bicudo e vai-se tornando mais bicudo com a idade. Provavelmente, isso é para facilitar a sucção de leite da mãe, antes de caçarem por si próprias”, explica Natacha Aguilar Soto.
Até 2016, ainda se avistaram mais duas baleias-de-bico-de-true, uma nas Canárias e outra no Pico. João Quaresma é skipper na empresa de observação de baleias Espaço Talassa, no Pico há 18 anos, e o autor dessa fotografias de 2016, nos Açores. O mar do arquipélago açoriano tinha condições adversas nesse dia. E cerca de quatro baleias adultas e uma cria passaram a alguma distância da sua embarcação. Depois, entre a ondulação, desapareceram. Mas João Quaresma ainda conseguiu captá-las a tempo.
“Nos Açores, há seis espécies desta família [Ziphiidae] e, em condições ideais, consigo reconhecê-las a todas. Neste caso em particular, não consegui reconhecer de imediato a espécie. Reconheci a família mas não a espécie”, conta. Apenas quando passou as fotografias para o computador é que desconfiou que fosse uma baleia-de-bico-de-true. “Depois fiz algumas perguntas a especialistas e confirmou-se!”
Têm uma máscara branca
Todas estas oito observações da baleia-de-bico-de-true (cinco confirmadas e duas prováveis) contribuíram para sabermos um pouco mais sobre esta espécie, nomeadamente sobre a sua cor. É acinzentada e tem uma mancha branca na cabeça. “Apesar de estarmos no século XXI, é muito difícil conseguirmos informações sobre esta espécie. Mas, principalmente nos animais das Canárias, apareceu um padrão de coloração: trata-se de uma mancha esbranquiçada, que denominamos ‘máscara branca’, que foi confirmada e que até agora não tinha sido descrita”, explica Mónica Silva.
Por sua vez, Natacha Aguilar de Soto pormenoriza que nos animais que deram à costa mortos não era possível ver com exactidão esta mancha na cabeça, pois ia ficando mais escura com a decomposição. Apenas se pôde ver este padrão na baleia que deu à costa em El Hierro, porque tinha morrido há pouco tempo. Também a cria fotografada por Ida Eriksson apresentava uma mancha branca na cabeça. Mas a fêmea que estava com ela suscitou algumas dúvidas, pois a coloração do seu pescoço era semelhante à baleia-de-bico-de-cuvier.
“Este artigo vai permitir identificar melhor os animais desta espécie, para que futuros avistamentos sejam mais fáceis”, considera Mónica Silva. A baleia-de-bico-de-true é morfologicamente muito semelhante à baleia-de-bico-de-gervais e a descrição da sua coloração pode ajudar a diferenciá-las.
Mas estas observações ainda revelam algo mais: “Os avistamentos nos Açores e nas Canárias sugerem que esta espécie pode ser mais comum do que se pensava”, esclarece Mónica Silva. Sabia-se que estas baleias habitavam em águas do Atlântico, mas desconhecia-se que poderiam ser frequentes nas Canárias e nos Açores, o seu habitat mais a sul no Atlântico. “Estas baleias vivem em zonas oceânicas muito afastadas dos continentes e a topografia das ilhas torna-se profunda muito perto da costa. Basta afastarmo-nos quatro metros e temos o seu habitat preferencial.”
Misteriosas e vulneráveis
E nada teria sido possível sem os avistamentos dos grupos de observações de baleias. “Qualquer informação que se obtenha é uma mais-valia”, refere Mónica Silva. “O aluguer de barcos no meio do oceano é muito dispendioso e as empresas de whale watching passam o tempo a avistá-las. Passam mais tempo no mar, logo vêem as coisas mais raras. É um bom exemplo de como um grupo de investigação e o whale watching se podem juntar, compartilhar informação e obter mais conhecimento.”
Este é também um exemplo de que o oceano continua a ser um lugar misterioso e cheio de vida por descobrir. “Nos últimos 25 anos, foram descritas quatro novas espécies de baleias-de-bico. Estes animais têm cinco metros de envergadura, são maiores do que os elefantes”, diz com entusiasmo Natacha Aguilar de Soto. A bióloga adianta que vão analisar a baleia-de-bico-de-true geneticamente, agora para saber se há duas espécies, uma no Hemisfério Norte e outra no Sul.
Mesmo ainda pouco conhecidas, estas baleias também correm perigos. “Já temos encontrado baleias-de-bico com plásticos no estômago e envolvidas em redes. É importante prevenir os plásticos nos oceanos”, alerta Natacha Aguilar de Soto. Também são muito sensíveis aos ruídos e tem havido uma elevada mortalidade associada aos sonares dos navios. “É importante que as actividades humanas, ao usarem intensas fontes ruidosas no mar, reduzam o impacto nas baleias-de-bico.” Para que seja possível observá-las de perto e desvendar mais pormenores sobre a sua identidade.