Dicionários em papel para quê? (e para quem?)
Dão-nos informação completa e de confiança e são instrumentos imprescindíveis para qualquer falante de uma língua, sobretudo em ambiente pedagógico. A Texto Editora lançou há pouco tempo o Dicionário da Língua Portuguesa — Léxico, Gramática, Prontuário. Para alunos, professores e para quem não se contenta com a superficialidade dos dicionários online.
“Um bom dicionário em papel é o poema primitivo da língua”, diz a escritora Lídia Jorge. “Uma alegria”, segundo a editora e escritora Maria do Rosário Pedreira. “Um companheiro”, afirma o tradutor Francisco Agarez. Afirmações retiradas da divulgação pela Texto Editora do novo Dicionário da Língua Portuguesa.
“Verbetes”, “lexicografia” e “contexto frásico” fazem parte da linguagem específica dos dicionaristas. Há palavras “difíceis” no depoimento conjunto que Aldina Vaza e Emília Amor, autoras do recentemente lançado Dicionário da Língua Portuguesa — Léxico, Gramática, Prontuário (Texto Editora), nos fizeram chegar por correio electrónico. Caso escape ao leitor o significado de algum vocábulo ou expressão, sabe o que tem a fazer: consultar um dicionário. Em papel.
Porque é de linguistas que se trata, respeitámos a grafia escolhida por estas profissionais que há mais de 20 anos se dedicam a coligir e descodificar as palavras que nos ajudam a comunicar. Assim sendo, a prosa que surgir nas respostas segue o Acordo Ortográfico de 1990, a outra, não. Um espelho actual das letras portuguesas.
Mas comecemos pela resposta de Carmo Correia, directora de Edições Escolares da Leya (que integra a Texto), quando se lhe pergunta se ainda vale a pena publicar dicionários em papel. “Obviamente que sim. Os dicionários online disponibilizam habitualmente uma informação mais curta do que os dicionários em papel. E, sobretudo, são utilizados para uma consulta mais rápida, mais imediata. A existência deste dicionário em papel justifica-se por se tratar de uma obra que apresenta uma informação mais completa, para uma consulta menos superficial.”
Esta responsável informa que a tiragem inicial do dicionário foi de 2 mil exemplares e diz que quem compra dicionários em papel são “os professores, os alunos, os encarregados de educação, os profissionais da língua — jornalistas, escritores, tradutores, editores, … — e as pessoas que, de um modo geral, pretendem conhecer e usar correctamente a língua portuguesa”.
Carmo Correia diz ainda que “este dicionário tem uma vocação escolar assumida”. Pelo que “os programas e metas curriculares do ensino básico e do ensino secundário e o Dicionário Terminológico de Língua Portuguesa foram tidos em linha de conta na selecção de entradas do dicionário, para que esta obra corresponda às necessidades lexicais e de aprendizagem dos alunos”.
Damos agora voz às autoras Aldina Vaza e Emília Amor.
Este dicionário é para quem?
A delimitação do público-alvo e a identificação das suas necessidades e interesses estão entre as preocupações dominantes de quem se propõe fazer um dicionário. O perfil desse público tem o papel de guia na produção de toda a obra, desde a definição da nomenclatura até aspetos como qualidade e tipologia das definições, exemplos, marcas de uso, etc.
Este dicionário, que se assume como de aprendizagem, tem como público-alvo privilegiado os alunos dos ensinos básico e secundário, mas, pelas suas características, serve também um público muito mais vasto, em que cabem todos os que usem a língua portuguesa como instrumento de estudo ou de trabalho e os que desejem aumentar os seus conhecimentos sobre a língua e esclarecer dúvidas sobre o seu bom uso.
Como é que se escolhe o que se “põe” num dicionário?
O que incluir num dicionário e como fazê-lo são outras das preocupações dominantes da atividade dicionarística. Para produzir um dicionário original, não basta socorrer-se de alguma da informação fornecida por outro(s) dicionário(s) já existente(s), acrescida de mais dados e efetuados os necessários ajustamentos. É preciso muito mais.
Um dicionário feito de raiz, original, impõe outro percurso: elaborar um corpus, ou recorrer a um já existente, mas reconstruindo-o e explorando-o de uma forma inovadora, com critérios e instrumentos adequados ao perfil do dicionário pretendido. Selecionar uma lista de palavras (nomenclatura) que constitua a base de um dicionário de aprendizagem, como o nosso pretende ser, é um trabalho complexo e moroso. A nossa experiência testemunha-o.
Atendendo ao perfil do utente e à desejável extensão da obra, foi preciso decidir quais as palavras a entrar nessa lista e quais as dispensáveis. A seleção teve de ser equilibrada, por exemplo, no que diz respeito às percentagens dos vocábulos das diferentes áreas do saber e das classes de palavras a contemplar; do vocabulário geral ou do técnico e científico; do vocabulário curricular, etc. Teve ainda de se inventariar a lista das palavras gramaticais e de se ponderar a inclusão de vocabulário de diferentes registos de língua.
A lista definitiva teve ainda de incluir, posteriormente, todas as palavras que foram usadas na redação dos artigos (como nas definições e nos exemplos), mas que não constavam na nomenclatura criada.
O que consulta (fontes, obras, outros dicionários, etc.) quem faz um dicionário?
De um ponto de vista estritamente lexicográfico, quem faz um dicionário de raiz, para além da consulta de um corpus de frequência e das fontes secundárias que tiverem sido selecionadas, tendo em vista a formação da nomenclatura, tem necessariamente de consultar obras teóricas de referência, dicionários ou glossários das diferentes áreas, dicionários de língua portuguesa e de línguas estrangeiras, revistas e jornais especializados, etc. No entanto, um dicionário linguístico é, por natureza, também um objeto cultural. Consequentemente, um lexicógrafo tem de ter uma visão abrangente da realidade, das múltiplas áreas do saber e da expressão, da arte, da literatura, da música, do teatro, etc. e de como as tornar matéria dicionarizável.
Quais as maiores dificuldades que sentiram na criação/produção desta nova obra?
A produção de um dicionário, independentemente das suas características, é sempre uma empresa difícil e plena de riscos. A do nosso não constituiu exceção. Numa obra que integra contributos de diversa natureza e origem, merecem especial destaque, como problemas a superar, três aspetos: adequação, homogeneidade, rigor.
Sobre a adequação, sublinhamos que ela se relaciona intimamente com o exposto na resposta à primeira questão. Este dicionário foi, de facto, concebido tendo em vista um público específico — grosso modo, os alunos dos ensinos básico e secundário — público que encontrará nele muito do que, numa perspetiva curricular, lhe poderá facilitar a mobilização de conhecimentos e o desenvolvimento de competências essenciais.
O que não significa secundarizar o papel do professor. A consulta útil do dicionário, sobretudo num nível de iniciação, tem de constituir objeto de aprendizagem, e a mediação do professor é essencial, sobretudo se dirigida para a progressiva autonomização do aprendente.
Quanto à homogeneidade, procurámos garanti-la, no plano formal do discurso e ao nível de cada artigo, em todas as escolhas que, como redatoras, tivemos de fazer, para além de textos definitórios, sinónimos e exemplos. Preocupação extensiva a outras escolhas que, enquanto autoras, tivemos de validar, através de um olhar atento sobre os escritos que nos iam chegando, da parte de colaboradores.
Assim, foi fundamental, em toda a produção — nossa ou alheia — exercer o controlo do que se produzia, evitando uma escrita opaca, redundante, prolixa, ou minada pela tentação de “fazer literatura”…
Aliás, a questão da homogeneidade não se restringe ao âmbito da redação de cada artigo. Emergiu, logo na fase da elaboração da nomenclatura, no desenvolvimento conferido a cada letra, no controlo das chamadas “séries fechadas”, nas observações que determinados fenómenos do mesmo tipo devem merecer ao longo da obra, nos processos de mútua remissão, etc.
Coube-nos, sob a supervisão da consultora científica, professora Fernanda Bacelar, definir previamente os formatos e critérios desejáveis, mas tendo consciência, à partida, de que muitas das melhores soluções só surgem ao longo do processo de trabalho, o que significa, por vezes, reiniciar alguns dos processos, mesmo numa terceira edição.
Em suma, a procura de homogeneidade implicou aperfeiçoar o modelo, de acordo com os objetivos visados, e conferir-lhe melhorias de modo sistemático, num esforço progressivo de equilíbrio e consistência.
No que diz respeito ao rigor, não se pense que é uma exigência que só faz sentido nos níveis mais avançados de ensino, ou perante públicos altamente letrados. A procura da simplicidade e da acessibilidade não autoriza, em qualquer dicionário, concessões que ponham esse rigor em causa: imagens e comparações apressadas, absurdas; omissões indevidas ou mesmo dislates. Num dicionário de aprendizagem, por definição orientado para a leitura, para a produção e para a reflexão sobre a língua, nunca se deverão fazer tais concessões.
É claro que assumir esta postura representou um acréscimo de exigência, de trabalho e de risco, sem garantia de que o rigor desejado tenha ido além de uma muito viva aspiração.
Estão satisfeitas com o produto final?
A tarefa de construir um dicionário tem algo de megalómano e de utópico — a língua é presente e, no essencial, irredutível; os dicionários estão condenados a ser ultrapassados. Por isso, essa tarefa constitui algo de frustrante e, quase sempre, redunda num quadro obsessivo: o lexicógrafo deita-se a pensar num magno problema, acorda vislumbrando uma solução inesperada ou, muitas vezes, um problema ainda maior; ou seja, nas palavras de Octávio Paz, mergulha “na moita dos signos” e chega a temer não conseguir escapar-lhe.
Acabar um dicionário, mais do que proporcionar-nos satisfação, deixou-nos aparentemente libertas… Mas não nos iludamos: o nosso dicionário, aquele que nos dominou e envolveu anos a fio até ao presente, está e estará sempre por concluir…
Gostam de seguir o novo acordo? Facilita ou atrapalha?
Esta edição do dicionário não teve de se confrontar com as alterações estabelecidas pelo A.O. de 1990, uma vez que a anterior (2008) já as integrava, num sistema de notações gráficas facilitador da sua apreensão, acrescido de um anexo final (sinopse das bases do referido acordo).
Na presente edição, dado que o A.O. se encontra em vigor e não constitui algo desconhecido dos potenciais utentes, esse dispositivo foi simplificado, mantendo-se informação essencial (por exemplo, a forma de encontrar os compostos de mais de três elementos, agora não hifenizados) e a sinopse citada.
Em qualquer das edições, a aplicação do A.O. foi sempre pautada por fontes autorizadas (como o Vocabulário de Mudança, do ILTEC, ou o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa) que constituíram apoios consistentes.
Quanto ao A.O., em substância ele corresponde a preocupações que remontam a épocas recuadas e a discussões que marcaram a própria história da língua e da lexicografia nacionais. As soluções nele propostas não são — nunca foram — absolutamente consensuais e é desejável que, mais do que focos de dissidência, constituam objeto de estudo, reflexão ou crítica.
O que atrapalha os alunos, os professores e, é claro, os lexicógrafos são as evidentes fragilidades que afetam o uso da língua e a consciência que a sociedade tem dela, a incapacidade de a pensar e de a sentir como património simbólico matricial, a ausência da curiosidade e do gosto em perceber como, usando-a, a fazemos e nos fazemos…