Chefia da IGF travou pedido para Cruz Vermelha repor 8,7 milhões

Equipa da IGF concluiu que a Defesa pagou subvenções sem base legal. Acção foi suspensa por ordem do inspector-geral de Finanças, que contesta as conclusões. Ministério Público investiga.

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Triângulo sobre a investigação do Ministério Público envolve a CVP, a IGF e o Ministério da Defesa João Henriques

O inspector-geral de Finanças, Vítor Braz, e a subinspectora-geral Isabel Castelão Silva travaram um pedido para a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) devolver 8,7 milhões de euros pagos pelo Ministério da Defesa Nacional a título de subvenções entre 2011 e 2016. A actuação dos dois dirigentes está agora a ser escrutinada pelo Ministério Público.

O pedido de reposição das verbas, que nunca chegou à CVP, foi proposto no início de Dezembro de 2016 pelo responsável da equipa da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) que há vários meses estava a realizar uma auditoria à associação humanitária, na “tutela inspectiva” do Ministério da Defesa Nacional (MDN).

A equipa de auditores considerou não haver qualquer base legal para as verbas serem pagas pela secretaria-geral daquele ministério à CVP, por não existir uma norma – legal ou regulamentar – que preveja essa subvenção. Mas quando o director responsável da auditoria propôs que a instituição humanitária fosse notificada para devolver ao Estado as alegadas verbas, esse passo foi travado pelos superiores hierárquicos.

Questionado pelo PÚBLICO, o inspector-geral alega que o projecto do relatório “não cumpria as normas técnicas e legais” e que “retirava conclusões erradas”.

A primeira a colocar entraves ao pedido de devolução foi a subinspectora-geral Isabel Castelão Silva, que argumentou que o projecto de relatório ainda estava em apreciação e que nele não era referida a necessidade de a Cruz Vermelha devolver as verbas. A 7 de Dezembro de 2016, seis dias após receber uma informação a sustentar a necessidade de notificar a Cruz Vermelha para repor os 8,7 milhões até ao fim desse ano, Isabel Castelão Silva considerava que não estavam reunidos os requisitos para se solicitar a devolução e mostrava-se preocupada com a forma como a auditoria estava a ser conduzida.

Cerca de 20 minutos mais tarde, o inspector-geral concorda com o parecer da sua subinspectora-geral e despacha: “Concordo. Visto com muita preocupação a inobservância das normas técnicas e legais. Determino a suspensão dos procedimentos relativos à presente auditoria”. Mas não foi só essa acção que ficou na gaveta. Também acabou suspensa a auditoria mais abrangente que detectou graves deficiências no funcionamento e organização da Cruz Vermelha, a começar pelo facto de não estar a apresentar declarações ao fisco.

O travão e a avaliação

Quanto às subvenções, embora os auditores tenham concluído que a ausência de regime legal existia desde pelo menos 2007 – atravessando vários Governos e diferentes ministros da Defesa – o Estado já só poderia pedir em 2016 a devolução aos cofres públicos de valores referentes até 2011. E por isso o director da equipa de inspectores pediu a reposição dos montantes pagos naqueles cinco anos. Nas trocas de informações percebe-se que a equipa de auditores estava preocupada com o facto de, no seu entendimento, no final de 2016 prescrever a obrigação de a CVP repor cerca de 1,6 milhões de euros, relativos às subvenções pagas em 2011.

O travão imposto por Vítor Braz e Isabel Castelão Silva deixou na gaveta o pedido de devolução dos 8,7 milhões e a própria auditoria que nunca foi enviada à CVP, ao Tribunal de Contas ou ao MDN.

Depois de travar a auditoria, o inspector-geral decidiu enviar o relatório para o comité de qualidade da IGF, que alinhou por argumentos idênticos aos que o Ministério da Defesa já defendera durante a auditoria. A decisão desse comité interno remeteu para o diploma que estabelece o regime de atribuição de subvenções públicas, onde se lê que os apoios são concedidos “nos termos e pelas entidades definidas na norma, legal ou regulamentar, que preveja a subvenção”. Ora, o que os inspectores tinham defendido foi justamente o facto de não existir uma norma – o fundamento legal – onde isso esteja previsto.

Vítor Braz alega, em resposta ao PÚBLICO, que o montante que o responsável da auditoria propunha que fosse devolvido aos cofres do Estado – o documento que Braz travou – continha “informação avulsa” para pedir a reposição. Semanas depois, Braz decidiu exonerar esse director.

Outra recomendação da equipa de auditores, que ia no sentido de a secretaria-geral do MDN deixar de pagar as subvenções enquanto não existisse um regime legal que o permitisse, também acabou por não avançar. E os apoios continuaram a ser atribuídos. Já em 2017, a CVP voltou a receber 1,4 milhões de euros de subvenções do ministério.

Buscas em casa

As casas de Vítor Braz e de Isabel Castelão Silva e os respectivos gabinetes na IGF foram alvo de buscas na terça-feira no âmbito de uma investigação a crimes de corrupção passiva, peculato e abuso de poder, num inquérito onde os procuradores tentam apurar a forma como acções de fiscalização “lesaram gravemente o Estado nos seus interesses financeiros”.

A investigação passa por saber como aqueles dois responsáveis terão impedido uma fiscalização mais profunda à Cruz Vermelha, que também foi alvo de buscas a par da sua tutela, o Ministério da Defesa Nacional. É, aliás, através de um despacho conjunto deste ministro e do primeiro-ministro que é nomeado o presidente da Cruz Vermelha, actualmente dirigida por Francisco George, em funções há apenas um ano.

A CVP recebeu da Secretaria-Geral do Ministério da Defesa 15,9 milhões de euros entre 2007 e 2016 (o valor reclamado a devolução são os 8,7 milhões de 2011 a 2016). Nuns anos foram pagos 1,4 milhões, noutros 1,5 milhões, ou num deles dois milhões – diferenças que, concluíram também os inspectores, não tinham uma justificação coerente.

Em Março de 2016, o secretário de Estado da Defesa Nacional, Marco Perestrello, decidiu atribuir provisoriamente 1.422.000 euros à Cruz Vermelha, 711 mil para financiar o funcionamento do Lar Militar que acolhe deficientes profundos das Forças Armadas e outro tanto para apoiar as actividades relacionadas com a área de emergência. Mas face à ausência do relatório de contas relativo a 2015, que a Cruz Vermelha estava obrigada a enviar à tutela, o secretário de Estado dava até Maio desse ano para a associação humanitária remeter ao MDN o relatório “com a adequada autonomização da aplicação da subvenção recebida naquele ano”. E admitia: “A sua análise poderá condicionar a atribuição dos duodécimos subsequentes”.

Numa resposta enviada ao PÚBLICO, o MDN informa que em 2016 suspendeu o pagamento de alguns apoios à Cruz Vermelha. “As transferências dos meses de Outubro, Novembro e Dezembro para a CVP foram suspensas por não terem sido entregues as contas referentes ao ano de 2015. Em Dezembro de 2016, a CVP apresentou as contas de 2015, tendo sido autorizados os pagamentos desses meses”.

Pelos estatutos, revistos em 2007, a Cruz Vermelha é uma “pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa”. Ao ministro da Defesa compete “o exercício da tutela inspectiva da CVP na administração dos seus recursos”, cabendo-lhe “promover as necessárias medidas de forma a contribuir para a realização do suporte financeiro adequado”. Mas, diziam os inspectores, essa alínea das “competências tutelares” da Defesa não pode constituir o fundamento legal para a atribuição das subvenções.

A investigação do Ministério Público e da PJ prossegue. Está de pé há vários meses e, segundo uma nota da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, as buscas desta semana com 50 inspectores da PJ serviram para recolher prova de forma a apurar “responsabilidades individuais de dirigentes da administração pública da área de serviços com a missão designadamente do controlo financeiro e fiscal do Estado”. O comunicado refere também “indícios da prática de actos ilícitos em procedimentos concursais”.

Depois de se saber das buscas na terça-feira, o Ministério Público recebeu um ofício do gabinete do ministro das Finanças, Mário Centeno, pedindo informação sobre o envolvimento de dirigentes da administração pública nos factos investigados. Na quarta-feira não havia arguidos constituídos.

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