No mapa emocional de Miraflor cabem dores e delicadezas de toda uma cidade

Numa plataforma online, a rua e travessa de Miraflor mostram-se pelos depoimentos dos seus habitantes. Artéria pontilhada de ilhas e antigos armazéns do tempo da forte indústria de Campanhã, Miraflor cambiou com um espaço cultural. No seu mapa emocional cabe a história de uma cidade

Foto
Nelson Garrido

O quotidiano da rua corria sem perguntas, num “silêncio” onde não cabiam palavras escritas nem memórias partilhadas. Manuela Matos Monteiro e João Lafuente eram novos ali. Tinham comprado uns antigos armazéns e apuravam planos de um projecto cultural com a fotografia como epicentro e a intervenção social como alma. Para erguer esse futuro na Rua de Miraflor, parecia-lhes imperativo conhecer o seu pretérito. Mas, nessa busca, imperava uma folha em branco. Pouco a pouco, numa lenta conquista de confiança, o casal ia estreitando laços com a Associação Recreativa Malmequeres da Noêda, na travessa a poucos metros dos seus armazéns, de nome Miraflor também. E assim souberam um dia de uma inundação que tinha roubado quase todo o espólio à colectividade nascida em 1952. “Decidimos que havíamos de os ajudar a reconstruir essa história”, recorda Manuela Matos Monteiro. Era a ponta de um novelo a ser desatado. Enquanto recolhiam depoimentos, não era apenas a história dos Malmequeres que ganhava forma. Era toda uma rua, desconhecida para eles, em momento de revelação.

Da promessa de recuperação da “herança” da colectividade, nasceu a vontade de alargar a vista. E do encontro com Nacho Muñoz, um activista e entusiasta da música, a inspiração para o projecto final. Em Santiago de Compostela, contou-lhes Muñoz, tinha construído um mapa emocional da cidade. Na Rua de Miraflor, pensaram Manuela e João, poderia nascer algo semelhante. Neste sábado, às 16h, apresentam uma plataforma online onde se conta a história da rua - ou, se ouvirmos bem, se reconhece a narrativa de toda uma cidade.

Foto

Os telhados dos armazéns onde as galerias Mira se instalaram não eram estranhos a João Lafuente. Da janela da casa onde passou boa parte da infância, mirava muitas vezes aquelas telhas. Lá dentro, onde antes se guardara vinho, cereais e redes de pesca, uns tios de Manuela Matos Monteiro, revisores nos comboios na estação vizinha, acartavam material. E ela, ainda menina, passava por perto nas viagens entre a escola e a fábrica do pai, a Pincelaria Pardal, na Rua do Freixo. Era artéria movimentada, com infindos armazéns, camiões em rebuliço constante, incontáveis ilhas.

A vida levou-os para longe de Campanhã. E o estigma da freguesia oriental, pobreza entranhada e fado infeliz para negócio, foi atrito inicial na decisão do casal. Mas isso foi no princípio. Antes de as artes se instalarem em Miraflor e, com pezinhos de lã, lhe cambiarem os dias.

Depois do Mira, vários armazéns abandonados da rua foram comprados e reabilitados para habitação. A rua ganhou novos rostos. As relações com a vizinhança cozinharam-se em lume brando. E analisadas de 2018, cinco anos depois da abertura do espaço cultural, tornaram-se “intensas”. “Há uma proximidade afectiva muito grande”, conta Manuela Matos Monteiro. E, de certa forma, o mapa emocional de Miraflor, feito em parceria com o programa Cultura em Expansão da Câmara do Porto, “advém dessa proximidade” e “reforça-a” ao mesmo tempo.

Foto
João Lafuente e Manuela Matos Monteiro criaram as galerias Mira há cinco anos Nelson Garrido

De câmara de vídeo na mão, Manuela e Patrícia Barbosa recolhiam depoimentos para a plataforma desenhada por Ágata Dzianach e Lukasz Dzianach e emocionavam-se com testemunhos “muito tocantes”. De tal maneira que Manuela, ex-professora de Filosofia, ia tecendo uma teoria: “A rua e as pessoas da rua têm qualquer coisa de particular e especial capaz de fazer com que gente muito diferente tenha sentimentos semelhantes só porque, de repente, partilha o mesmo passeio.” E essa “mistura”, analisa, é uma lição para todo o Porto aprender. Para todas as cidades com ambições de conseguir carimbo de diversidade: “Desde que ninguém seja expulso, gente de estatutos sociais, origens e formações diferentes podem conviver e manter relações de vizinhança afectivas. A pior coisa que se pode fazer a uma cidade é criar guetos.”

E não se pense que ali se impôs a “militância das boas relações”. Os laços são resultado de um certo tempo, vínculos atados pela convivência diária. O varrer o chão, o cuidar da casa alheia se a desgraça de um incêndio acontece, uma conversa à janela, um São João com palco improvisado na estreita rua de paralelo, os nomes dos vizinhos decorados. Condimentos aproveitados pelo galego Nacho Muñoz, que construiu com os moradores da rua e zona envolvente uma efémera orquestra experimental. Também neste sábado, às 17h, eles vão subir ao palco da Associação Recreativa Malmequeres da Noêda.

Foto
Cristina Marinho tem uma mercearia na rua de Miraflor

Cristina Marinho não troca Miraflor por nada deste mundo. Jura a pés juntos que nem um Euro Milhões a levaria da sua mercearia herdada do pai. Talvez a renovasse, mas deixar o ofício que sempre quis é pensamento fora do radar. A artéria, recorda, era movimento constante, tinha o negócio em ebulição por todo o lado. E se a mãe lhe dizia ser dia de ir para aqueles lados, era a “maior alegria” para todos os irmãos. “Era chique vir ao Freixo”, conta num dos depoimentos do Mapa Emocional de Miraflor, dividido em três períodos: antes, agora e porvir.

Desse tempo passado, as memórias são muitas. Os “fadinhos antigos” recordados por José Joaquim das Neves, as “pataniscas” do “tasco da dona Alzira” que deliciavam José Cruz, “um balde e uma corda” para retirar água dos “poços” da rua revividos por Ilda Figueiredo, os carros de bois do tempo de menino do ex-alfaiate Américo Almeida Blanquet, o primogénito da rua, com os animais atrelados no terreno onde agora se ergueu um edifício de luxo de uma empresa de telecomunicações.  

Foto
O Mapa Emocional de Miraflor é apresentado no sábado

Quando há coisa de vinte anos Lurdes Correia comunicou estar a mudar-se para uma ilha a notícia veio como um “escândalo”. As memórias da infância da filha de emigrantes, com visitas anuais àquela artéria, são pueris e saudosas de Miraflor, que assim se chamou por erro do escrivão: a ideia era chamar-se Miraflores. “Havia as peixeiras de rua, que vinham da Afurada e de Miramar com o cesto. O cheiro do mar, o cheiro do peixe, sinta falta desse cheiro.”  

Uma outra realidade. Como a gravada nas memórias de Rui Silva e Sandra Castro, casal nos trintas, agora com dois filhos, que se conheceu no palco dos Malmequeres, ela com 14 anos, ele com 19. Por ali, os vizinhos eram segunda família, a rua enchia-se de crianças a brincar, Rui treinava os remates contra as portas do armazém onde se instalou o Mira. Rosa Meireles, trabalhadora na Pincelaria Pardal, ali perto, passou parte da meninice por Miraflor e o regresso à rua, para ali abrir a sua Adega A Viela, foi uma partida feliz do destino.

O futuro da cidade está em Campanhã, acredita Rosa, que faz do seu restaurante um espaço de convívio sem hierarquias e auxílio para gente sem rendimentos maiores. Naquela geografia há-de nascer o “centro” do Porto: “Tenho uma fé viva que vai ser [assim].” E o designer e fotógrafo André Henriques, Deck 97 de nome artístico, habitante em Miraflor depois do efeito contagiante do Mira, não dúvida que ali existirá um dia “o Soho do Porto”.

Américo Almeida Blanquet é o morador mais velho da rua
A rua era para se chamar Miraflores, mas por erro de um escrivão ficou no singular
No tempo da indústria forte de Campanhã, Miraflor era local privilegiado para os armazéns
A rua ainda tem mais de uma dezena de ilhas
As galerias Mira trouxeram outra vida à artéria
Fotogaleria
Américo Almeida Blanquet é o morador mais velho da rua

Nas narrações emotivas de 17 moradores, num mapa em permanente construção e crescimento, Manuela Matos Monteiro encontrou um “retrato da cidade que foi e já não é”. Crianças a apanhar feijão e milho caídos dos sacos que eram transportados da estação até aos armazéns. Uma pobreza e miséria profundas. O papel do homem na casa, o das mães e mulheres, o número impressionante de pessoas encaixadas em casas de dez metros quadrados. Os poucos momentos de festa e o hábito de tirar os sapatos para não gastar as solas. “Coisas das quais podemos ter informação e ver estatísticas, mas que ganham outra dimensão ao ser ouvidas assim. São relatos, não a puxar à desgraceira mas descritivos, sem adjectivos”, comenta. O sonho maior da equipa construtora desta plataforma era vê-la replicada por outras ruas da cidade, por outras cidades e ruas. Quem se aventurar a fazê-lo, dizem em jeito de compromisso, só tem de bater à porta do Mira e levará um kit e todo o apoio: “Estes trabalhos têm um valor patrimonial inacreditável.” O mergulho no pretérito lembrou Manuela Matos Monteiro do quanto o país evoluiu. E nessa “consciência do tempo” reconheceu ingrediente relevante para receitas de presentes mais risonhos.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários