A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição Portuguesa
Nenhum documento alcançou tanta autoridade e ressonância política nos séculos XX e XXI como a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
1. Nenhum documento alcançou tanta autoridade e ressonância política nos séculos XX e XXI como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Emanada da organização, em princípio, representativa de todos os povos do mundo (a Organização das Nações Unidas), ela dirige-se a todos os homens e mulheres; para lá da igualdade, é a unidade do género humano que afirma. Baseada na ideia de que todos os seres humanos são “dotados de razão e de consciência”, ela tornou-se ponto de referência obrigatório de todos quantos lutam pela liberdade e pela fraternidade e o padrão por que se determina a natureza de cada regime ou sistema político.
Quanto a Portugal, porém, durante o regime autoritário, ela foi ignorada na prática. Assim como, após 25 de abril de 1974, ela seria referida logo no programa do primeiro Governo provisório e viria a constar de dois dos projetos de Constituição submetidos à Assembleia Constituinte (mesmo se até 25 de novembro de 1975 se verificaram atropelos de vária ordem a direitos das pessoas e à paz cívica).
Por isso, tendo como ponto de partida o art. 11.º, n.º 2 do projeto de Constituição do Centro Democrático Social, a Assembleia Constituinte viria a aprovar, sem grande dificuldade e após os trabalhos da sua comissão de redação, o que seria o art. 16.º, n.º 2 da Constituição: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
2. O sentido deste art. 16º, n.º 2, vem a ser tríplice. Através dele pretende-se clarificar e alargar o catálogo de direitos, reforçar a sua tutela e abrir para horizontes de universalismo e jus-universalismo, como também se observa nos arts. 7.º, 15.º e 38.º, n.os 2, 4, 6 e 7.
Os direitos fundamentais ficam situados num contexto mais vasto e mais sólido que o texto constitucional e ficam impregnados dos princípios e valores da Declaração, como parte essencial da ideia de Direito à luz da qual todas as normas constitucionais – e, por conseguinte, toda a ordem jurídica portuguesa – têm de ser pensadas e postas em prática.
Não se trata de mero alcance externo. Trata-se de um alcance normativo imediato, com incidência no conteúdo dos direitos formalmente constitucionais.
Esta interpretação da Constituição conforme a Declaração torna-se tanto mais fácil quanto é certo que ela foi uma das suas fontes, como se reconhece confrontando o teor de uma e de outra. Mas para lá de correspondências mais ou menos evidentes, deparam-se alguns artigos da Declaração, que, com utilidade, esclarecem normas constitucionais, evitam dúvidas, superam divergências de localizações ou de formulações, propiciam perspetivas mais ricas do que, aparentemente, as perspetivas do texto emanado do Direito interno.
3. É o que sucede (ainda depois de todas as revisões constitucionais):
– com o art. 1.º da Declaração, ao ligar a dignidade da pessoa humana à razão e à consciência de que todos os homens são dotados;
– com o art. 2.º, 1.ª parte, ao esclarecer que as causas de discriminação indicadas o são a título exemplificativo (“nomeadamente”) e não a título taxativo;
– com o art. 2.º, 2.ª parte, ao impor um tratamento por igual aos estrangeiros (completando os arts. 13.º, n.º 2, e 15.º, n.º 1, da Constituição);
– com o art. 9.º, ao estabelecer que ninguém pode ser arbitrariamente exilado;
– com o art. 14.º, ao atribuir o direito de asilo a qualquer pessoa sujeita a perseguição, e não apenas a perseguição política (como consta do art. 33.º. n.º 8 da Constituição);
– com o art. 16.º, n.º 1, ao declarar que “a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar” e que “durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais”;
– com o art. 16°, n.º 2, ao estipular que o casamento exige “o livre e pleno consentimento dos esposos” (o que só está implícito no art. 36.º, n.º 1);
– com o art. 18.º, ao distinguir liberdade de pensamento e liberdade de consciência;
– com o art. 22.º, 2.ª parte, ao fazer depender a realização dos direitos económicos, sociais e culturais do esforço nacional e da cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos do país (como está apenas pressuposto nos arts. 7.º, 9.º e 81.º);
– com o art. 26.º, n.º 3, ao declarar que aos pais pertence a prioridade do direito de escolha do género de educação a dar aos filhos [o que reforça a garantia contida nos arts. 36.º, n.º 5, e 67.º, n.º 2, alínea c), e não é sem consequências sobre os arts. 43.º, 74.º e 75.º];
– com o art. 29.º, n.º 2, ao prescrever que, no exercício dos direitos e no gozo das liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista, exclusivamente, a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática – o que traduz um princípio não funcionalizador dos direitos aos limites, mas dos limites aos direitos fundamentais.
4. Resta notar que algumas das atuais Constituições dos Estados de língua oficial portuguesa também fazem alusão à Declaração Universal (ou até menção): como as de Timor (art. 23.º), de Moçambique (art. 43.º), de São Tomé e Príncipe (art. 12.º, n.º 2) e de Angola (art. 26.º, n.º 2).
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico