Jorge Sampaio: “Rever a Declaração Universal dos Direitos Humanos será abrir uma caixa de Pandora”

A Declaração Universal dos Direitos Humanos defende valores universais ainda por realizar em vários países. Sampaio defende que “a celebração deste septuagésimo aniversário deveria ser uma ocasião para lançar um alerta vermelho”.

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Sérgio Azenha

Quando se comemoram os 70 anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, questiona-se a necessidade dos 30 princípios que a compõem serem revistos e adaptados ao novo mundo trazido pela revolução tecnológica, em particular pela robotização. Uma preocupação da qual discorda o ex-Presidente da República e ex-secretário-geral do PS, Jorge Sampaio. “Não creio que seja de todo necessário e penso que seria uma má opção”, afirma ao PÚBLICO, garantindo: “Nos tempos que correm, rever a declaração será abrir uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis e, a meu ver, todas negativas. Evitemos um passo desnecessário.”

A hipótese de revisão da declaração é afastada também pelas outras personalidades ouvidas pelo PÚBLICO, Pedro Roseta, primeiro embaixador português na OCDE, antigo representante de Portugal no Conselho da Europa, ex-ministro e deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República pelo PSD, Jorge Miranda, deputado à Constituinte pelo PSD e constitucionalista, Ana Gomes, embaixadora e eurodeputada pelo PS, e António Cluny, magistrado que representa Portugal no Eurojust.

“Não questiono o avanço tecnológico, mas há que ter atenção às consequências”, adverte Pedro Roseta, mesmo sem defender a revisão. Por seu lado, António Cluny considera que “ainda não estamos numa fase de perceber claramente o que poderá advir” da revolução tecnológica. E defende que a actualidade do documento se mantém uma vez que “podemos falar de robotização pelo lado dos efeitos sobre o trabalho ou pela genética, mas são sempre as questões que estão já na declaração”. Cluny sustenta mesmo que “aquele quadro ainda é muito importante e estruturante e tem de ser explorado na sua simplicidade básica que não está resolvida”.

Igualmente Ana Gomes sublinha que “as mudanças tecnológicas existem, mas o ser humano não vai ser substituído, vai sempre ser necessário o julgamento humano”. Insistindo na ideia, afirma: “Não acredito que a inteligência artificial e o desenvolvimento tecnológico possam de alguma maneira dispensar a inteligência humana e o que está na declaração é para os humanos.” A eurodeputada não deixa, porém, de salientar que “o desenvolvimento tecnológico, nomeadamente na informação, põe novos desafios por falta de regulação”, apontando que “a informação tem hoje uma ampliação maior com graves riscos de manipulação”, defende: “Não acredito na auto-regulação do Facebook. É preciso intervenção política para regular a nível global. Também na defesa da privacidade e na defesa dos cidadãos.”

Universal e imperativo

Jorge Miranda considera que a declaração “continua a ter toda a actualidade”, foi e é “um esforço seguro para refazer o mundo com base em direitos universais”. O constitucionalista sublinha que “é um documento Juris Universalista e cujo artigo 1º continua a ser uma referência: ‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns aos outros em espírito de fraternidade’”.

Ana Gomes completa a ideia de universalidade, afirmando que “a declaração é Jus Cogenes, é direito imperativo, não é um tratado, é de tal maneira fundamental que é direito internacional imperativo”. A eurodeputada garante que os Direitos Humanos “são valores universais, válidos seja qual for a religião, a cultura e a civilização”, o que os torna “inultrapassáveis, o que está ali, está escrito na pedra, não vai mudar, vai haver novas interpretações e ampliações em cada época, como tem acontecido”. Defensor do valor perene da declaração, Sampaio assume: “Se me é permitido o paralelismo com o conhecido mote ‘25 de Abril sempre’, diria: Declaração Universal, sempre!”.

Cluny explica que “a declaração marca um ponto de viragem e a inclusão na agenda mundial de um conjunto de valores” que “não são relativos", o que representou “um subir de patamar de concepções da humanidade”. Por outro lado, a sua aprovação “produziu uma dinâmica”, que “em conjunto com outros documentos posteriormente aprovados, como a Carta da Europa, levou à criação de organismos que começaram a intervir de maneira efectiva na afirmação prática e concreta de valores da declaração”. Assim, frisa o magistrado, “do plano teórico e utópico, passou-se para a positivização dos direitos”. E conclui: “Estou no Eurojust e tenho de trabalhar com a produção do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e do Tribunal Europeu de Justiça, vejo como são produzidas decisões que têm implicações directas na vida das pessoas.”

Também Roseta salienta que “a declaração é proclamatória”, mas “a partir da aprovação houve um movimento muito importante de concretização”. Uma força que advém das raízes do documento, explica, lembrando que os valores ali incluídos espelham o espírito “da declaração americana e, depois, da francesa, mas também os valores do cristianismo e o ideário de São Paulo, para quem todos são iguais”. A declaração foi, assim, “a mãe de outras convenções e tratados”, sintetiza, acrescentando que ela “é universal, une os povos e os espaços mas também o tempo, é a solidariedade com outros hoje, mas também com as gerações vindouras”.

O primeiro embaixador português na OCDE sublinha ainda que a declaração contém um ideário que “continua a ser inspirador, foi e é positivo por tudo o que desencadeou: o direito ao desenvolvimento, o direito à diferença contemplado pelo conceito de que somos todos iguais, mas todos diferentes.” A que aduz “a preocupação pelo destino da humanidade, a consciência de que estamos todos no planeta. Eu não posso ter direitos se os outros não têm.”

“Nada está garantido”

Sampaio adverte que, “no entanto, nada está garantido e, mesmo se desde 1948 a declaração foi completada com inúmeras convenções, protocolos, planos de acção e agendas que permitiram avanços significativos, assiste-se hoje a uma perigosa evolução tendente não só a desvalorizar o sistema multilateral que tem assegurado o progresso na realização dos Direitos Humanos, mas também a desacreditar os próprios direitos e o princípio da sua universalidade, inalienabilidade e inviolabilidade”. Razão pela qual o ex-Presidente defende que “a celebração deste septuagésimo aniversário deveria ser uma ocasião para lançar um alerta vermelho e ao mesmo tempo ser um grito de alerta”.

A necessidade de levar o reconhecimento dos Direitos Humanos a todos é advogada também por Roseta. “Há muito a fazer, é preciso a sua promoção em todo o mundo, numa perspectiva de desenvolvimento e de respeito ambiental”, diz, questionando: “Onde está a Igualdade quando ainda há escravatura e ainda existe a situação que existe com tantas mulheres?

Sem desvalorizar o muito que há para fazer, Ana Gomes defende que “nunca vivemos numa época perfeita, nunca há perfeição nos Direitos Humanos”. Mas lembra o muito que foi conseguido. “Os direitos das mulheres, que não estavam assim formulados na declaração, hoje estão adquiridos, não realizados, mas adquiridos desde a Conferência de Pequim em 1995”, frisa a eurodeputada, advertindo: “Não quero apagar os aspectos positivos que resultaram da evolução que os Direitos Humanos tiveram.”

Riscos de regressão

Além do que está por realizar, as personalidades ouvidas pelo PÚBLICO salientam ainda os riscos que os Direitos Humanos correm hoje em dia. “Há claramente” riscos de regressão “e, mais do que riscos, há já regressões tangíveis atestadas por inúmeros factos”, afirma Sampaio. Cluny alerta para que “há sempre todos os riscos de retrocesso, até porque a história da humanidade não é linear”. E explica que “há corredores que percorremos a velocidades diferentes, há questões que não estão asseguradas” e defende que “há áreas da sociedade que já evoluíram tanto que não percebem que há coisas básicas que não estão satisfeitas”.

Desenvolvendo a ideia dos vários ritmos e dos vários universos sociais, culturais e mentais que coexistem na mesma sociedade, Cluny sublinha: “O perigo existe, e pode vir até de inventarmos demasiados direitos, há novos direitos que são importantes, mas nem todos essenciais ou básicos.” Ora, afirma o magistrado, “as contradições provocadas pela defesa desses novos direitos têm sido usadas pelos movimentos populistas para os contrastar com a falta de realização de direitos essenciais que muitos ainda sentem mesmo na Europa.” Concluindo: “Não podemos fazer o discurso dos Direitos Humanos para elites culturais e deixar de lado as pessoas com necessidades básicas. Os Direitos Humanos podem regredir porque o discurso em sua defesa pode tornar-se insuportável para quem não tem direitos, isto mesmo na Europa.”

Os retrocessos nos Direitos Humanos são salientados por Jorge Miranda. “Estamos a assistir a ataques do nacional populismo, do fascismo, dos regimes comunistas capitalistas, o problema dos refugiados, os efeitos das novas tecnologias na comunicação social”, afirma o constitucionalista, acrescentando ainda que “permanecem as desigualdades Norte-Sul e na Europa continua a haver desigualdades”. Concluindo que “a ideia de pôr fim às desigualdades entre as pessoas continua válida, mas é preciso combater por ela mais do que há dez ou vinte anos”.

A regressão é também apontada por Roseta que lembra, contudo que, “por ser um texto proclamatório, a declaração teve uma aplicação desigual no tempo e no espaço”. Logo quando foi aprovada, “recebeu 40 votos a favor e oito abstenções da União Soviética e outros países do Pacto de Varsóvia, mas também da Arábia Saudita e da África do Sul”, ou seja, “houve países que se colocaram logo de fora”, a que se juntaram os “outros que nasceram da descolonização”. Além de que “há países em que houve regressão” e “, mesmo países subscritores, onde tem havido violações gravíssimas”. O primeiro embaixador português na OCDE destaca os casos “da Turquia, de África, das ditaduras, dos países islâmicos” e cita também a situação actual nos EUA.

Primado do indivíduo

Mas há uma outra dimensão de risco que Roseta considera “paradoxal”. No mundo de hoje, “há uma emergência de falsos valores de uma hierarquia de valores desajustados”. Pelo que “o maior risco é esta afirmação grotesca do primado do indivíduo, que se sublima através do nacionalismo”, quando, garante, “é uma contradição querer ser individualista e liberal e ao mesmo tempo nacionalista”. Pelo que adverte para a necessidade de combater “o perigo da continuação da ideologia do triunfo, que leva ao esquecimento da responsabilidade e do serviço ao outro”.

Por sua vez, Ana Gomes defende que “há regressão porque alguns países-chave, em particular os EUA, estão hoje a pôr em causa esses Direitos Humanos”. E aponta como retrocesso “a presidência de Donald Trump e o que ele diz sobre imigrantes, para mais no país que foi o grande defensor dos Direitos Humanos, desde o impulso de Eleanor Roosevelt [mulher do Presidente dos EUA, Franklin Roosevelt].” Mas a eurodeputada salienta que “houve sempre quem os quisesse pôr em causa” e garante que “estamos numa fase de regressão, mas isso não vai pôr em causa a declaração, será uma fase certamente passageira, porque quanto mais se sente a falta dos Direitos Humanos, mais se faz para compensar essa falta”.

Frases

“Nos tempos que correm, rever a declaração será abrir uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis e, a meu ver, todas negativas.

Jorge Sampaio

Não acredito que a inteligência artificial e o desenvolvimento tecnológico possam de alguma maneira dispensar a inteligência humana e o que está na declaração é para os humanos.

Ana Gomes

“É um documento Juris Universalista e cujo artigo 1º continua a ser uma referência: ‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns aos outros em espírito de fraternidade’.

Jorge Miranda

É universal, une os povos e os espaços mas também o tempo, é a solidariedade com outros hoje, mas também com as gerações vindouras.

Pedro Roseta

As contradições provocadas pela defesa desses novos direitos têm sido usadas pelos movimentos populistas para os contrastar com a falta de realização de direitos essenciais que muitos ainda sentem mesmo na Europa.

António Cluny

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