Pistas para perceber a “insurreição amarela”
O movimento “gilets jaunes” “inscreve-se mais no tipo de sociedade que se desfaz do que no da que nasce”, frisa Behar.
O movimento “gilets jaunes” é a fórmula francesa do mal-estar de todo o Ocidente. Nascido da “França periférica”, não é uma réplica directa dos populismos correntes na Europa ou na América. Mas nasce do mesmo caldo de cultura. Assume-se como manifestação de cólera contra o establishment francês. O seu alvo final é o Presidente Macron, enquanto cabeça do Estado francês e do sistema político. Daí o grito unificador: “Macron, demissão!” Em poucas semanas, transformou o quadro político francês.
É um movimento de carácter “defensivo”, ou seja, não quer conquistar o futuro e “revela a história de uma França que desaparece”, na expressão do geógrafo Daniel Behar. Exprime um retrocesso político e encerra um desafio directo à democracia representativa. Sigamos algumas e incertas pistas de análise, porque se trata de um movimento ainda opaco e resistente às classificações.
Esqueçamos os antecedentes franceses, as grandes “emoções populares”, desde as “jacqueries antifiscais” da Idade Média às ondas de protesto mais recentes, como o movimento grevista de 1995 contra a reforma da segurança social e do sistema de aposentações, ou ainda as greves e a violência a propósito de outra reforma das aposentações, em 2010. Nestes dois movimentos havia sindicatos, de trabalhadores e de estudantes, e o poder tinha interlocutores. Hoje, por definição, não há interlocutor, logo não pode haver negociação.
O “caderno de queixas” é conhecido e as causas vão muito para lá da tributação dos combustíveis: a estagnação do nível de vida desde 2008 e o crescente aumento de despesas e encargos das famílias. Foi uma mistura explosiva. Mas avisa o economista Pierre-Yves Cossé, antigo comissário do Plano: “Os comentadores procuram as causas da crise francesa nos erros e nas faltas cometidas pelo Presidente da República desde a sua chegada ao Eliseu. Elas existem certamente, em particular no terreno fiscal”, mas isto passa ao lado do essencial.
“A doença é muito mais extensa, ultrapassa as nossas fronteiras e inscreve-se na longa duração. A primeira fonte de mal-estar do Ocidente é a recomposição do mundo. O aparecimento de novos ricos significa uma transferência maciça de riquezas e de poder, principalmente em proveito da Ásia e da China. (...) As elites falharam, foram incapazes de explicar aos cidadãos o advento do novo mundo e as mudanças individuais e colectivas.” Todos as frustrações que alimentam os populismos xenófobos e autoritários partem deste mesmo terreno.
Potencial explosivo
O movimento “gilets jaunes” “inscreve-se mais no tipo de sociedade que se desfaz do que no da que nasce”, como frisa Behar. Observa o sociólogo Michel Wieviorka: “Os ‘gilets jaunes’ encarnam sobretudo os que se recusam a pagar o preço desta transformação, são o actor defensivo de um modelo que se começou a decompor com o fim dos Trinta Gloriosos.” Travam uma “guerra de atraso”.
Não falam da “entrada num mundo novo em que teriam um papel criador”. Mas são um movimento novo “se considerarmos as formas de mobilização que conjugam o recurso a tecnologias modernas de comunicação e a presença física em múltiplos lugares que permitem a cobertura de todo o território nacional”.
A violência não é inerente ao movimento dos que se definem retoricamente como “os esquecidos e os invisíveis” da sociedade. A violência é exercida por franjas radicais, de extrema-esquerda e extrema-direita, mas desempenha um papel crucial: são os actos violentos que asseguram a intensidade da cobertura mediática. De resto, ela tende a instalar-se quando um movimento não se consegue traduzir numa acção concreta e se transforma em ruptura que passa a opor inimigos. É um risco inerente ao fenómeno “gilets jaunes”. A vandalização de monumentos nacionais é uma poderosa mensagem.
Macron encostado à parede
“O ‘gilets jaunes’ exprime cólera, e também violência, perante as instituições do país”, resume o americano Benjamin Haddad, que investiga a Europa e acompanhou a campanha eleitoral de Macron. Qualifica o movimento como “o próximo estágio do desafio populista às democracias ocidentais.”
O politólogo Gérard Grunberg analisa a dimensão política do conflito. Se nas democracias representativas é legítimo que os cidadãos se manifestem contra os governos, “não é legítimo que os cidadãos, que por definição têm o direito de voto e elegeram democraticamente há 18 meses um Presidente e os seus representantes, considerem hoje o poder como um inimigo e procurem derrubá-lo, eventualmente pela violência”.
Wieviorka sublinha três reivindicações difusas: um referendo para a destituição de Macron, a dissolução da Assembleia Nacional e, até, sinais de apelo a um novo primeiro-ministro de estilo autoritário. Tudo isto em nome do “nós somos o povo” e de uma concepção referendária da democracia. Só poderiam ser alcançadas “à custa de um espasmo social prolongado que paralisasse o país”.
O sistema partidário francês está despedaçado. Laurent Wauquiez, líder da direita, vestiu um colete amarelo. Interroga-se Grunberg: “Que esperará recolher de um movimento de tendência insurrecional, (...) a esperança de regressar enfim ao poder?”
Macron é objecto de “um ódio inédito, maciço, mais violento do que o que perseguiu Sarkozy e Hollande”, anota o Libération. “O ódio é um amor decepcionado” pelo Presidente jupiteriano, diz uma personagem do Eliseu.
Macron tem mantido o silêncio para não lançar mais achas na fogueira. Parece condenado a um recuo para apaziguar a opinião pública que simpatiza com o “gilets jaunes”. Avisam os observadores que há duas coisas que ele não pode fazer: a primeira seria convocar eleições antecipadas que, no actual quadro e sem alternativas, poderiam resultar no caos institucional; a segunda seria fazer a mínima cedência perante os motins.