Crianças portuguesas maltratadas pelas suas famílias e pelo Estado
Enquanto comprometidos com a protecção infantil, os autores destas linhas sentem-se obrigados a denunciar esta inaceitável realidade.
Recentemente o Instituto de Segurança Social tornou público o relatório Casa 2017 com informação estatística actual acerca da situação das crianças portuguesas que não podem crescer na sua família, porque são vítimas de grave negligência e outras formas de maus tratos. Os dados são, mais uma vez, desanimadores e expõem uma situação provavelmente desconhecida da sociedade portuguesa.
O Casa 2017 torna evidente que as autoridades portuguesas falham no cumprimento da Lei 142/2015 de protecção de crianças e jovens em perigo. A lei estabelece que as crianças maltratadas que não podem permanecer na sua família devem, preferencialmente, ser colocadas em acolhimento familiar, sobretudo no caso de crianças com menos de 6 anos. Infelizmente, os dados revelam uma realidade muito diferente. Enquanto comprometidos com a protecção infantil, como observadores atentos da realidade portuguesa, cidadãos de países culturalmente próximos e conhecedores da realidade internacional da protecção infantil, os autores destas linhas sentem-se obrigados a denunciar esta realidade inaceitável.
Para além da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, inúmeros estudos científicos têm estabelecido claramente que nós, humanos, devemos passar os primeiros anos das nossas vidas numa família. Também têm demonstrado que crescer em regime de cuidados colectivos ou institucionais tem graves consequências negativas que ficam profundamente gravadas na arquitectura cerebral. Acresce que, como reporta o Casa 2017, as crianças colocadas em acolhimento institucional têm grande probabilidade de aí permanecer vários anos socialmente invisíveis.
Por estas razões, há algumas décadas, os países ocidentais têm vindo a fechar as portas de instituições às crianças, particularmente no caso das mais novas, privilegiando alternativas familiares como o acolhimento familiar ou a adopção. Quando a reunificação com a família de origem é possível, uma vez ultrapassados os seus problemas, essa é a melhor solução, tal como estabelece a lei portuguesa. Quando isso não é possível, a alternativa para as crianças, principalmente para as mais novas, tem de ser a colocação noutra família que atenda às suas necessidades básicas de segurança e protecção, de afecto e estimulação.
O Casa 2017 mostra que Portugal continua a ser uma infeliz excepção nos países ocidentais. Das 7553 crianças protegidas pelo Estado, a esmagadora maioria, qualquer que seja a idade, está em instituições. A maioria das casas de acolhimento são generalistas, sem a especialização específica recomendada pelas orientações internacionais e a evidência científica. Os dados são escandalosos: das 7553 crianças separadas das suas famílias, apenas 246 (3%) crescem noutra família (família de acolhimento). Das 903 crianças menores de 6 anos sob protecção do Estado português, apenas 18 estão em acolhimento familiar, o que significa que praticamente todas estão em condições consideradas indesejáveis de acordo com o conhecimento internacional e a própria legislação portuguesa.
No recente aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o PÚBLICO noticiava que uma secretária de Estado com responsabilidade na matéria afirmara que, por enquanto, não havia planos para aumentar o acolhimento familiar. Declarou-se “assustada” ao pensar no que poderia acontecer dentro de portas nas famílias de acolhimento sem suficiente supervisão e fiscalização. A secretária de Estado poderia antes ter-se sentido “escandalizada” com o relatório Casa 2017, que atesta a inadmissível institucionalização das crianças mais vulneráveis, o que a deveria ter conduzido à conclusão oposta: a urgência de aumentar o acolhimento familiar em Portugal, sem mais desculpas nem demoras inaceitáveis. Se, para além disso, a Segurança Social providenciar os meios para assegurar famílias de acolhimento bem apoiadas e bem supervisionadas, a secretária de Estado já não terá razões para se sentir “assustada”. E, ao mesmo tempo, terá cumprido a lei, em vez de ostensivamente a desrespeitar. Bom acolhimento familiar, bem acompanhado e adequadamente supervisionado é uma realidade na maioria dos países desenvolvidos e não há razão para que não seja possível em Portugal.
Nos nossos dois países, Irlanda e Espanha, tão parecidos com Portugal em tantos aspectos, a tradição da institucionalização de crianças também foi forte. Enquanto Portugal ficou parado no tempo em matéria de protecção infantil, os nossos países transformaram a situação significativamente. As crianças mais novas abandonaram as instituições e foram acolhidas em famílias devidamente formadas, avaliadas e acompanhadas por profissionais. Portanto, a transformação não é apenas necessária, mas também possível. Conhecemos profissionais portugueses da protecção infantil conscientes da necessidade de mudança e disponíveis para a levar a cabo. Em vez de favorecer este ímpeto de mudança, as autoridades da protecção infantil têm-no bloqueado. Entretanto, as crianças mais vulneráveis em Portugal, maltratadas nas suas famílias, são maltratadas pelo Estado que lhes nega o direito de crescer numa família.
Desta tribuna apelamos, pois, a que seja posto um fim a esta situação inaceitável. Apelamos a todos os partidos políticos para que exijam do Governo o cumprimento da lei, assegurando famílias para as crianças que temporária ou definitivamente não podem crescer nas suas. Apelamos ao Governo e ao Instituto de Segurança Social para que promovam, urgente e firmemente, acolhimento familiar de qualidade, sem mais desculpas nem demoras. Apelamos aos profissionais da protecção infantil para que exijam alternativas familiares e tornem possível a mudança. Apelamos à sociedade portuguesa para que reclame esta mudança e ofereça a sua sensibilidade, generosidade e compromisso com o bem-estar das crianças portuguesas que dele mais necessitam e que não podem esperar.