Portugal e a nova China: Governo não abdica de uma relação forte
Xi Jinping inicia esta terça-feira uma visita de Estado a Portugal em condições muito diferentes da do seu antecessor, Hu Jintao, há oito anos. Uma profunda crise europeia e cerca de nove mil milhões de euros investidos depois, a relação é para continuar. E o debate sobre ela também.
Se houvesse uma forma simples de descrever a complexidade das relações entre Portugal e a China no início da visita de Estado de Xi Jinping a Lisboa, ela poderia resumir-se à passagem do “estado de necessidade” que marcou boa parte do relacionamento recente, para um “estado de flexibilidade”, mais de acordo com o novo enquadramento europeu, com a nova estratégia chinesa de afirmação global e com a nova situação nacional, mais liberta dos constrangimentos da crise e atenta às mudanças na cena internacional.
O país que o Presidente chinês visita hoje é muito diferente do que encontrou o seu antecessor, Hu Jintao, há oito anos. Pelo meio, uma grande recessão atingiu a zona euro e a crise da dívida soberana abalou os alicerces da União Europeia. Com uma forte capacidade de investimento quando mais ninguém queria investir, Pequim aproveitou a oportunidade para comprar activos sobretudo nos países que mais sofreram com a crise, entre eles Portugal.
O debate de fundo, não particularmente intenso, que acompanha a visita centra-se numa pergunta: até onde Portugal deve ir na sua relação económica e política com a China para preservar a independência das suas decisões estratégicas e o estatuto de membro da União e da NATO, com as responsabilidades inerentes? Há quem insista nos riscos e há quem os relativize. Para o Governo, citando o chefe da diplomacia portuguesa, “a inscrição de Portugal na União Europeia e na NATO continua a ser a nossa única opção estratégica”. Mas “o desenvolvimento das relações com grandes países de economias dinâmicas com os quais mantemos de há muito boas relações é também uma prioridade da política externa do Governo.” Deles fazem parte colossos como a China, mas também a Índia, o Japão e a Coreia do Sul. Santos Silva chama a atenção para as visitas do primeiro-ministro à China e à Índia, num ciclo que pode ter continuação em breve.
O "memorando"
Os dois pratos de substância da visita de Xi a Lisboa, vindo do G20, são uma “declaração política conjunta” para celebrar a amizade e a cooperação, e o “memorando de entendimento” para a cooperação com a nova Rota da Seda (nome oficial: “Belt and Road Initiative”), talvez o documento mais emblemático que resultou de negociações “muito duras”, nas palavras de um responsável directamente envolvido. Portugal, como já se sabe, rejeita o modelo seguido pela maioria dos países da Europa de Leste e pela Grécia, de “adesão” à Rota da Seda e aos “estímulos” financeiros que Pequim oferece, optando por um modelo diferente, de “cooperação” com a iniciativa chinesa, no quadro das duas grandes estratégias europeias para as relações futuras com a China e com a Ásia que serão referidas no “memorando”.
O ponto de partida é a realidade existente e essa regista já uma forte presença chinesa em alguns sectores fundamentais da economia como a energia, a banca ou os seguros. De uma presença quase inexistente há menos de 10 anos, o investimento chinês atinge hoje cerca de nove mil milhões de euros (com os vistos “Gold” passa para cerca de 12 mil milhões). Em termos de dimensões económicas, Portugal foi o país que mais investimento recebeu de Pequim entre 2011 e 2015, com o equivalente a 3,3% do PIB (cálculos feitos por Ivana Casaburi, autora de Chinese investment trends in Europe).
A questão dos “sectores sensíveis” já nem se põe, lembra um responsável governamental, porque já não é possível voltar atrás. A EDP e a REN (o caso mais controverso porque se trata de um “monopólio natural”) já têm como accionistas principais empresas chinesas (no caso estatais). Mas a diplomacia portuguesa também lembra que a presença chinesa na EDP, por exemplo, obedece a uma política industrial de longo prazo, enquanto a participação de um fundo de investimento americano, destinado a realizar mais-valias, já resultou na sua venda. Neste domínio, o Governo quer uma mudança qualitativa: da compra de empresas para o investimento industrial de raiz.
O teste de Sines
O eventual interesse chinês pelo novo terminal de navios contentores do Porto de Sines é um teste para esta nova política. Portugal valoriza esse interesse porque, se ele existir, a posição de Sines na competição com outros grandes portos europeus ficaria reforçada. Os concorrentes são fortes. O Pireu, que já está nas mãos da China, mas também o porto de Valência, que disputa com Sines a alternativa a Roterdão, até agora o principal porto de águas profundas da Europa e onde, nos planos chineses, a componente terrestre da Rota da Seda deverá desaguar. A parada é importante. Pode reforçar o posicionamento da costa atlântica na confluência de continentes e cumprir o objectivo definido pelo chefe da diplomacia portuguesa: “A confluência entre a faixa terrestre e a rota marítima da nova Rota da Seda”.
A China está a criar uma rede mundial de portos, que explora e/ou constrói, de forma a garantir que não fica dependente da presença militar americana nas grandes rotas marítimas por onde circula uma muito larga percentagem do comércio internacional. Para além do Pireu, já tem acordos com zonas portuárias em França, Espanha, Holanda e Bélgica. Veneza também está na competição. O actual terminal de contentores de Sines está concessionado a uma empresa de Singapura. Cerca de um terço do gás liquefeito que os EUA exportam para a Europa entra por lá: o objectivo americano é aumentar as exportações para a Europa da sua produção de gás de xisto, exigindo condições de armazenamento especiais, de que o terminal de Sines dispõe. O novo terminal de contentores, o Vasco da Gama, será em breve posto a concurso público internacional.
Vantagens e riscos
O governo português não ignora os objectivos da China nesta nova fase da sua expansão internacional. Mas procura adaptar a sua política chinesa à forte “volatilidade” da situação internacional, em transição de uma ordem liberal e multilateral cada vez mais posta em causa, para uma crescente desordem internacional com uma configuração tendencialmente “multipolar”, assente em quatro grandes pólos de poder: os EUA, a União Europeia, China e a Rússia, obrigando a política externa portuguesa a “uma maior flexibilidade”. “Há um receio da China por parte dos nossos principais parceiros europeus? Há, com certeza.” “Há alguns avisos desses parceiros ao Governo português? Também, mas nada que esteja fora do que são as nossas relações normais”, diz uma fonte governamental que acompanha as várias dimensões da política externa.
Além disso, a convicção do Governo é que, nos próximos anos, outros países ocidentais acabarão por assinar com a China “memorandos de entendimento” semelhantes ao que vai ser assinado em Lisboa. Nada de muito diferente do que aconteceu quando, em 2005, Portugal assinou com Pequim uma “Parceria Estratégica Global” que, na altura, a China apenas tinha negociado com mais três grandes países europeus e que hoje já está generalizada a vários outros. A questão é saber se esta “oportunidade” encaixa na estratégia europeia de contenção da crescente influência chinesa na Europa, nomeadamente através da divisão entre os Estados membros (o método clássico) e se, do ponto de vista nacional, também corresponde a um interesse de longo prazo. A China deixou de poder ser tratado com uma mero parceiro económico, a partir do momento em que a sua ambição mudou de natureza.
Para Carlos Rodrigues, coordenador do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade de Aveiro, a visita “pode ser vista como sendo simultaneamente de celebração e de confirmação das boas relações entre os dois Estados”, lembrando que “não podia haver melhor pretexto” do que os 40 anos do restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países e os 20 anos da transferência de soberania de Macau para a China”. Responsável pela análise do caso português num trabalho recente sobre o investimento chinês na Europa realizado pelo European Think-tank Network on China, nota que as relações entre os dois países “atingiram um dos seus pontos mais altos”, mesmo que haja ainda uma “grande margem de progressão”, vaticinando uma nova onda de investimento chinês em Portugal. Admite que, para além da História, a China tem considerações de ordem geopolítica: “A aquisição de empresas portuguesas permite, muitas vezes, o acesso a conhecimento e tecnologia a que, de outra forma, seria muito difícil aceder”, para além do acesso a outros mercados europeus e do “efeito ponte” em relação aos países lusófonos”.
Mais negativa é a opinião de Miguel Santos Neves, doutorado pela London School of Economics, professor associado de Relações Internacionais da UAL e especialista das relações entre Portugal e a China. "A China ganhou uma posição dominante na economia portuguesa" e “gerou uma situação de dependência que aumenta a vulnerabilidade à retaliação”, diz.
“No plano político”, defende, "a China visa utilizar esta forte influência económica sobre Portugal para enfraquecer a União Europeia e a sua posição negocial face a Pequim, procurando dividir os Estados-membros e levar países como Portugal, Grécia, Finlândia, Roménia ou Bulgária a adoptarem posições mais favoráveis à China no Conselho Europeu.” A longo prazo, prossegue o académico, “Pequim pretende uma posição dominante no acesso e exploração dos recursos da Plataforma Continental portuguesa e na presença no Atlântico Norte (...), primeiro numa lógica civil/pacífica de investigação científica e, possivelmente, no futuro, também numa dimensão militar no quadro da competição estratégica com os EUA.”
Marcelo Rebelo de Sousa, que hoje recebe o seu homólogo chinês, vê, pelo contrário, este relacionamento como muito positivo e considera que, para além dos aliados tradicionais, as relações com a China “são, de certo modo, insubstituíveis” porque existe uma velha complementaridade. Foi esta a sua mensagem numa entrevista concedida ao canal de televisão chinês em língua inglesa, CGTN. O Presidente considera ainda que os investimentos chineses “anteciparam” a recuperação económica do país. “É essa a lição dos factos”: a sua resposta aos que se preocupam com uma “invasão chinesa”.
O Governo não deixa de levar estes riscos em consideração, mas também entende que, por vezes, as objecções de países como a França ou a Alemanha à penetração chinesa em Portugal ou na Grécia relevam do interesse próprio. A Alemanha é dos raros países do mundo (e da União Europeia) com um saldo positivo na balança comercial com a China, tirando grande partido das relações mais abertas entre as duas partes. Os grandes países europeus sabem que, por maiores que sejam, são pequenos face à China, valorizando por isso a dimensão europeia desta relação e tentando controlá-la. “É preciso não ser ingénuo”, diz uma fonte diplomática. Em matéria de política externa, “ainda há um elevado grau de autonomia de cada Estado-membro”, que Portugal procura explorar de acordo com os seus interesses. “Não é pragmatismo cego”, é a necessidade de nos adaptarmos à volatilidade da situação internacional.”