“Olá, vizinha!” Li Yin não pensa regressar à China para já
A comunidade chinesa em Portugal saltou dos 244 moradores em 1980 para os mais de 23 mil, em 2017. Ainda permanece agarrada à imagem da loja e do restaurante, mas está a mudar aos poucos. Já há quem não tenha sucessores para os velhos negócios tradicionais.
Há precisamente uma semana o Restaurante Chinês (assim mesmo) juntou-se à lista dos estabelecimentos comerciais distinguidos pelo programa Porto de Tradição por terem “interesse histórico e cultural”. O reconhecimento, que garante alguma protecção ao espaço, mereceu a aprovação unânime de todos os vereadores da Câmara do Porto e para Chow Feng Y Ing, que gere o espaço, a notícia foi um alívio: “Ouvimos o que se tem passado, como com a [confeitaria] Cunha. E o espaço é alugado, por isso tenho medo. Se a senhoria diz: ‘vai embora’, o que é que fazia? A vida foi toda aqui, sempre.”
Não há melhor sinal da integração desta chinesa de 60 anos do que este. Chow Feng Y Ing, membro de uma das mais antigas famílias oriundas da China a instalar-se em Portugal, conhece bem os problemas que se vivem na cidade, como a ameaça de despejo que paira sobre alguns velhos espaços comerciais, e está habituada a lidar com eles. O restaurante, aberto em 1966 pelo pai, mesmo junto ao tabuleiro superior da Ponte Luiz I, continua sem mãos a medir, e faz agora parte do roteiro dos turistas orientais que chegam à cidade – foram quase 257 mil no país, no ano passado, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). “Todos os dias temos dois ou três grupos a comer aqui”, explica. Mas também sofreu, como tantos outros negócios do Porto, quando as obras que amiúde invadem o centro, passaram por ali.
No caso do restaurante, os tempos críticos foram a construção da linha de metro entre o Porto e Vila Nova de Gaia (aberta em 2005), que transformou o tabuleiro superior da ponte mesmo ali ao lado numa via exclusiva para pessoas e aquele transporte público. José Gouveia, de 49 anos e empregado do restaurante há 30, diz que esses tempos de tapumes em que viviam escondidos foram “drásticos” e que o negócio só não ficou “incomportável” graças às indemnizações e apoios concedidos pela obra. “Foram quase quatro anos em que o negócio baixou muito. Pensavam que o restaurante estava fechado. Não foi fácil”, diz, ao seu lado, a patroa.
Chow Feng Y Ing puxou José para o seu lado assim que pôde. Aliás, ao primeiro pedido de entrevista tentou esquivar-se, escudando-se no que diz ser o seu mau português, e sugeriu que falássemos apenas com o empregado, que a acompanha sempre que é solicitada pela comunicação social. O que acontece amiúde, porque ela pertence a uma das famílias chinesas mais antigas do país e o seu irmão, Y. Ping Chow, presidente da Liga dos Chineses em Portugal, é a pessoa que todos procuram quando é preciso aceder de forma mais profunda à comunidade que, em 2017, segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras era já a quinta comunidade imigrante mais representada no país, com 23.197 pessoas registadas. Um salto de gigante, se pensarmos que em 1980 não existiam mais do que 244 chineses no país.
O português da mulher está longe de ser irrepreensível, mas ela faz-se entender sem grandes problemas e depois de 40 anos a viver em Portugal, não há pergunta que não entenda. O primeiro membro da família a chegar foi o avô dos Chow, em 1934. Montou uma fábrica de gravatas e, depois de instalado, abriu a porta à vinda de outros membros da família. O pai de Feng e Ping, Chow Horng Tzer, chegou em 1958; os irmãos vieram em 1962 (ele, com apenas sete) e 1978 (ela, já depois de ter completado os estudos do liceu e de ter ficado a cargo da avó desde os 3 anos). Há mais duas irmãs, a mais nova das quais já nasceu em Portugal.
Foi Chow Horng Tzer quem abriu o restaurante que ocupa os dias de Feng e cujo nome traduz bem a originalidade do que era então um espaço daquele tipo. Na descrição que acompanha a proposta de reconhecimento votada na Câmara do Porto, recorda-se a história da sua origem: “Em 1964, o Sr. Chow Horng Tzer, recebeu em casa um familiar que vivia na Alemanha e quando lhe perguntou onde queria ir jantar e este responde que a um restaurante chinês, verificaram que não existia qualquer restaurante deste tipo. E assim surgiu a ideia de abrir um. Como teve honras de número um, passou à frente da primeira dificuldade que todos os que abrem um novo negócio têm pela frente: a escolha do nome. Como não havia mais nenhum, ficou Restaurante Chinês”, lê-se no documento.
A vida de Feng, desde que chegou a Portugal, foi toda ali. Começou a ajudar os pais e, quando chegou a hora de entregar a gestão dos negócios aos filhos, ela ficou com este espaço, o irmão com o outro criado por Chow Horng Tzer, na Rua do Bonjardim. Feng casou com um homem indicado pelo pai e teve três filhos, cujas vidas são já bem diferentes da dela.
A nova geração
As duas filhas mais velhas tiraram cursos na área da Saúde e só aparecem para ajudar no restaurante de vez em quando, ao fim-de-semana. O mais novo, de 15 anos, é, segundo José, “o crânio da família” e aborrece-se com um ensino que não o estimula, o que leva a mãe a dizer, erradamente, segundo o empregado, que ele é “preguiçoso”. Chow Feng Y Ing não tem, por isso, qualquer esperança que um dos filhos lhe suceda no negócio, mas para já, nem quer pensar em transição. Sorri, abana as mãos como que a afastar um mau pensamento, e diz que ainda é muito nova e tem muitos anos de trabalho pela frente antes de se preocupar com isso.
Para já, vê os filhos a viverem cada vez mais como qualquer outro nacional por cá nascido. Longe do restaurante. Com amigos portugueses. Longe dos grandes armazéns de revenda da Varziela, em Vila do Conde, onde há uma das maiores concentrações de chineses no país. Os casamentos, se chegarem e quando chegarem, também serão sem interferência dos pais, garante. “Os filhos nasceram cá, cresceram cá, nem sabem falar chinês, iam agora casar com um? Quando falo na língua de lá, o João nem responde. Ele já é português”, diz ela.
As coisas mudaram, não só para os Chow, mas para a comunidade em geral. Não foi só o enorme crescimento apontado pelas estatísticas. Nos últimos anos, chegaram os grandes investidores, à boleia dos Vistos Gold, e a ideia do chinês que vive nas traseiras da loja ou do restaurante e vende produtos de fraca qualidade ainda pode estar bem vincada, mas são cada vez mais os exemplos de que essa realidade está a mudar. José Gouveia traduz o que viu acontecer nos 30 anos de convívio com os membros da família Chow e os clientes que passam pelo restaurante: “Estão mais abertos. A comunidade era muito fechada. Hoje em dia as mentalidades mudaram. Os filhos já nasceram cá e vivem cá, têm namorados portugueses”, diz.
José Chen, 24 anos, é um desses exemplos de mudança. Os pais chegaram a Portugal em 1985, ele nasceu em Lisboa só por acidente – a mãe tinha ido lá em negócios, mas a família já estava estabelecida no Porto – e nem ele nem os quatro irmãos se juntaram ao que eram os negócios da família: loja e restaurante. A única remotamente ligada a esta actividade é uma irmã que tirou o curso de Pastelaria. “Porém, é diferente, uma vez que não é cozinha asiática. Para além disso, trabalhou em restaurantes conceituados pelo mundo”, descreve.
Ele tem o mestrado integrado em Medicina pela Universidade do Porto, além do curso de Pastelaria e uma licenciatura em Turismo. Agora, está a frequentar uma outra em Engenharia Electrotécnica e Computadores. No futuro, vê-se a trabalhar como médico, mas diz que esta formação tão variada decorre do interesse que sempre teve por várias áreas e por acreditar que “todas se complementam” e o tornarão “uma pessoa mais competente”.
José Chen responde por e-mail, porque está fora de Portugal, numa viagem de lazer. O seu caso entre a comunidade chinesa em Portugal, diz, não será o mais frequente. Um estudo do INE, baseado nos Censos de 2011, parece dar-lhe razão: à data, apenas 3,6% da população chinesa residente em Portugal tinha concluído o ensino superior, um valor muito abaixo do da restante população estrangeira, cuja percentagem neste indicador se situava nos 14,6%.“Penso que quem tem negócios pressiona os filhos para continuarem, e faz sentido, querem transmitir o legado. Seguir rumos diferentes ainda é, infelizmente, o menos comum, apesar de haver cada vez mais descendentes de imigrantes chineses a frequentar a faculdade. Às vezes, tentam conciliar o curso e as saídas com o trabalho (por exemplo, Gestão)”, escreve.
Fala da geração dos pais como “muito trabalhadora, ambiciosa, mas [que] não valoriza o descanso assim tanto”. A vida, para esses imigrantes que trocaram o país natal por Portugal, é “para trabalhar e fazer render, aproveitando todos os momentos/oportunidades para ganhar dinheiro”. E lê-lo é como ouvir o sorridente Dai Huang, de 44 anos, no seu português quebrado, a explicar isso mesmo, por outras palavras.
Investir sempre
Dai Huang e a mulher, Chen Li Ying, de 40 anos, têm uma loja de produtos chineses na Rua da Estação, em Campanhã. Ela tem um sorriso imenso e saúda as clientes conhecidas com um “olá, vizinha” ou um “olá, linda”, tão típico entre vários portuenses. Como em tantos outros casos, ele chegou primeiro. Em 1998, quando trabalhava num navio, uma paragem em Portugal e o incentivo de um amigo que o convenceu a ficar por cá, travaram-lhe as viagens. “Tinha vinte e tal anos, não pensava muito. Era jovem, era diferente”, diz, com o sorriso largo, enquanto vários clientes vão entrando e saindo, servidos pelas mãos diligentes e o riso contagiante de Li Ying.
Ela veio “há uns treze anos”, já o filho mais velho, hoje com 15 anos, era nascido. Ele ainda andou por Lisboa e esteve no Algarve, antes de aceitar uma oferta para trabalhar num restaurante no Porto. Ia ganhar mais, pelo que aceitou. Há oito anos abriram a loja. Há quatro compraram o prédio em que ela está instalada. Vivem num dos pisos superiores, o outro tem uma inquilina, já bem avançada nos 80. “Não mexi em nada, enquanto ela quiser continua a morar aqui”, diz Huang, antes de ironizar com a valorização imobiliária que a cidade tem sofrido: “Se vendesse o prédio agora ficava rico.”
Mas ele não quer vender. Quer continuar ali e expandir o negócio. Está a preparar-se para investir num restaurante em Matosinhos. “Mas de comida portuguesa, não chinesa”, especifica. Diz, como Li Ying ou Feng, que gosta de viver cá, que o Porto "está bem" e é “mais calminho” do que a China que visitam amiúde. Não pensam voltar para lá “pelo menos até à reforma”, mas Huang garante que na China tem uma casa já pronta para o caso desse dia chegar. “Os chineses estão aqui a trabalhar, mas na China têm tudo. Casa, tudo. Nós também”, garante.
O seu plano é trabalhar, trabalhar e trabalhar mais. Quando lhe perguntam se não sente falta de férias e descanso ao fim-de-semana, diz que isso “não é importante”, porque teme que o dinheiro de que precisa “não chegue”.
É que as despesas, garante, também são muitas. Sobretudo com os três filhos, para quem sonha um futuro diferente. A filha do meio está numa escola privada. O mais novo deverá seguir o mesmo caminho. Só o mais velho – “idade muito difícil, os 15 anos”, repetem os dois membros do casal uma e outra vez – se mantém na escola pública, a contragosto dos pais. Os dois rapazes também praticam futebol em diferentes clubes e a rapariga joga basquetebol. “Eu não quero filhos no negócio comigo, quero que eles tenham uma vida mais direitinha, com férias. Não quero que sejam iguais a mim, a trabalhar sempre. Não quero, não quero”, diz Huang. Minutos antes, Li Ying insistira na necessidade de os filhos se prepararem para uma vida diferente. “Eu aconselho: tem de estudar muito bem, porque depois, faz qualquer coisa bem, não é?”.
Como uma sombra da terra natal a pairar sobre toda a loja, a mãe de Huang anda por ali, atenta a quem entra, em silêncio. Não fala uma palavra de português e não quer aprender. “Ela não gosta muito de estar cá. Só gosta porque está com o filho, com os outros não gosta”, diz Huang, olhando a mãe pelo canto do olho.
Mas só a velha senhora parece sentir isso e demonstrá-lo abertamente. Li, Huang ou Feng garantem que gostam desta vida mais calma do que o ritmo frenético do gigante económico em que se transformou o seu país de origem. “Aqui está bom”, repetem várias vezes. Li Ying só tem pena de não ter ainda tirado a carta de condução. Passeios, para ela, é ir ao NorteShopping, depois de a loja encerrar, mas está sempre dependente do marido ou do metro. “Sem carro é mais difícil”. Ainda não pôs a ideia de lado, mas ri-se, num riso que toma conta do corpo todo, enquanto brinca: “A cabeça já não está muito bem”. Preocupações, por cá, só os pequenos roubos que vão acontecendo – “é da zona, mas está bem”, diz Huang – e o filho de 15 anos, que gosta mais de jogar à bola ou de estar ao telemóvel com os amigos do que da escola. “Idade difícil, os 15 anos”, lamenta-se a mãe, como poderia fazer qualquer uma das suas vizinhas.