A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou

As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público.

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Kodachrome
They give us those nice bright colors
They give us the greens of summers
Makes you think all the world’s a sunny day
I got a Nikon camera
I love to take a photograph
So mama don’t take my Kodachrome away
Mama don’t take my Kodachrome away
Mama don’t take my Kodachrome away
Mama don’t take my Kodachrome away
(...)
Everything looks worse in black and white

Foi assim que, em 1973, Paul Simon escreveu sobre a famosa película colorida da Kodak e pôs milhares de pessoas a entoar a palavra que era também uma marca comercial. “Kodachro-o-ome” (aquele “o” repetido três vezes para nunca mais nos sair da cabeça) foi um enorme sucesso. Tanto a música cantada por Simon, como a tecnologia que possibilitou a várias gerações de pessoas em todo o mundo criarem os inventários das suas vidas a cores, convocando familiares e amigos para sessões de slides projectadas nas paredes de casa.

Mas as palavras de Paul Simon — “Mamma don’t take my Kodachrome away” — soam agora quase proféticas. A própria Kodak decidiu, em 2009, acabar com a produção da película que inventara em 1935 e com os materiais que permitiam a sua revelação. Em 2010, a única casa fotográfica que ainda revelava kodachrome, numa pequena cidade do Kansas, nos EUA, tornou-se um destino para pessoas de todo o mundo que queriam revelar os poucos ou muitos rolos que ainda tinham em casa. Num tempo em que o suporte digital torna a fotografia imediatamente visível, o que estava em causa era transformar os filmes em fotografias ou, pelo contrário, nunca mais os poder revelar e assim torná-los invisíveis para sempre. A modernidade do kodachrome tornara-se obsoleta.

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Suíça, Julho de 1948 Helena Corrêa de Barros

A história de dois desses peregrinos fotográficos foi contada, em 2010, por A. G. Sulzberger no The New York Times: um funcionário dos caminhos-de-ferro vinha buscar os 1580 rolos de filme que guardara em casa e que só agora, perante a iminência do fim, mandara revelar; e uma artista londrina ia, pela primeira vez, aos Estados Unidos para revelar os três filmes que nunca vira e comprar mais uns quantos. Uma fotografia, tirou-a logo ali, ao funcionário dos caminhos-de-ferro que tivera de pedir dinheiro emprestado para poder finalmente ver o slideshow do seu passado. A história do fim de uma tecnologia que tão determinante fora para a criação de imagens, memórias e narrativas visuais da segunda metade do século XX, usada tanto por profissionais como por amadores, acabou por dar origem a um filme produzido pela Netflix em 2018 e dirigido por Mark Raso. Chama-se Kodachrome e conta a história de uma road-trip em direção ao laboratório fotográfico do Kansas, protagonizada por um pai, velho e doente, que fora fotógrafo, e o filho de quem vivera afastado. A morte iminente do pai, como da Kodachrome, acaba por ser a catarse para a reconciliação entre pai e filho. A fotografia analógica, ou o seu desaparecimento, como o ponto de encontro de duas gerações.

À espera do “momento único”

Helena Corrêa de Barros (1910-2000) começou a fotografar com Kodachrome em 1947, precisamente na altura em que, acabada a II Guerra Mundial, o processo se banalizou enquanto prática amadora e privada. Se começara a fotografar em 1924, com apenas 14 anos, a cor só chegou à sua prática mais de 20 anos depois. O seu pai, o empresário Fortunato Abecassis, que esteve à frente de várias empresas como a Abecassis, a Lusalite ou a Companhia de Seguros Mundial, já fotografava e a materialidade da imagem fotográfica fazia parte do espaço doméstico da família. Num dos quartos da casa, o pai guardava as suas estereoscopias (duas fotografias iguais num mesmo cartão que, quando olhadas através de uma lente, dão a ilusão da tridimensionalidade) e mostrava-as em sessões familiares que, como afirma Paula Cunca no catálogo da exposição sobre uma parte da obra de Helena, terão influenciado o interesse da filha pela película a cores em diapositivo, que se tornou conhecida como slide.

A então jovem Helena não tinha a Nikon de Paul Simon, mas a mais sofisticada Leica, de 35 mm. que, aliada ao seu sentido de observação fotográfica, possibilitou a obtenção de tantos “momentos únicos”, como ela própria descreveu no único texto publicado em que reflectiu sobre a sua prática, “A minha fotografia preferida”, Fotografia. Revista Mensal ao Serviço da Arte Fotográfica, Lisboa, 1955. A sua “fotografia preferida” era a preto e branco, tal como continuou a ser a preto e branco aquela que considerava ser a sua prática “artística” e as imagens com as quais se apresentava a concursos amadores e a exposições salonistas. A cor, pelo contrário, marcou a sua fotografia mais privada — muitos milhares de diapositivos —, próxima do seu mundo e da sua experiência individual. A exposição, no Arquivo Municipal-Fotográfico, revela esta dupla vertente do seu trabalho — na sala principal, à entrada, estão as belas cópias digitais a cores feitas a partir dos diapositivos Kodachrome, quase todas agregadas pelo tema da “viagem” e realizadas entre 1947 e os inícios da década de 1970. Lá em cima, no primeiro andar, o preto e branco caracteriza o olhar mais distante da fotógrafa. Não as suas experiências pessoais, mas os temas, tão repetidos ao longo do século XX, de um Portugal visual (e pobre e rural), onde treinava a sua lente “artística”. Helena Corrêa de Barros, que dedicou parte da sua vida a organizar acções de beneficência, fotografou até ao fim. A câmara estava sempre ao pescoço, à espera do “momento único”, que juntasse a lente ao olho.

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Helena Corrêa de Barros em Atenas, Grécia DR

Turismo e fotografia 

Helena Corrêa de Barros fotografa em kodachrome os espaços onde se move. Não vai lá de propósito para os fotografar. Está lá e fotografa-os. Como anuncia o título desta exposição, Fotografia, a minha viagem preferida, fotografia e viagem ou viagem e fotografia foram movimentos indissociáveis, quer no caso de Corrêa de Barros, quer em geral, quando pensamos na história da fotografia desde a sua invenção em 1839. Com a excepção de uma viagem a Angola, onde se combina o trabalho do marido com a visita a amigos colonos, estas são viagens de lazer, partilhadas com família e amigos, em excursão, em grupo, confortáveis e seguras. São quase todas fotografias felizes. Nos temas como nas cores.

They give us those nice bright colors

São imagens de paisagens, vistas e monumentos. Mas também de pessoas. Pessoas conhecidas (algumas, mulheres e homens, com as suas respectivas câmaras fotográficas penduradas ao pescoço) ou pessoas desconhecidas que, como ela, Helena, também foram à montanha, ao hotel, ao lago, à exposição universal, como a de Bruxelas, em 1958, ou a de Osaka, em 1970. Por vezes, esses outros turistas surgem de costas para nós, porque estão a olhar para o lugar para onde se dirige também a lente da fotógrafa. Ou estão a observar atentos para o guia turístico que lhes dá explicações.

Os pontos de vista das fotografias de Helena Corrêa de Barros podem ser muito singulares. Escolhe com frequência ângulos radicais e modernos. Há picados, contrapicados e vistas de pássaro, onde aparecem barcos de pescador (captados da varanda de um hotel), uma mulher de touca a entrar na piscina (trata-se de uma das filhas, mas as próprias brincam entre elas, por não terem a certeza qual das três é que foi fotografada na piscina da casa da Rua de S. Bernardo, em 1950). A fotógrafa não está apenas interessada na imagem que mimetiza o postal turístico. Está também atenta à atmosfera, ao ambiente, às pessoas que estão, como ela, a usufruir da viagem ou do passeio. Ou mesmo às pessoas que não sabem que estão a ser fotografadas. A fotografia faz parte do seu ócio. O seu olhar de viajante é inseparável do seu olhar de fotógrafa. Mais perto: Óbidos, Setúbal, Sagres, Monsanto, Nazaré. Mais longe: Lugano, Cortina, Monte Carlo, Roma, Veneza, Cannes, Florença, e Londres, Granada, Biarritz. Ou ainda mais longe: Angola, Camboja, Japão, Manila, Brasil, Banguecoque, Macau, Singapura.

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Piscina, R. de S. Bernardo, 1950; cruzeiro às Canárias, Madeira, 1962 Helena Corrêa de Barros

I love to take a photograph

As viagens implicam movimento, sair de casa, transgredir a distância geográfica. E os meios de transporte tal como os edifícios de partidas e chegadas, tornam-se eles próprios, presença habitual nas suas imagens. À porta do aeroporto, à espera com as malas, ao pé dos autocarros de excursão de onde saíam ou iam entrar. Fotografias de automóveis, sobretudo os automóveis avariados como acontece no seu álbum de Angola, mas também os skis ou as bicicletas de criança no jardim de casa.

They give us the greens of summers

E sobretudo os barcos (ela própria tinha um, era também pescadora), aqueles onde a fotógrafa está com os amigos, em passeios de lazer. Além dos espaços associados às práticas de desportos aquáticos, estão as caçadas, os campos de golfe ou as montanhas suíças onde se faz esqui (uma prática pouco comum no Portugal da época), lugares vividos numa sociabilidade partilhada entre gente “conhecida” ou “semelhante”. As crianças (os seus quatro filhos), a família e os amigos são as pessoas com nome e identidade individual que habitam este mundo a cores. Uma das filhas, Teresa Cardoso de Menezes, conta ao P2 como a mãe lhes pedia muitas vezes para posar, e gostava especialmente que projetassem sombras, quer fosse nas paredes da casa ou durante brincadeiras na praia.

“Há mar e mar”

A frase, publicitária, do poeta Alexandre O’Neill pode ser aqui usada para pensar no lugar do “mar” na fotografia. O mar é um tema dominante em Helena Corrêa de Barros tal como é um tema dominante da história da fotografia portuguesa do século XX, quer em imagens celebrativas e nacionalistas, quer numa fotografia documental, mais ou menos denunciadora das frágeis condições de vida das gentes que trabalhavam no mar. Por um lado, o mar como lugar de partidas e chegadas: os navios a largarem amarras cheios de emigrantes para o Brasil no início do século; a partida para as colónias dos soldados durante a guerra na década de 1960; a trazerem os contentores com os despojos materiais e pessoais do império colonial em meados de 1970. Por outro lado, o mar como lugar de trabalho, na pesca dos homens ou na venda do peixe e tratamento das redes, das mulheres, ao longo de todo o século.

A preto e branco, Helena fotografa inúmeras “fainas”, “redes”, “embarcações de pesca”, “barcos na Nazaré”, “paisagens marítimas” ou “fluviais”, “pesca do atum”, “docas”, “pescadores”, “praias” e “portos”.

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Passeio no Sta. Marta, 1964-66 Helena Corrêa de Barros

Mas a este mar em escala de cinzentos, tão presente noutros fotógrafos do século XX, a fotógrafa acrescenta um mar ou um rio coloridos, nos vários tons de azul, que a película kodachrome permitia revelar. É a água dos passeios e das férias. Do Mediterrâneo ao Arno. Do Reno aos lagos suíços. Dos veleiros dos amigos e dos cruzeiros. Das regatas em Cascais ou da praia Grande.

Azul, mas de um azul mais claro, é a água da piscina, pequenos mares construídos e controláveis, sinal de distinção e privilégio numa época em que a democratização da piscina, como da praia, era ainda longínqua.

Makes you think all the world’s a sunny day

O seu mar é também o dos cenários das grandes celebrações na capital da nação, como Helena testemunha numa das suas raras imagens de acontecimentos públicos nacionais, com os navios no Tejo a receber o Presidente da República Américo Tomás, no seu regresso de Angola e de S. Tomé (na capa deste P2), em 1963, ou a inauguração da ponte “Salazar” em 1966, hoje a “25 de Abril”. A profissão do marido, Eduardo Costa Lobo Corrêa de Barros, ligado a vários negócios que iam dos seguros aos materiais para obras públicas, explica esta como outras imagens de grandes construções, fotografadas por Helena, em Lisboa ou em Luanda.

Portugal a cores vs. Portugal a preto e branco

No labor imagético de Corrêa de Barros poderíamos afirmar que a cor ou a ausência dela servem para distinguir diferentes tipos de fotografia: a cores, um “Portugal próximo”, a sua sociabilidade e experiência de vida, tal como as viagens ao estrangeiro partilhadas com família e amigos; e a preto e branco, um “Portugal distante”, das pessoas e paisagens que nada tinham a ver com a sua esfera social ou o seu quotidiano, mas que por outro lado se inseriam nas tipologias fotográficas de uma “identidade visual portuguesa” com pretensões artísticas, banalizadas desde os anos 1940 em livros fotográficos, exposições, ou guias de viagem.

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Fotógrafos amadores do Foto-Clube 6x6 em digressão fotográfica à Nazaré Helena Corrêa de Barros

É a preto e branco que surge o “povo”, as pessoas que se fotografam sem se conhecerem. Helena era uma meticulosa arquivista do seu próprio espólio — cada imagem com o seu título e a sua data, o seu espaço e o seu tempo — e o arquivo público preservou as suas palavras, quer nas legendas da exposição, quer na classificação do site onde podemos ver as fotografias digitalizadas. A “lavra da terra”, os “seareiros”, o “campino”, a “pastora”, as “lavadeiras de Águeda”, os “pescadores da Nazaré”, as pessoas na “procissão das festas do Tabuleiro de Tomar” — o Portugal a preto e branco de Helena Corrêa de Barros é, muitas vezes, o Portugal rural, pobre e analfabeto, o do trabalho físico, protagonista de tantos projectos fotográficos do século XX.

Everything looks worse in black and white

Os trabalhos dos pobres em Portugal, como o dos negros, na Angola colonial que Helena Corrêa de Barros visita em 1950, aparecem sobretudo a preto e branco, enquanto a sua lente colorida, focada na sua esfera mais próxima, centra-se mais no lazer do que o trabalho. Talvez seja apenas no álbum de Angola, a preto e branco e mais narrativo, que se veja, em simultâneo, os dois tipos de trabalho, onde a distinção colonial corresponde à desigualdade racial: o trabalho dos homens brancos, administradores e engenheiros que concebem e supervisionam o trabalho braçal das pessoas colonizadas e negras, a construírem edifícios ou obras públicas, sob regimes vários de coerção.

Os pobres portugueses (ou os colonizados) parecem ter sido mais fotografados do que os ricos. Não por eles próprios, mas por outros. As máquinas fotográficas nacionais e estrangeiras concentraram-se mais no “povo”, sem nome e sem quase nada.
O Portugal a cores da segunda metade do século XX captado por Helena Corrêa de Barros é o país de uma elite portuguesa, que combinava um à-vontade económico com a serenidade de não se opor ao regime político salazarista, um país que “vemos” menos porque está ainda guardado, e invisibilizado, nos álbuns de família, ou nas caixas de plástico com slides, no interior das casas das pessoas que as protagonizaram. Fotografaram-se entre si e para si. Não foram feitas para serem vistas para lá do seu entorno.

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Praia Grande, 1964-66 Helena Corrêa de Barros

É também aqui que está o lado mais interessante e original do trabalho desta fotógrafa que, conta Teresa Cardoso de Menezes, era “muito reservada” e pouco dada a tentar influenciar com os seus interesses os que a rodeavam. “A minha mãe não falava muito das suas actividades connosco. Entre tudo o que fez, não tentou passar-nos nada”, conta Teresa, enquanto remexe numa caixa com fotografias de família, onde muito raramente a mãe aparece com a sua câmara. Com o trabalho que foi feito para dar corpo à exposição, que pode ser vista até 23 de Fevereiro de 2019, a filha reconhece agora que a mãe “era uma pessoa à frente do tempo”. “Uma coisa com que ficava fascinada era a maneira ágil com que ela trocava de lentes da câmara, consoante a luz e o que pretendia fotografar.”

Exposições, concursos e salões

Embora a exposição, e bem, tenha optado por destacar as fotografias a cores em kodachrome, Helena Corrêa de Barros também fotografou muito a preto e branco (grande parte do espólio está disponível online no site do Arquivo). E fê-lo sobretudo no seu trabalho mais público, aquele que tinha ambições artísticas.

Na década de 1950, tal como analisa Luís Pavão no catálogo da exposição, Helena Corrêa de Barros pertenceu a um clube de fotógrafos amadores — o Foto-Clube 6x6 — e participou em várias exposições, nacionais e internacionais. O 6x6 foi fundado por António Rosa Casaco — antigo inspector da PIDE envolvido no assassinato de Humberto Delgado, que tinha a fotografia como um dos seus principais passatempos — e por outros fotógrafos salonistas, como Harrington Sena, Silva Araújo, Fernando Vicente e Nunes de Almeida.

Como contou ao P2 a sua filha Teresa, Helena começou por revelar as suas fotografias a preto e branco em casa e só mais tarde passou a fazê-lo no laboratório colectivo do Foto-Clube 6x6, também porque a comunidade de fotógrafos amadores que ali se juntava a ajudava no processo de selecção do que devia ou não revelar ou enviar a concursos. Em 1954, por exemplo, o seu nome aparece num salon em França — a única mulher na representação portuguesa de 15 participantes, enquanto em 1955, no 18.º Salão Internacional de Arte Fotográfica, voltou a ser a única mulher da secção portuguesa, com a sua “Debandada”, fotografia que apresentou em vários concursos, e que está exposta no primeiro andar do Arquivo Municipal Fotográfico, na Rua da Palma.

Ainda em 1955, na Revista Fotografia, Eduardo Harrington Sena assinou um texto onde registou os participantes portugueses em “Salões, exposições e concursos de arte fotográfica”. Referiu a 1.ª Exibição Internacional de fotografias de Foto-Clubes que tivera lugar em Viena e onde Portugal estivera representado pelos “amadores” do lisboeta Foto-Clube 6x6. Ao lado do nome de Corrêa de Barros surge o de uma outra mulher, a Marquesa de Fronteira, Maria Margarida Canavarro de Menezes Fernandes Costa (1915-2004), que chegou a montar um laboratório fotográfico em sua casa, o Palácio Fronteira, em Benfica. Eram amigas e também fotografaram juntas.

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Debandada, 1950 Helena Corrêa de Barros

No Boletim do Foto-Clube 6x6, de Setembro/Outubro de 1956, Helena Corrêa de Barros aparece como sendo a única mulher que participou em exposições de fotografia nesse ano. Um ano depois, em 1957, o mesmo boletim apresenta os nomes de todos os membros que tinham sido seleccionados para participar em exposições: de Montpellier, em França, a Santo André, no Brasil; em S. Bernardino, na Califórnia como em São Paulo; na Malaia como em Moçambique. Entre todos os nomes, apenas uma mulher, o de Helena Corrêa de Barros, com três fotografias seleccionadas. São muito poucos os outros nomes femininos que encontramos durante esta década. Em 1951, a exposição do Grupo Câmara apresenta duas fotografias de D. Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho, de Coimbra, e de D. Anita Alves da Silva, do Fundão. Enquanto em 1953, num Salão Nacional de Fotografia em Castelo Branco surgem dois nomes: Violette Quenolle, de Lisboa, e Maria Manuela Domingos Ribeiro, de Castelo Branco.

Helena é também a única mulher na secção de fotografia a preto e branco (uma em seis fotógrafos) da exposição internacional de fotografia organizada pela CUF em 1957, com uma imagem “sem título”. Algo que distinguia esta exposição da CUF, da maior parte das outras, era o facto de ter uma grande secção de diapositivos a cores. Mas o nome de Helena Corrêa de Barros, que tanto fotografava a cores, não vem referido e a única mulher presente é Letícia Maria José, com uma “Maré Vazia”. Porque é que Corrêa de Barros apenas concorre aos salões com fotografias a preto e branco? A sua decisão corresponde à distinção dominante de associar o preto e branco às possibilidades estéticas e não utilitárias da fotografia, e de recorrer à cor e ao diapositivo para a fotografia mais doméstica e biográfica, onde existe uma clara intenção de criar memórias visuais das experiências e momentos vividos e das pessoas que consigo partilhavam tanto o quotidiano da vida familiar, como os momentos mais excepcionais de passeios ou viagens.

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Embarcação: pormenor. Década de 1950 Helena Corrêa de Barros

A câmara fotográfica como privilégio

Fotografia, a minha viagem preferida, sobre Helena Corrêa de Barros não é a primeira exposição histórica que o Arquivo Municipal de Lisboa dedica à obra fotográfica de uma mulher. Entre 2013 e 2014 teve lugar uma mostra, também acompanhada de catálogo, das fotografias de Ana Maria Holstein Beck (1902-1966), tal como esta, comissariada por Paula Figueiredo Cunca e Luís Pavão [Ana Maria de Sousa e Holstein Beck — fotografia privada 1912-1958 (Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa; Scribe, 2014)]. Como no caso de Helena Corrêa de Barros, também se tratou de uma doação familiar de um espólio que se pode inserir na categoria de “fotografia privada”.

Corrêa de Barros e Holstein Beck não foram mulheres-fotógrafas, no sentido profissional e remunerado do termo, mas sim mulheres que fotografaram. A fronteira entre “privada” ou “amadora”, por um lado, e “profissional”, por outro, deve, no entanto, ser questionada e pouco revela em relação à “qualidade” da obra. A “qualidade”, aliás, é um conceito subjectivo que historicamente serviu para afastar as mulheres dos cânones do reconhecimento, onde o mérito tendeu a ser sinónimo de masculinidade. Mesmo assim, é relevante pensar que, noutros lugares do mundo durante este período, já havia muitas mulheres a dedicarem-se à fotografia enquanto profissão remunerada, em estúdio privado ou em comissões governamentais. É o caso da fotógrafa profissional Dorothea Lange (1895-1966), cujo trabalho pode ser visto actualmente na exposição Politics of Seeing, agora em Paris no Jeu de Paume (até 27 de Janeiro 2019).

Quase contemporâneas, Corrêa de Barros e Holstein Beck (tal como a Marquesa de Fronteira) foram mulheres de um meio social privilegiado, com acesso económico à melhor tecnologia fotográfica e com possibilidade de dedicarem parte do seu tempo às diversas formas de lazer disponíveis às mulheres de uma reduzida elite portuguesa, cosmopolita, viajada e culta. Como temas comuns a ambas, o seu entorno afectivo, familiar e de amigos, os eventos sociais, os desportos e as viagens. Em comum também o facto de as origens nacionais familiares serem tanto prósperas como híbridas: no caso de Ana Maria, a aristocracia transnacional, no caso de Helena, as suas origens, maternas como paternas, em famílias judias originárias de Marrocos, quer do lado dos Abecassis e Bensaúde, paternos, quer dos Benoliel Amzalak e Buzaglo, maternos. Mãe e pai, ambos de nacionalidade inglesa, eram activos participantes em comunidades e organizações israelitas, quer nacionais quer internacionais.

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Helena Corrêa de Barros, no meio, de branco, ao lado da marquesa de Fronteira, de lenço, e Nunes de Almeida, à direita DR

A ligação de Helena Corrêa de Barros à Alemanha, deve-se ao facto de ter estudado numa escola Waldorf, em Estugarda, pedagogia ainda hoje progressista, que promove uma educação holística e respeitadora das características individuais. A este cosmopolitismo Corrêa de Barros aliou uma forte participação numa vida social e cívica lisboeta, a esfera onde mulheres dos meios sociais privilegiados podiam trabalhar sem perturbar as convenções sociais que tolhiam os caminhos profissionais femininos. Para angariar fundos para o Centro de Assistência à Maternidade e Infância, fundada pela sua mãe, Sophia Abecassis, Helena demonstrou o seu empreendedorismo e criatividade. O mesmo que demonstrou na construção das suas casas e jardins como no restaurante de “pronto-a-comer” e salão de chá que geriu no fim da vida, o Chef, ponto de encontro dos habitantes do bairro da Lapa.   

Duas mulheres que também fotografavam e se interessavam por fotografia, e que poderão ser pensadas ao lado de outras mulheres oriundas das elites, são as Rainhas Maria Pia de Sabóia (1847-1911), mulher de D. Luis, e D. Amélia de Órleans (1865-1951), mulher de D. Carlos I. A primeira foi tratada por Teresa Mendes Flores, num número especial sobre “Fotografia e Género” na revista Comunicação e Sociedade (eds. Maria da Luz Correia e Carla Cerqueira); e a segunda foi objecto de uma exposição comissariada por Luís Pavão (2015-2016), que teve lugar no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa: Tirée par...a Rainha D. Amélia e a Fotografia.

Entre as suas muitas diferenças, também decorrentes das cronologias distintas das suas vidas (Holstein Beck nasceu antes e viveu menos tempo do que Corrêa de Barros), referiremos duas: em primeiro lugar, Corrêa de Barros, ao contrário de Holstein Beck, demonstrou alguma ambição em sair da esfera meramente privada, ao concorrer a inúmeros concursos e exposições de fotografia, nacionais e internacionais. Em segundo lugar, são distintas as tecnologias fotográficas a que recorreram. Ana Maria Holstein Beck organizou as suas mais de 5900 fotografias a preto e branco em álbuns de família, enquanto Helena Corrêa de Barros privilegiou o muito mais moderno dispositivo da película colorida. Este último, revelado em diapositivo, não era passível de ser visualizado em álbuns (quanto muito via-se à contraluz) continuando a precisar de uma “máquina” e da acção humana para se tornar visível através das então populares “sessões de slides”. Conta Teresa Cardoso de Menezes que pelo menos uma vez por ano, Helena juntava a família para mostrar slides, com luzes apagadas e a sua narrativa oral — a voz como legenda — a contextualizar aquilo que dava a ver ou a identificar familiares, mas nunca a falar do seu mérito enquanto fotógrafa ou explicar como tinha captado esta ou aquela imagem.

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Passeio, Suíça, 1968 Helena Corrêa de Barros

Será possível encontrar uma genealogia de observação de imagens a cores e em movimento desde o século XIX até aos dias de hoje? Da lanterna mágica, aos aparelhos para visualizar estereoscopias, passando pelos diapositivos, e chegando aos modos contemporâneos de olharmos para fotografias, passando-as, com o dedo ou com o rato, no ecrã do telemóvel ou do computador?

Arquivos: do privado para o público

Tão relevante como a produção fotográfica em si, são as histórias dos espólios fotográficos, na sua passagem do espaço privado para o espaço público. Nos casos de Holstein Beck e Corrêa de Barros, os seus descendentes tiveram consciência da sua relevância e tomaram a iniciativa de doar os seus espólios a uma instituição, como o Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico, já com uma tradição consolidada de conservação e restauro, classificação, divulgação e exposição de fotografia, capaz de assegurar a sua unidade e continuidade.

Haverá, ainda, milhares destas fotografias em casas particulares de pessoas que pensam nestas imagens como “memórias familiares” e não “memórias históricas” ou “estéticas”. Mas mais raros serão os conjuntos criados por uma só pessoa, sobretudo por uma só mulher, com a persistência e a solidez de um projeto fotográfico-autobiográfico, como foi o de Helena Corrêa de Barros, mesmo que a própria, não tivesse a consciência do seu valor, e mesmo a sua família, como a própria reconhece, só agora se aperceba da sua real dimensão.

O papel das famílias — na preservação e valorização de espólios escritos, fotográficos ou de objectos — é assim, determinante, e a riqueza dos arquivos públicos depende, em grande parte, das iniciativas de privados. A consciência e cultura das famílias que, hoje, possuem arquivos privados em suas casas, é especialmente relevante para o caso da obra de mulheres. Por razões históricas e já muito estudadas desde a década de 1970, a produção intelectual e criativa das mulheres teve menos oportunidades de ocupar o espaço público — da exposição ou publicação — e, por isso, está ainda em grande parte, preservado (ou esquecido) em casas particulares. As abordagens feministas que vieram analisar os processos que levaram à invisibilização da escrita, pintura, escultura ou fotografia feita por mulheres, têm tido um grande impacto na investigação histórica dos últimos 50 anos, e isto é visível no ensino académico, em publicações e em exposições e museus. Estes novos olhares do presente, sobre a cultura intelectual e material do passado, também tem tido um impacto entre aqueles que têm em casa a “obra” de mães, avós, tias ou bisavós.

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Chegada do Presidente (Américo Tomaz), 1963, Lisboa; Pequenos e Suzla na quinta, Agosto de 1948 Helena Corrêa de Barros

Uma mulher, uma câmara e um país

A prática fotográfica e o percurso biográfico de Helena Corrêa de Barros sugerem diferentes reflexões. Por um lado, a de uma história das tecnologias fotográficas no século XX, do preto e branco à cor, luminosa, possibilitada pela nova película, onde não há um “antes” e um “depois”, mas uma simultaneidade em que se multiplicam as formas de fotografar. Por outro lado, a história da fotografia nas suas tensões entre o amadorismo e a profissionalização, sendo as questões de género centrais às negociações de uma fronteira, onde a fotografia pública e profissional tendia a ser sinónimo de masculino, e a privada e familiar, de feminino. As muitas transgressões as estas expectativas têm vindo à luz nos últimos anos, em investigações e exposições de mulheres fotógrafas.

Como afirmou uma das suas filhas ao P2, Teresa Cardoso de Menezes, a mãe nunca se considerou “uma profissional” e a própria família não tinha consciência do valor do corpus, consistente em quantidade e qualidade, da sua obra. Só após a sua morte é que os próprios filhos se confrontaram com a riqueza da herança criativa deixada pela mãe. Este processo é muito comum, particularmente com a produção intelectual e artística feminina do passado: a própria autora interioriza a sua subalternização, desvalorizando-se. O estigma do amadorismo feminino — podiam “fazer” mas de modo doméstico e não profissional — era inseparável do contexto social, mas afectava também o modo como as próprias mulheres se imaginavam a si próprias.

Parte da produção fotográfica de Helena Corrêa de Barros permite-nos agora fazer uma etnografia de uma elite portuguesa que raramente vemos nos cânones visuais do Portugal do século XX. Não são já as carte-de-visite oitocentistas com que os meios privilegiados se puderam dar a ver, nem os retratos dos políticos (homens) ou das actrizes e cantoras (mulheres) a preto e branco, reproduzidos nos jornais de novecentos. São sim os espaços e as experiências de uma Lisboa que não estava vestida de preto, que não trabalhava com as mãos (porque podia pagar a quem o fizesse), que não era analfabeta (mesmo que nem sempre fosse culta ou intelectual), que vivia em casas grandes e dignas e que tinha segundas casas, na praia ou no campo, que ia ao teatro, à ópera e jantar fora, que praticava golf, ténis e esqui, dentro e fora do país. Era um Portugal que não emigrava, mas viajava no estrangeiro. Que podia aquecer as casas apesar da austeridade dominante. Que usava o mar para nadar ou velejar e não para trabalhar. Que educava as raparigas para casar, não as encorajava a estudar mais do que o essencial ou a ter uma profissão remunerada (o “parece mal” afectava especialmente os percursos das mulheres). Que convivia pacificamente com o regime político não democrático, como com as colónias, que na altura se chamavam “províncias ultramarinas”. Que no 25 de Abril, e por razões políticas, económicas ou pessoais, ou numa mistura de vários motivos, deixou Portugal, para ir viver para Madrid, para a Suíça ou o Brasil.

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Helena Corrêa de Barros DR

Mas mesmo no interior deste Portugal privilegiado da década de 1940 ou 1960, existem muitas diferenças, e o percurso e família de Helena Corrêa de Barros também o demonstra. Possuía uma distinção social e económica, mas, ao mesmo tempo, era “estrangeira” e cosmopolita, e isso terá contribuído para uma liberdade acrescida. Entre outras escolhas, também pôde usar uma câmara fotográfica. E é nessa capacidade de estar por dentro, sem perder a capacidade de observar e reflectir sobre a sua própria experiência, que ela se distingue. Através da sua lente, próxima e distante, podemos diversificar e enriquecer as “imagens do país” a preto e branco, que têm dominado a visualidade do Portugal do século XX. com Sérgio B. Gomes

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