Curadoria territorial e arquitetura de interiores
Agora que se volta a falar de coesão territorial, valorização do interior e cooperação transfronteiriça, a observação direta diz-me que o problema nunca se resolverá com “mais uma lista de medidas”, mas, antes, com a criação de uma adequada curadoria territorial.
No anúncio publicitário de um workshop na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro em Vila Real sobre “O enoturismo digital” pode ler-se o seguinte naco de prosa: “Uma viagem pelos socalcos do marketing, visitando a adega da comunicação digital e terminando com uma prova de sites.”
De um lado, os socalcos, a adega, as provas, os recursos tangíveis, de outro, o marketing, a comunicação digital, os sites, isto é, os recursos intangíveis. Na mesma cadeia de valor, a produção vitivinícola, a conservação pelos socalcos, o recreio e o lazer da visitação local e regional, a cultura da vinha e do vinho, a tecnologia digital, a produção de conteúdos e a comunicação simbólica. Se quisermos, o enoturismo como uma porta de entrada para um mundo de experiências criativas através das tecnologias de informação e comunicação, por exemplo, através de aplicações móveis que nos oferecem uma pré-visualização dos terroirs da nossa imaginação. Uma verdadeira arquitetura de interiores em construção.
Agora que se volta a falar de coesão territorial, valorização do interior e cooperação transfronteiriça, a observação direta diz-me que o problema nunca se resolverá com “mais uma lista de medidas”, mas, antes, com a criação de uma adequada curadoria territorial.
Em busca de sentido e significado: os sinais distintivos de um território
Os territórios são construções longas e delicadas que atravessam muitas vicissitudes e contrariedades. O seu capital social é fruto dessa história vivida e dessa sociabilidade histórica muito particular e é dessa experiência histórica concreta, mais ou menos intensa, que se geram, emergem e estruturam os recursos de um território. O universo material e simbólico de uma região contém muitos “signos distintivos territoriais”, muitos deles ocultos, subestimados ou ignorados. Por exemplo, o mosaico agro-silvo-pastoril e paisagístico do montado, os sítios da rede natura 2000 e as áreas de paisagem protegida, a biodiversidade, os endemismos e os serviços ecossistémicos, as fontes e as minas de água, as amenidades e os percursos de natureza, as denominações de origem protegida (DOP) e os nichos de mercado, as apelações de património imaterial da UNESCO, o estatuto de “reserva da biosfera”, as medidas de mitigação e reabilitação no quadro das alterações climáticas, os campos e as estações arqueológicas, os monumentos, as vistas panorâmicas, a cultura tradicional, as celebrações, a literatura oral e as paisagens literárias, são exemplos de “signos distintivos territoriais, SDT” que podem contribuir decisivamente para a construção da iconografia de uma região, a sua imagem de marca impressiva territorial.
Os signos distintivos são, portanto, “informação bruta” acerca de um território e, ao mesmo tempo, ângulos diferentes de abordagem da história de vida desse território. O grande desafio que se segue, é, para lá da nomenclatura estatística (NUTS) ou da divisão administrativa, a descoberta e a promoção de uma geografia desejada, a busca de sentido e significado, que nos devolvam o território como “paisagem orgânica global”, como “território-ser vivo”, capaz de inteligência coletiva e, portanto, de uma direção e linha de rumo. Neste sentido, também, será muito interessante observar o que irá passar-se com os espaços rurais mais remotos, que nós julgávamos imunes a este movimento geral de contaminação tecnológica e digital e, doravante, imersos num caldo cosmopolita de “turistificação e culturalização” que, hoje em dia, o universo digital e as redes sociais disseminam à velocidade da luz.
É aqui, justamente, que pode emergir o lado mágico da economia digital e das artes digitais em geral e o papel transversal da curadoria territorial. Com efeito, algumas realidades tangíveis e materiais, como são as atividades agrícolas, podem ser acolhidas e transformadas em ecossistemas inteligentes de aprendizagem, conhecimento e recreação, e produzir outros tantos recursos intangíveis com os quais irão compor uma “realidade aumentada” mais complexa e multidimensional.
Nessa busca de sentido e significado, mais ou menos revelados nos signos distintivos do território-desejado, o ator-rede que iremos constituir será uma espécie de curador do território, o protagonista principal desta inteligência coletiva territorial e o arquiteto de uma identidade em construção a partir dos seus sinais mais emblemáticos e significativos. Neste processo cognitivo do território-rede, o ator-rede é um ator inteligente e um curador que não confundirá plantações de árvores com floresta, engenharia florestal com silvicultura, culturas transgénicas com agricultura, animais clonados com pecuária, operações fundiárias com engenharia biofísica, arranjismo verde com arquitetura paisagística, esverdeamento de culturas com prestação de serviços ambientais. De resto, este elenco de situações é, só por si, um grande programa de investigação-ação-extensão a realizar pelas futuras “plataformas colaborativas” que são, já hoje, o instrumento fundamental de smartificação do território e da sua futura economia de rede e visitação. As empresas start-ups e outros empreendimentos que nascerão no seio dessas plataformas tecnológicas serão, neste novo caldo de cultura, o agente principal das redes digitais distribuídas e aqui a imaginação não tem limites.
Territórios-rede, curadoria territorial e arquitetura de interiores
Com mais recursos à nossa disposição, materiais e imateriais, trata-se, agora, de “montar um estaleiro” de curadoria e arquitetura, se quisermos, um projeto de design e arquitetura de interiores, em direção a um objetivo mais ambicioso, que eu designo como os “territórios-rede da 2ª ruralidade”, uma malha fina, capilar e delicada de pequenos empreendimentos muito bem articulados entre si. No fundo, a curadoria territorial visa criar uma malha de interligações entre territórios-rede distintos, mas complementares, como a seguir se mostrará.
Os exemplos que se seguem, são outras tantas configurações sociais de territórios-rede onde a curadoria e a arquitetura de interiores são fundamentais. Em cada caso, é essencial nomear um grupo de missão, criar um princípio de identificação, suscitar para eles a nossa atenção e curiosidade, aumentar a sua intensidade-rede e sociabilidade, as suas economias de rede e aglomeração, enfim, relevar os seus sinais territoriais mais distintivos e a partir deles construir novos territórios simbólicos e novas variações materiais. Sem eles, e sem a malha que eles constituem, não haverá uma verdadeira interligação de territórios-rede e, portanto, uma genuína valorização do interior.
1) A construção de um “sistema alimentar local (SAL)”
Três grandes objetivos – a descarbonização, o abastecimento local e a economia circular – podem levar uma rede de vilas e cidades, em articulação com uma escola superior agrária, por exemplo, a conceber um “sistema alimentar local” (SAL); por via de uma rede de circuitos curtos, o ator-rede organiza a produção e o comércio local de produtos alimentares de proximidade e, ao mesmo tempo, aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes da estrutura ecológica municipal.
2) A construção de uma “denominação de origem protegida (DOP)”
Um parque natural, um sítio da reserva natura 2000 ou uma amenidade paisagística podem constituir um excelente exemplo de território-rede e em conjunto com outros atores locais e regionais – o clube de produtores do parque e a associação ambientalista local, as aldeias que integram o parque, a associação de desenvolvimento local e a escola politécnica ou universidade mais próxima – propõem-se modernizar o sistema produtivo do parque, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma denominação de origem protegida (DOP) ou indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo.
3) A construção ou requalificação de um “mercado ou segmento de nicho”
No quadro da sociedade sénior e do turismo de saúde e bem-estar, por exemplo, é possível conceber e criar uma pequena economia de aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais junto de um empreendimento turístico ou de uma zona termal, em associação com uma comunidade piscatória, uma câmara municipal, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior politécnica; em conjunto, propõem-se requalificar vários empreendimentos turísticos e aldeamentos adjacentes e criar um nicho de mercado, por exemplo, um novo espaço de qualidade para o “turismo acessível, terapêutico e recreativo”.
4) A construção de um “complexo agroturístico com campo de férias e aventura”
Na área de influência de um lago, de uma albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, é possível conceber e criar uma pequena economia de aglomeração de atividades turísticas, recreativas, desportivas e terapêuticas em redor de um complexo agroturístico com campo de férias e aventura; os operadores propõem-se desenhar e lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclui a participação dos visitantes nas práticas agrorurais tradicionais e a colaboração de voluntários em campos de férias, trabalho e aventura; as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, mas, também, as aldeias de xisto ou as aldeias históricas, podem ser a retaguarda ideal para este território-rede.
5) A construção de uma “marca coletiva” para o lançamento de uma gama de produtos de uma área agrícola recém-constituída ou reabilitada
Uma sub-região que foi objeto de investimentos públicos significativos, por exemplo na área dos regadios, uma união de cooperativas ou uma associação de agricultores, um clube de produtores em associação com uma rede de distribuição alimentar ou rede de supermercados, podem associar-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de modernização agrária e comercial com o objetivo de obter uma “marca branca” ou uma marca coletiva que seja representativa daquele território-rede.
6) A construção de um “sistema ou mosaico agroflorestal (SAF)”
Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de paisagem protegida, as empresas agroflorestais, uma escola superior agrária, as comunidades humanas implicadas, associam-se para constituir um “sistema agroflorestal (SAF)” ou mosaico agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta.
7) Criação ou reforço de um “centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística”
Em áreas ardidas, por exemplo, um centro de investigação na área da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agroflorestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-ação tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ecossistémicos relevantes e a valorização comercial destes ativos biodiversos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos.
8) A construção de um “parque biológico e ambiental em zona de montanha”
As associações de desenvolvimento local em cooperação com uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissional agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias serranas, os operadores de turismo de natureza e de aldeia, propõem-se criar uma espécie de “santuário, amenidade ou ecossistema exemplar” que seja um local de visitação e recreio mas, também, de aprendizagem das técnicas de engenharia biofísica, ecologia da paisagem e reabilitação de habitats; para além disso, propõem-se lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas e de montanha, em especial a arquitetura funcional associada à bioconstrução e à bioclimatização, bem como criar um cabaz de “produtos do parque” que seja a sua imagem de marca.
9) Um “Parque Agrícola Intermunicipal” com objetivos de inclusão social
No campo da ação social, um projeto intermunicipal, associativo ou comunitário, com base no voluntariado que junte, por exemplo, as instituições particulares de solidariedade social (IPSS), o instituto de emprego e formação profissional (IEFP), uma escola superior agrária, tendo em vista a reinserção social em sentido amplo, a formação profissional e a realização de contratos de “institutional food” para abastecimento de escolas, prisões, hospitais, quartéis, lares; no campo da ação pedagógica, recreativa e terapêutica, o parque pode funcionar como uma quinta pedagógica e terapêutica dirigido aos grupos mais vulneráveis da população com necessidades especiais, que junte as IPSS, os serviços hospitalares, a universidade, as ordens profissionais e os centros de investigação, tendo em vista a provisão de serviços médicos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos, mas, também, ambientais e ecossistémicos, que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida dos grupos mais sensíveis de população.
Curadoria territorial e networking das instituições de ensino superior
Em todos os exemplos referidos, o propósito é sempre o mesmo: uma ação coletiva inovadora, um grupo de missão e um ator-rede inteligente (uma curadoria), a valorização de recursos em risco e expectantes, a formação de uma cadeia de valor que seja, enfim, a imagem de marca do território. Uma comissão promotora pode ajudar nessa tarefa, para criar um princípio de identificação e procurar os sinais mais distintivos, indagar se se trata de um território-desejado, com as condições mínimas para ser mobilizado.
Todos os territórios-rede que referimos estão obrigados a aumentar a sua intensidade-rede e grau de sociabilidade. No rural tardio português, e por mais paradoxal que tal possa parecer, a melhor solução para as zonas rurais desfavorecidos é a sua delimitação territorial por via de redes de pequenas e médias vilas e cidades do interior. Este policentrismo da rede põe em contato não apenas as diversas zonas empresariais locais, mas, também, as estruturas ecológicas municipais e os corredores verdes respetivos e permite um planeamento mais eficaz de novas “infraestruturas, utilities comuns e pequenas economias de aglomeração”. Desta forma, teremos mais cidade no campo e mais campo na cidade. Por outro lado, a digitalização do território, utilizando várias tecnologias de localização geográfica, permite-nos acrescentar “realidade aumentada e virtual” ao território existente e alargar, por essa via, a simbologia dos sinais distintivos territoriais que estão na base de uma “geografia desejada”.
Neste sentido, o segredo de uma boa curadoria territorial é a interligação racional entre estes vários territórios-rede no quadro de uma cadeia de valor de programação territorial que tem a sua origem no programa operacional da NUTS II.
O segredo de uma boa curadoria territorial é, ainda, o especial networking das instituições de ensino superior que estão particularmente vocacionadas para poderem funcionar como instituições-plataforma de excelência: podem funcionar em canal aberto com a multidão, podem funcionar como uma placa giratória de problemas, projetos e colaboradores, podem funcionar em múltiplas formas e formatos de crowd sourcing e crowd funding, podem converter-se em “univercidade”, isto é, fundir-se cada vez mais com a cidade e os seus problemas, sobretudo, numa ótica crescente de smart city. são cada vez mais “pluriversidade”, isto é, não há áreas de trabalho estranhas ou exteriores à universidade-plataforma na exata medida em que a universidade se alimenta desse banco de problemas que é a pluridiversidade de situações e oportunidades.
Curadoria territorial e networking de interiores, eis duas novas missões para a universidade que, para o efeito, deverá encontrar um ponto de equilíbrio interno, orgânico e funcional, de acordo com o princípio da agilidade organizacional. Quer dizer, doravante, a universidade/politécnico não só constitui a sua própria plataforma de ensino-investigação-extensão como se institui em meta-plataforma da sua região, estabelecendo, se quisermos, uma espécie de Big Data Regional para o seu território.
Notas Finais
A ideia-base da “curadoria de interiores” precisa tanto de inteligência racional como de inteligência emocional. No primeiro caso, para subir na cadeia de valor da programação territorial, no segundo, para buscar uma “geografia desejada” inspirada nos sinais distintivos territoriais, para lá das nomenclaturas estatísticas que hoje dividem e confundem o país. E para subir na cadeia de valor da programação territorial, as interligações dos territórios-rede só serão bem-sucedidas se forem respeitadas certas condições:
- Em primeiro lugar, é necessário existir um pivot regional que tenha centralidade e racionalidade suficientes, de tal modo que o foco da política seja colocado no “regime das CCDR”, intensificando e melhorando a sua “coordenação e desenvolvimento” territorial e regional.
- Em segundo lugar, deve discutir-se se o nível NUTS III/CIM (sub-regiões e comunidades intermunicipais) é um nível de pertinência adequado para a gestão integrada dos instrumentos de política do território e para a descentralização das competências respetivas; em alternativa, pode discutir-se se o distrito tem ainda alguma pertinência para levar a cabo essa gestão do território (ver PÚBLICO, cidades distritais inteligentes, 7 de março 2018).
- Em terceiro lugar, deve discutir-se, no novo contexto territorial, se as estratégias de desenvolvimento dos Grupos de Ação Local (GAL), traduzidas em programas de desenvolvimento local de base comunitária (DLBC) mantêm toda a sua pertinência e aderência ao território, pelo menos no atual formato.
- Em quarto lugar, o modelo ministerial dos “silos setoriais” despejando medidas avulsas para cima dos territórios está esgotado; os territórios precisam de inteligência coletiva, emocional e racional, e da criatividade dos cidadãos por meio de plataformas de inovação participativa e colaborativa.
- Em quinto lugar, os territórios locais e regionais correm o sério risco de ser capturados por algoritmos, servidores e templates atuando à distância e praticamente invisíveis; este facto é um alerta e deve ser usado para reforçar a representação política territorial, designadamente através de um grande programa de descentralização político-administrativa onde se incluirá a curadoria territorial.
- Finalmente, a inovação territorial não pode ser reduzida à informática das plataformas; é necessária uma outra cultura de ordenamento com relevo para as redes de vilas e cidades, em formatos socioinstitucionais inovadores como é o caso da curadoria dos territórios-rede; de resto, a economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, feiras e festivais, é necessário que esses eventos sejam integrados em “atos orgânicos” de estruturação longa da economia local e regional e só a curadoria territorial está à altura desse grande desafio. Veja-se o exemplo dos “eventos de Óbidos”.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico