Lobo Antunes, o maestro galanteador — ou a importância das pernas num mundo de intelectuais muy aburridos
O autor português está divertido na Feira do Livro de Guadalajara, onde há dez anos lhe deram o Prémio Juan Rulfo e continuam a tratá-lo por mestre. Ali deixou um recado para Donald Trump ("Ele que vá à merda") e elogios rasgados à "nobre" cultura mexicana.
António Lobo Antunes está de regresso à Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, onde recebeu em 2008 o Prémio Juan Rulfo. Há dez anos, recebeu uma chamada e do outro lado alguém lhe disse que tinha recebido um prémio no México. “Era uma voz de mulher e eu perguntei-lhe: ‘Quanto?’ Do outro lado da linha ouvi que se riam, e a senhora disse-me que se tratava de uma conferência de imprensa. Eu não sabia que estava a falar para muitas pessoas”, contou na manhã de segunda-feira em Guadalajara (final da tarde em Portugal), num encontro com jornalistas, o escritor português que está na FIL a convite da própria feira mas também integrado na comitiva de Portugal, o país convidado, em cujo pavilhão será esta terça-feira entrevistado pelo académico colombiano (e pessoano) Jerónimo Pizarro.
Horas depois, num apinhado auditório Juan Rulfo — onde foi necessário entrar meia hora antes de a sessão começar para garantir lugar, e que acabou por ter um letreiro a dizer “lotado” —, sentado ao lado da escritora e jornalista colombiana Laura Restrepo, que lhe ia tentando fazer perguntas mas não o interrompia, Lobo Antunes contou a mesma história, mas arranjou um final diferente.
"Acho que só me pagaram agora, quando puseram a Laura [Restrepo] aqui comigo.” Palmas e gargalhadas na sala. “Pagaram-me com muito atraso. Mas perdoo. É para mim um grande prazer estar com uma mulher que admiro muito e é uma das grandes figuras da literatura em qualquer que seja a língua”, respondeu à autora de Demasiados Heróis, que o tinha apresentado como um grande escritor da "literatura lusa”. Mas toda a conversa entre os dois foi assim, com Lobo Antunes a galanteá-la. Ela a dizer que ele assim a “deixava tímida”, ele a responder “que bom”. A sala a rir-se às gargalhadas com as histórias que Lobo Antunes já contou variadíssimas vezes, como a do seu avô que achava que a literatura era para mulheres e maricas e que um dia lhe perguntou se o era, quando ele não sabia ainda o significado da palavra. Mas também com o diálogo entre os dois: “E tu Laura, como o fazes?”, perguntou a determinada altura o português. “Não vou cair na tua armadilha", respondeu-lhe a colombiana. Ele: “Assim é muito fácil, fazes-me perguntas mas não contas como o fazes." Ela: "Não me perdoariam que me pusesse a falar de mim tendo-te à minha frente."
Numa plateia com muitos homens, mas maioritariamente feminina, o autor que está a lançar no México Não é Meia-Noite Quem Quer desenvolveu uma teoria não sobre a inveja do pénis, mas sobre a inveja dos homens, por não serem gestantes, e sobre como gerar um livro é a maneira que têm de o substituir. Referiu a “invisível alegria de criar” de John Steinbeck, e argumentou que os escritores que não dão à luz, como ele, têm os seus fantasmas. “A luta com as palavras, a luta para fabricar um universo vivo, um livro, é a única chance que temos de ficarmos grávidos. E depois queremos todos ter filhos perfeitos e lindos que nos prolonguem a vida.”
Até ao fim, a conversa rendeu tiradas estupendas como “Se Deus existir, espero que tenha barbas” ou “A nossa vida de adulto não é mais do que a infância fermentada”.
Houve quem ficasse desgostado com o machismo e a misoginia mostrados por Lobo Antunes, na sua versão de escritor galanteador. No livro que Laura Restrepo está a lançar na feira, Los Divinos, há uma epígrafe de Michel Tournier que vem a propósito: “Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto pavorosa: monstro vem de mostrar.”
Talvez por isso, uma leitora mexicana, professora de espanhol, que não o conhecia muito bem, e a quem o monstro se mostrou, ficou a achar que o Lobo era “ameno e inspirador”.
A vingança de Moctezuma
Já de manhã, Lobo Antunes tinha dito que se estava a divertir em Guadalajara e contara que há dez anos, ao chegar, se enamorou dos mexicanos: da delicadeza, da ternura, do castelhano que falam, da maneira como o trataram. “Foi muito bom para mim e ao mesmo tempo muito difícil. Ao terceiro ou quarto dia de um programa com muitas coisas comecei a ter uns sintomas raros. A esvair-me em sangue. O meu editor disse-me: ‘É a vingança de Moctezuma, não há problema, vai passar.' Não era, era um cancro [do cólon] que se manifestou de maneira exuberante aqui. Regressei a Portugal, passei por uma operação, o medo das metástases. Foi muito difícil. Estive internado muito tempo, mas estar aqui foi muito bom para mim, os leitores, a gente que me leu, o carinho que me deram. Emocionou-me muito, por isso sempre quis voltar.”
Embora esteja a lançar um livro no México, escapa a falar sobre as suas obras porque um livro terminado para ele é como um matrimónio que terminou com um divórcio. “Tens de o esquecer, porque se não esqueces não consegues começar outro”, disse o autor, que acedeu ainda assim a partilhar o seu regime intensivo de escrita: das 6h às 13h; das 14h às 20h e mais duas horas depois das 21h30. Todos os dias incluindo sábados e domingos.
Contou que chegou a conhecer o escritor mexicano Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo. “Estive com ele duas vezes. Era o homem mais humilde que conheci. Quando se fala com estas pessoas e elas se esquecem que podes ser um jornalista e não tentam posar de perfil para a eternidade, começam a falar de si mesmas com muita humildade. Escrever é muito difícil, é uma coisa impossível, nunca vais conseguir escrever o que queres. De derrota em derrota, mas podem ser gloriosas derrotas. Não há nenhum segredo, só trabalho.”
A uma pergunta sobre em que situações, além da guerra, se sentiu em mundos irreais, respondeu: “O que é a realidade? Quantas realidades há? Ninguém sabe responder a essa questão. Vives ou sonhas, por exemplo, como Caldéron [de la Barca], que sustentava que a vida não é nada mais do que um sonho. Essas são questões muito difíceis porque não tenho resposta. Só tenho perguntas. Não tenho nenhuma solução para nada.” Mas Lobo Antunes tenta compreender o incompreensível mundo ou a morte. “Estava a recordar-me de Walt Whitman. Havia um velório, havia um morto, pessoas que choravam e uma menina pequena. Ele pegou na criança, levantou-a diante do morto, e mostrou-lhe o rosto do defunto: ‘Compreendes? Eu também não.’”
Da guerra, claro, também falou: “Trabalhei como psiquiatra quando cheguei da guerra. Não vou falar da guerra, foi muito tempo e de uma violência inimaginável. Os hospitais psiquiátricos para onde fui trabalhar eram para mim também incompreensíveis, tão estranhos, tão raros, como a guerra num país como Angola, em África, com um clima que eu não conhecia, gente que eu não conhecia, ruídos que eu não conhecia, cheiros maravilhosos que eu não conhecia, uma beleza incrível que eu não conhecia. No meio disto, a morte, a morte, a morte… a morte. Tinhas sempre a morte diante de ti.”
Na Angola que conheceu enquanto alferes na Guerra Colonial, contou, os militares viviam numa casa onde estavam guardados os caixões, e divertiam-se a dizer: este é para ti, aquele é para ti, apontando uns para os outros.
Mas não é só a morte que é um mistério incompreensível para o escritor de 76 anos. É também a vida, trágica e tão variável, com tanto material, tanta coisa… “Escrever é escutar com mais força. As vozes começam a falar e só tens de traduzir. A escrita, se olhares bem para ela, é um delírio organizado.”
“É muito curioso como em todas as coisas há vida. Esta oferece, constantemente, materiais maravilhosos que a maior parte das vezes um escritor não utiliza. Isso acontece porque todos nos esquecemos de olhar. Como quando um homem dizia a um amigo: ‘Descobri que a minha mulher me está a enganar porque quando eu descia as escadas para ir trabalhar ela dizia-me adeus da janela’. O amigo respondeu-lhe: ‘Ou foste tu que quando partias te esqueceste de olhar para trás?’ A maior parte das vezes somos nós que nos esquecemos de olhar. E escrever é não se esquecer de olhar.”
Somos todos mexicanos
"Quando somos jovens achamos que podemos ganhar ao andar do relógio", diz-lhe uma jornalista mexicana, querendo saber se o “mestre”, como todos por aqui o tratam, tem alguma coisa pendente no tinteiro, se quer escrever algo antes que o relógio pare. “Mas você acha que as pessoas só são jovens até uma certa idade? Para mim é curioso que diga 'quando somos jovens', porque olho para uma mulher que foi jovem e já não o é e tenho medo que se trate de um zombie. Quando voltar a ser uma pessoa de novo, falo consigo.”
A jornalista insistiu para que comentasse os problemas com movimentos migratórios “que países como o México e Portugal enfrentam”. Lobo Antunes respondeu-lhe que em geral não comenta nada. “A vida aqui, agora, para os mexicanos, é muito difícil. Fico furioso que o senhor Trump ponha uma pressão como esta sobre um povo que ele não conhece porque é um ignorante. Um povo com uma cultura como a mexicana, que tem séculos de cultura... aborrece-me que a olhem de cima para baixo. Uma gente que é muito mais nobre e mais importante do que ele, com um passado muito maior do que o seu. Ele que vá à merda. E não comento mais. Se eu fosse mexicano, e creio que somos todos mexicanos, como somos todos franceses ou italianos, mas de uma maneira diferente, a minha atitude seria de desprezo. E se pudesse fazer alguma coisa, claro que faria. Compreendo perfeitamente o que a gente daqui está a fazer. Não compreendo que se trate um povo assim. Enfurece-me.”
Recordou que os mesmos turistas que iam a Portugal pelo sol tratavam os portugueses como se fossem cães. "Eram morenos, não tinham os olhos azuis. A mim tratavam-me bem porque tinha olhos azuis e cabelo claro. Na classe social onde nasci, uma pele muito morena não era tão bem recebida. Ter um rapaz loiro era o mais importante para uma mãe em Portugal, porque tinha uma conotação social. O mundo era dos loiros porque os gringos eram loiros.” Não surpreendentemente, na sessão do final da tarde, ao lado de Restrepo, a versão foi um pouco diferente. Quando era jovem, ser loiro era um impedimento, diziam-lhe “és loiro, não podes dar prazer a uma mulher". "Porque ser loiro significava que não se era latino."
Os "outros" escritores
Uma menina interrompeu então a sessão para colocar na mesa um papelito que dizia que o tempo da conversa estava a terminar. Lobo Antunes aproveitou para dizer que pensou que o papel dizia que o marido de Laura Restrepo o queria matar. “Estou a divertir-me e é isso que importa”, tinha já admitido de manhã. “Em geral não vou a feiras do livro. Fui uma vez, quando comecei, a Frankfurt. Depois fui a uma feira de Jerusalém porque me deram um prémio. E outra vez a uma feira na Suécia porque me deram um prémio.”
Agora está numa feira onde Portugal é o país-tema. “Isto de um país convidado é sempre discutível. Porquê este país? Porquê estes convidados? Poucos escritores são indiscutíveis. Esses acredito que os convidem. Os outros… há muitas variáveis que entram aqui e que não têm nada que ver com a organização. Se eu organizasse uma feira, quantos Stendhal haveria? Não há nenhum em Portugal. Por isso temos de trabalhar com quem temos. Os génios não nascem assim.”
Há sempre uma parte afectiva nestas escolhas, defendeu. “Para mim, Faulkner é o melhor. Porquê? Porque gosto dele. Podemos encontrar mil explicações racionais, pelo seu trabalho com o tempo, pelo seu trabalho com a memória, mas não é por nada disso.” Da mesma maneira que quando nos apaixonamos dizemos que se trata de uma pessoa muito inteligente. Não é verdade, apaixonamo-nos e não sabemos porquê. “Apaixonas-te porque vais para o outro corpo como uma bola na praia. Os mecanismos mentais são tão inconscientes que nos movimentamos e vivemos por pulsões. Todas as coisas são arbitrárias.”
António Lobo Antunes, o mestre, não sabe quem são "os outros escritores portugueses" em Guadalajara. "Não os conheço fisicamente. Não penso nada [acerca deles] porque não os li ou li-os muito pouco. Para mim seria muito difícil escolher gente. Provavelmente escolheria porque gosto do sorriso daquele ou das pernas daquela… são muito importantes as pernas. É que los intelectuales son muy aburridos. Esquecem-se demasiado as pernas, é essa a verdade, porque esse é também um julgamento literário.”
O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018