Portugal a dialogar com o México na Feira do Livro de Guadalajara

A maior feira do livro da América hispânica, e a segunda mais importante do sector a nível mundial, tem pela primeira vez como convidado de honra Portugal, que ali mostrará a sua cultura, e não apenas a sua literatura. Dentro e fora do pavilhão de 1200 metros quadrados que terá à sua disposição.

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Os visitantes da Feira Internacional do Livro de Guadalajara terão de passar obrigatoriamente pelo pavihão português DR

Quase cem mil pessoas entram habitualmente por dia na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), que começa este sábado no México e durante nove dias terá Portugal como convidado de honra. Todas elas terão de passar obrigatoriamente pelo Pavilhão de Portugal, que fica à entrada da Expo Guadalajara, para percorrer aquela que é a segunda mais importante feira do sector a nível mundial.

Dos cinco gabinetes de arquitectura convidados para o concurso de ideias, a proposta do atelier Santa Rita & Associados foi a que "melhor compreendeu" o que a representação portuguesa pretendia para os 1200 metros quadrados que terá à sua disposição na FIL, explica ao PÚBLICO a comissária Manuela Júdice, actual secretária geral da Casa da América Latina em Lisboa: “Que as pessoas entrassem e nos viessem visitar sem perturbar a circulação da entrada na feira. Não é preciso dar a volta ao pavilhão, ele tem amplitude suficiente para ser local de passagem. Uma vez lá dentro, temos de ser suficientemente atractivos para convencer os visitantes a ficarem. O pavilhão é permeável, mas tentámos criar espaços com conteúdos que funcionem como íman.”

Além de um auditório com mais de 120 lugares, o pavilhão dispõe do espaço de livraria que era obrigatório que tivesse, e que será gerido pelo Fondo de Cultura Económica. A representação portuguesa terá "como parceiro para toda a logística de envio dos livros em português a Livraria Ferin, que já o fez com sucesso quando Portugal foi o país convidado da Feira Internacional do Livro de Bogotá”, diz Manuela Júdice. Haverá ainda outra área onde se poderão encontrar Lenços de Namorados e peças da Vista Alegre alusivas a autores e artistas portugueses (o azulejo estará representado por uma curta-metragem) e um espaço/atelier onde uma bordadeira e um pintor de porcelana mostrarão as suas artes.

Depois de Portugal ter sido o país convidado da Feira do Livro de Frankfurt em 1997 e da Feira de Bogotá em 2013, concretiza-se agora um sonho antigo, que passou por vários titulares do Ministério da Cultura. A ideia nasceu em 2006, quando Isabel Pires de Lima considerou a possibilidade de Portugal ser país-tema da edição de 2008, mas foi já nesta legislatura, pelas mãos do ex-ministro da Cultura Luís Filipe de Castro Mendes e do ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, que se formalizou a participação de Portugal como convidado de honra da 32.ª edição da FIL. E será já uma outra ministra da Cultura, a recém-empossada Graça Fonseca, a discursar este sábado na cerimónia oficial de abertura.

A inauguração do Pavilhão de Portugal acontece logo a seguir, com “um pequeno número musical” de Gil do Carmo no auditório e um almoço oferecido por Portugal no Hotel Hilton. O chef Luís Tarenta, que foi seleccionado pelo Turismo de Portugal, criou para a ocasião uma ementa tirada de Os Maias de Eça de Queirós: canja de galinha gorda com paio, bacalhau com grão-de-bico e pimentos, fricassé de frango e arroz doce. É da tradição que cada convidado tenha um presente no seu lugar à mesa, por isso serão oferecidas colecções de marcadores de página com autógrafos de escritores portugueses e argolas de guardanapo bordadas à mão.

Para além da literatura

O orçamento previsto para a participação portuguesa nesta edição da Feira de Guadalajara era de 2,5 milhões de euros, mas gastaram-se apenas 1,8 milhões, dos quais 340 mil euros são contribuições de privados. A feira exige do país convidado “uma presença em todas as vertentes culturais”, tal como lembrava no dia da assinatura do convénio entre Portugal e o México o subdirector-geral da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), José Manuel Cortês, que conhece bem o caderno de encargos. “É uma operação muito complexa e muito difícil de montar”, dizia então ao PÚBLICO.

Ano e meio depois, Portugal leva ao México uma embaixada de cerca de 40 escritores, que representam várias gerações e géneros literários: do romancista e recorrente favorito ao Nobel António Lobo Antunes ao poeta e tradutor Vasco Gato, passando pelos prémios Camões Mia Couto (2013), Hélia Correia (2015) e Germano Almeida (2018). Da FIL, Manuela Júdice recebeu uma lista de critérios: prevalência da ficção narrativa (conto, crónica e romance policial) e equilíbrio entre homens e mulheres e entre autores premiados e não premiados.

Mas na mala da representação portuguesa viajam também os arquitectos Graça Correia, Francisco Vieira de Campos, Nuno Brandão Costa e Roberto Ragazzi, que participarão na ArpaFIL, a secção de arquitectura da feira, onde João Luís Carrilho da Graça, que dará uma conferência sobre o seu percurso, terá direito a uma homenagem. E ainda: espectáculos de teatro (By Heart, de Tiago Rodrigues, e ‘Consentim(iento’ – A Perda do Paraíso, com João Grosso e Pedro Barbeitos) e de dança (Lídia, de Paulo Ribeiro, pela Companhia Nacional de Bailado), concertos (Ana Bacalhau, Camané, Capicua, Dead Combo, etc.), um ciclo de cinema (com 12 longas-metragens baseadas em livros de autores portugueses, mas também sete curtas e um realizador convidado: João Botelho) e três exposições.

Um sonho ao contrário

A primeira das três exposições já foi aliás inaugurada esta quinta-feira, no Instituto Cabañas de Guadalajara. O que dizem as paredes: Almada Negreiros e a pintura mural, com comissariado de Mariana Pinto dos Santos, põe em diálogo as tapeçarias que reproduzem os painéis feitos por Almada Negreiros (1893-1970) para a Gare Marítima de Alcântara e para a Gare da Rocha do Conde de Óbidos, nos anos 40, com os murais do pintor mexicano José Clemente Orozco (1883-1949).

Há muito tempo que Manuela Júdice desejava expor os muralistas mexicanos, no âmbito da sua acção na Casa da América Latina: “Ao saber que Guadalajara era a terra de Orozco, decidi que em vez de os muralistas mexicanos virem a Lisboa ‘conversar’ com o Almada, eu levaria o Almada até eles." A comissária, que gosta de relacionar coisas, partiu então para o México com a ideia de realizar “esse sonho ao contrário”. Porque se trata de uma feira do livro, todo o programa paralelo deve partir "do texto literário ou da escrita", e "Almada Negreiros enquadrava-se nesse âmbito".

Do paralelo entre a importante tradição do bordado mexicano, nomeadamente com o movimento Bordamos por la Paz, e os Lenços de Namorados da tradição portuguesa, que aliam o bordados à escrita, nasceu a exposição Variações sobre uma tradição: Dos lenços de amor aos bordados com poesia, com curadoria de António Ponte, que abriu esta sexta-feira no Museu Regional de Guadalajara. Os lenços foram bordados com excertos de obras de Pedro Tamen, Herberto Helder e José Luís Peixoto.

Finalmente, no Museo de las Artes, abriu já também Ana Hatherly e o Barroco: Num jardim feito de tinta, exposição que Paulo Pires do Vale comissariou para a Fundação Calouste Gulbenkian a partir a obra da artista plástica, realizadora, tradutora e escritora Ana Hatherly (1929- 2015), que foi também professora catedrática de Literatura Barroca.

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O Mar Que Se Quebra, uma das obras de Ana Hatherly na exposição que viajou até Guadalajara NUNO FERREIRA SANTOS

Fado, mariachis e Moonspell

Para a ajudar na escolha do programa paralelo, Manuela Júdice tinha consigo uma listagem, fornecida pela Secretaria de Estado da Cultura, de espectáculos de música e de artes cénicas produzidos ou co-produzidos com apoio do Estado, e por isso mais facilmente negociáveis. Entre esses espectáculos estava, por exemplo, a Toada de Portalegre de Ricardo Ribeiro e Rabih Abou-Khalil, que implicava a presença de uma orquestra. Como não iria ter dinheiro para levá-la de Lisboa, a comissária arriscou convidar a Orquestra Sinfónica de Jalisco. Foi uma “dura negociação”, por causa da agenda da formação, cujas temporadas são organizadas com anos de antecedência, mas conseguiu-se.

A comissária preparava-se também para propor noites só de fados e de grupos portugueses mas foi avisada pela organização de que, por muito bons que fossem os grupos portugueses, se não incluísse artistas mexicanos não iria ter êxito. Como o fado e a música mariachi são ambos Património Imaterial da Humanidade, um concerto de Kátia Guerreiro e Mariachi Los Tapatíos juntará as duas tradições musicais. Manuela Júdice tinha também na cabeça a participação da cantora mexicana Lila Downs no filme Fados, de Carlos Saura, e quis que ela cantasse um fado de Lucília do Carmo ao vivo na feira: "Se há mexicana que pode dialogar com os portugueses é ela. Depois apareceu-me o nome do cantor mexicano Miguel Inzunza, que fará um concerto com Luís Represas”, revela ao PÚBLICO.

A organização pediu-lhe também que não reduzisse a representação musical portuguesa ao fado. “A ideia de levar os Moonspell veio por causa da ligação do Fernando Ribeiro ao Fernando Pessoa, e para mim foi uma surpresa este estrondoso êxito que está a acontecer nas redes sociais mesmo antes de eles lá chegarem.” Está de resto para sair no México a biografia Lobos Que Fueron Hombres, a história da banda escrita por Ricardo S. Amorim: o lançamento chegou a estar marcado para o pavilhão de Portugal, mas acabou a pedido da organização por ser mudado para um espaço maior.

Três prémios Nobel

Considerada um dos maiores festivais literários do mundo, a FIL é uma feira aberta ao público (só no ano passado teve mais de 800 mil visitantes), mas também é um importante ponto de confluência para a indústria editorial ibero-americana, com a presença de mais de 20 mil profissionais do livro, duas mil editoras e mais de 40 mil títulos numa área expositiva de 34 mil metros quadrados. Por isso, indo além do seu programa anual de apoio à tradução, a DGLAB lançou um apoio especial para Guadalajara a que concorreram editoras de diversos países hispanofalantes. As traduções daí resultantes serão apresentadas na feira. 

Entre os convidados da FIL nesta sua 32.ª edição estão três prémios Nobel: George F. Smoot (Nobel da Física 2006), Mario Molina (Nobel da Química 1995) e o Nobel da Literatura de 2006, o escritor turco Orhan Pamuk, que irá lançar em Guadalajara o seu mais recente livro, A Mulher do Cabelo Ruivo.

Também se comemorarão os 20 anos da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. Numa mesa sobre o legado político do escritor português intitulada El Viaje de la Conciencia. Memoria Política de Saramago, com a presidente da Fundação Saramago, Pilar del Río, e escritores e jornalistas mexicanos, falar-se-á sobre o que levou Saramago ao México, nomeadamente a Chiapas, onde acompanhou o movimento zapatista. E já este domingo Pilar del Río estará ao lado de dois Prémios José Saramago, os escritores Gonçalo M. Tavares (2005) e Ondjaki (2013), numa mesa que tem por tema La literatura sigue (el mundo después de Saramago).

Durante anos, o Nobel português tentou que Portugal fosse protagonista da FIL, uma feira cujo programa inclui visitas a escolas, lançamento de livros, sessões de leitura e encontros com leitores. “Justamente no ano em que se comemora o 20.º aniversário da entrega do Nobel a José Saramago, isso finalmente acontece. É realmente emocionante”, considerou Pilar del Río em Junho passado.

Na cerimónia de abertura deste sábado, a poeta uruguaia Ida Vitale, Prémio Cervantes 2018, irá receber na feira o Prémio FIL em Línguas Românicas 2018, galardão que o escritor português António Lobo Antunes também já recebeu em 2008, quando o prémio ainda se chamava Prémio Juan Rulfo.

Agora que se comemoram os dez anos da atribuição deste prémio, António Lobo Antunes regressa à FIL – integrado na comitiva portuguesa mas também como convidado da própria feira. O escritor, que lançará em Guadalajara o romance No es medianoche quien quiere, conversará com a escritora colombiana Laura Restrepo na próxima segunda-feira. Dois dias depois será entrevistado pelo académico colombiano especialista em Pessoa Jeronimo Pizarro, que em 2013 comissariou a presença portuguesa em Bogotá.

Mas mais autores estarão em Guadalajara a pedido da própria FIL. Um deles é o escritor Nuno Júdice, marido da comissária, que a feira convidou directamente para encerrar o Salão de Poesia desta edição, em que participarão também Filipa Leal e Ana Luísa Amaral. “Quando lhe foi feito o convite, Nuno Júdice disse que não queria ir por ser eu a comissária. Mais tarde acabou por aceitar com a condição de ser ele a pagar a viagem, para não gastar dinheiro à organização.” Nuno Júdice é o único português vivo que tem o Reina Sofía de Poesía Ibero-Americana e o prémio Poetas del Mundo Latino Víctor Sandoval.

Manuel Alegre também era outro dos convidados da própria FIL para o Salão de Poesia, mas por razões de saúde não irá ao México, como estava anunciado. Os escritores João de Melo e João Luís Barreto Guimarães também tiveram de cancelar a sua participação.

A FIL Guadalajara termina no dia 2 de Dezembro com a presença do primeiro-ministro António Costa numa sessão que servirá para Portugal passar o testemunho à Índia, país convidado de 2019.

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