Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade.
Muito se escreveu sobre a “imunidade” da Espanha aos populismos de direita e eurocépticos que se multiplicam na Europa. A analista Carmen González Enríquez, do Real Instituto Elcano, publicou em Junho de 2017 um longo estudo que começava assim: “A Espanha é uma excepção no actual panorama político europeu, em que os grupos populistas de direita, xenófobos, antieuropeus e antiglobalização obtêm relevantes triunfos eleitorais: apesar da crise económica e da rápida erosão da confiança política, em Espanha não houve nenhum partido populista de direita que tenha obtido mais de 1% dos votos nas eleições legislativas dos últimos anos. Como se poderá explicar a extraordinária ausência de um parido populista de direita com êxito eleitoral em Espanha?”
Deixo, de momento, o debate das causas para lembrar que este Outono trouxe uma mudança de perspectiva. Ela coincide com um mediático comício de um partido de extrema-direita — Vox — na Praça de Touros de Vista Alegre (7 de Outubro), arredores de Madrid, que fez soar os alarmes.
Antes do comício, um inquérito do CIS admitia a entrada do Vox no Parlamento Europeu, nas próximas eleições de Maio, com uma média nacional de 1,9%, mas podendo superar os 4% em algumas circunscrições. O analista Jaime Miquel previu a sua saída da irrelevância: dos 0,2 % (46.781 votos) nas eleições de 2016, poderia passar par um patamar entre 500 e 800 mil votos. Em fins de Outubro, uma sondagem da Metroscopia atribuía-lhe 5% das intenções de voto nas legislativas.
O programa do extremismo
O que é o Vox? Fundado em 2013 com o objectivo imediato de captar o voto à direita do Partido Popular (PP) e dos seus sectores mais nacionalistas, mas sem regressar à nostalgia franquista, adoptou um programa de extrema-direita “à moda europeia”. Os seus fundadores, Alejo Vidal-Quadras e Santiago Abascal (na foto), vinham do PP: o primeiro foi seu dirigente na Catalunha, o segundo no País Basco. Um rotundo fracasso nas eleições europeias de 2014 levou ao afastamento de Vidal-Quadras e impôs a liderança de Abascal. O processo independentista catalão foi a grande mola da afirmação do Vox.
Em Vista Alegre, Abascal apresentou um programa radical, em “100 medidas”. Usou uma linguagem o mais “incorrecta” possível e designou três inimigos: o independentismo catalão, a imigração e o feminismo. O alvo preferencial é a imigração, propondo deportações e um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla. Assume a xenofobia e, em nome da Espanha “católica”, denuncia a “invasão islâmica”. O outro tema é o “hacer España grande otra vez”, copiado de Trump. Pede a revogação da lei contra a violência de género. Perante o independentismo catalão, quer a recentralização do Estado. Propõe um Estado-providência que dê prioridade aos espanhóis. Enfim, ao contrário da maioria dos seus congéneres europeus, é ultraliberal em matéria económica.
Abascal copia a direita eurocéptica europeia, inspira-se em Marine Le Pen e admira Viktor Orbán. Os eurocépticos estão a organizar uma frente para disputar as europeias eleições de Maio. Até agora, desprezaram a Espanha e Portugal, considerados terrenos ingratos em que a crítica a Bruxelas teria sido “monopolizada pela extrema-esquerda”. Depois da Vista Alegre, Abascal passou a interessá-los: foi recebido pelo holandês Geert Wilders e espera uma visita do americano Steve Bannon.
Durante a Transição, surgiu uma ultradireita franquista, a Fuerza Nueva, de Blas Pinar, que fracassou logo nas eleições de 1979, com 2,1% dos votos. A nostalgia franquista não era uma boa receita e o seu eleitorado foi rapidamente absorvido pela Aliança Popular, de Fraga Iribarne, que mais tarde dará lugar ao PP. Outras tentativas falharam. O papel do PP como dique perante a extrema-direita manteve-se intocado até hoje.
O PP é o alvo
“Não sabemos se se trata de um estado de ânimo pontual ou do início de uma trajectória”, admite Francisco Camas Garcia, analista da Metroscopia. “Mas é uma mensagem para Pablo Casado e Albert Rivera. Não dançam sozinhos na pista. E as eleições europeias são dentro de meses.” O seu objectivo imediato é sair da margem e entrar na cena político-mediática, que deseja e pode condicionar. Como?
O Vox tem possibilidade de obter boas votações em Madrid, Valência, Alicante ou Múrcia, o que pode ser fatal para o PP na sua competição com o Cidadãos pelo mesmo eleitorado. “Dois partidos no mesmo espaço é suicidário para ambos”, observa o politólogo Fernando Vallespín. A primeira reacção de Casado foi endurecer o seu discurso, designadamente no terreno da imigração, para segurar os eleitores mais à direita. “O Vox tem uma alta capacidade de contaminação, sobretudo em matéria de anti-imigração e de recentralização. Pode atirar um fósforo sobre a gasolina”, adverte Andrés Ortega, colunista do El Confidencial. Nas eleições da Andaluzia, não é Susana Díaz quem preocupa o PP. É a brecha que o Vox possa abrir à sua direita.
Cenário extremo: a pressão de Abascal pode radicalizar o PP e as posições deste poderão, por sua vez, contaminar a sociedade. Referindo-se ao precedente da Holanda, o politólogo Pablo Simon sublinha o efeito da entrada em cena de rivais extremistas: “Um líder que não tenha à partida ideia anti-imigração pode acabar por a assumir por pressões internas do seu partido e por acumulação de derrotas eleitorais.”
Quando estes partidos crescem, prossegue Simón, surge um “dilema impossível”: “O cordão sanitário faz [os extremistas] capitalizar a oposição, mas incorporá-los no governo promove as suas agendas.” Por outro lado, “o Vox será tanto maior quanto mais nos escandalizar”, acrescenta Vallespín.
A piscina e a vacina
Muitos analistas mantêm-se cépticos quanto ao êxito do Vox. “A piscina é pequena”, sublinham. Os simpatizantes do partido encontram-se nas categorias ideológicas mais extremistas, que representam apenas 2,2% do eleitorado, indicador que se mantém estável há décadas. A sociedade espanhola é dominantemente liberal em matéria de costumes. A questão da imigração está a subir entre as preocupações dos espanhóis, mas apenas 5-8% são “anti-imigrantes”, diz o CIS. Os eleitores do Vox são homens, com uma idade média de 45 anos, na grande maioria de uma classe média próspera com rendimento mensal acima dos 2000 euros. Também não se verifica nenhum indício de deslocação para a direita do voto operário, como aconteceu em França.
O principal teste tem a ver com a tese tradicional, assim resumida por Carmen González Enríquez: “A hipótese de que um passado recente autoritário, direitista e nacionalista actua como uma vacina contra os partidos de extrema-direita que, no presente, se confirma pelas similitudes entre a Espanha e Portugal.” É o teste à célebre “imunidade ibérica”.
De momento, é prudente aguardar o longo ciclo eleitoral que se avizinha, com atenção mas sem alarmes que projectem a imagem do Vox. O seu crescimento parece vertiginoso porque parte de uma base baixíssima. Mas não podemos ignorar o fenómeno.