Touradas: os que gostam, não gostam e os que "não admitem que se goste"

Uns vêem a tauromaquia como uma prática “passadista e machista” e defendem o seu fim numa óptica de progresso civilizacional. Outros dedicam-se a mantê-la viva – nas arenas, e não só. A descida do IVA nas touradas estará em discussão no início desta semana no Parlamento.

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A descida do IVA nas touradas estará em discussão no início desta semana no Parlamento Nelson Garrido

O debate a favor ou contra o valor cultural ou patrimonial das touradas está mais visível mas este é um assunto fracturante em Portugal há centenas de anos. Há quem lembre a resistência às touradas que mobilizou, no século XIX, movimentos de mulheres preocupadas com uma moralização da sociedade onde certos valores se perdiam. E há quem evoque o simbolismo do cavaleiro no combate ao inimigo e a importância das diversas práticas tauromáquicas – daí inspiradas – na ligação de uma comunidade à terra e aos animais.

Luís Filipe Marques Pereira, autor de uma tese de mestrado de Sociologia sobre a importância da tauromaquia para a identidade cultural e o desenvolvimento local, diz que “a gota de água” que acalorou os ânimos nesta discussão foram as declarações da ministra da Cultura, Graça Fonseca, durante o debate parlamentar de aprovação na generalidade do Orçamento do Estado (OE) para 2019. “O problema é que agora temos os que não admitem que se goste”.

“A tauromaquia não é uma questão de gosto. É uma questão de civilização e manteremos como está”, declarou Graça Fonseca quando defendeu a redução do IVA para todas as actividades culturais, à excepção das touradas, bilhetes de cinemas e eventos culturais que não tenham recinto fixo. O IVA nas touradas, no âmbito do Orçamento do Estado para 2019, estará em discussão no início da próxima semana no Parlamento.

Uns vêem a tauromaquia como uma prática “passadista e machista”, com valor de tradição apenas no sentido de uma criação susceptível de ser constantemente renovada pelas pessoas, e que não deve ser apoiada. É o caso da professora doutorada em Sociologia Paula Sequeiros, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e activista envolvida no movimento contra a transmissão das touradas na RTP. “Muitas formas de mau trato foram usadas e aceites no espaço público. Hoje já se tem um outro olhar, e muitas associações estão contra aquilo que se considerava normal e habitual”, diz.

Risco e não violência

Outros dedicam-se a manter a tourada viva – nas arenas, e não só. “As comunidades desenvolvem-se em função daquilo que mais gostam” e daquilo que assumiu importância ao longo da sua história, defende Luís Marques Pereira, autor da tese de Mestrado de 2010, com o título Tauromaquia, Identidade Cultural, Enquadramento Legal e Desenvolvimento. “Isto não tem a ver com práticas violentas, mas sim com práticas arriscadas. Se forem compreendidas no seu todo, não serão vistas como violência.”

O sociólogo teve a sua tese (de 2010) orientada por Luís Manuel Capucha, professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, que coordena actualmente a preparação de uma candidatura na UNESCO da tauromaquia a património cultural imaterial de Portugal. Este académico considera que a ministra contribuiu para “uma visão maniqueísta” do assunto.

De um lado e do outro, os valores de liberdade, tolerância e direito à diferença são invocados. Mas de formas opostas: para repudiar as tendências de proibição ou restrição da tourada; para contrapor a esses valores “a opressão e expressão do domínio sobre um ser vivo” em circunstâncias de desigualdade, e de uma “prática bárbara” que “não devia ter espaço” numa perspectiva civilizacional.

O professor jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra Figueiredo Dias considera que não há neste momento na sociedade portuguesa condições para ir mais longe na defesa legal dos direitos dos animais. Na lei desde 2014, a criminalização dos maus tratos “só é aceitável em casos particularmente graves e repugnantes”, defende o jurista, para quem não é desejável aumentar as molduras penais deste tipo de delitos: “O aumento das penas nunca deu em nada”.

Considerado o pai do Código Penal português, Figueiredo Dias diz que nem sempre teve uma opinião firme sobre aquilo que considera ser um tema de elevadíssima complexidade como é o tratamento dos animais à luz da lei. Neste momento, tem uma certeza: “Não acho adequado neste momento proibir ou criminalizar as touradas num país como Portugal.” No futuro admite que as coisas possam mudar. “Não sei como vai ser daqui a 20 ou 30 anos.”

Tourada "não é património"

Humberto Martins, professor de Antropologia e Sociologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, reconhece como “evidente” a importância da tourada “em muitas geografias da sociedade portuguesa”. No entanto, diz: “Manter tudo isto em perspectiva parece-me importante, e pensar estas coisas a partir de localizações específicas. A tourada não é património.” E falar em tradição, é relativo porque “do ponto de vista antropológico, as tradições são criações constantemente renovadas pelas pessoas”.

O mais importante, para Humberto Martins, é a capacidade do humano projectar o sofrimento nos animais não humanos: “Nós enquanto seres humanos, no âmbito do que se chamaria uma ética pós-humana, devíamos ter a capacidade de projectar o sofrimento nesses outros que são os animais não humanos.”

Sobre as manifestações fora da arena – como o forcão, a capeia ou a tourada à corda dos Açores, entre outras – “apesar de o animal não ter ali um sofrimento" tornado tão visível, "são manifestações que podem pôr em causa esse direito à dignidade dos animais, do ponto de vista de algumas normativas para o reconhecimento desse direito”, acrescenta Humberto Martins. 

Há países no mundo, como os casos particulares do Equador e da Bolívia, que já reconhecem direito constitucional à Mãe Terra, salienta o professor. “No chamado desenvolvimento, Portugal está na carruagem da frente do processo civilizacional, e supostamente o Equador e a Bolívia estariam mais atrás, mas afinal não.” Será apenas percepção. “A Bolívia e o Equador estão mais à frente, enquanto países que têm uma relação com as coisas não humanas que faz reconhecer direitos específicos constitucionais que, por exemplo, a nossa não faz.”

A posição da ministra mereceu os elogios daqueles que, como Paula Sequeiros, associam o fim destas actividades a um “progresso civilizacional”. “Há uma dimensão cultural, com certeza. Mas as sociedades vão mudando. O costume e a tradição estão sempre a fazer-se e a desfazer-se”, acrescenta a investigadora do CES. A socióloga lamenta que, na lei, a tourada ainda seja considerada como “expressão da cultura” e que seja invocado o argumento da liberdade individual (de assistir às touradas) quando se está perante uma “barreira ética”.

Instrumento colonialista

Lembra, por outro lado, que "a tourada foi também um instrumento de colonialismo”. “O toureiro moçambicano Ricardo Chibanga foi exibido como um símbolo da universalidade desse portuguesismo. Aquela pessoa era utilizada como uma arma de propaganda [no sentido de dizer] não fazemos opressão colonial sobre África”, diz.

A investigadora critica o aproveitamento que os interesses da indústria das touradas fazem do argumento cultural. E associa a esses interesses, uma reacção dos defensores da tauromaquia de quem se sente ameaçado. Usam o argumento “populista da influência do PAN na sociedade”, considera, disseminando a ideia de que quem se preocupa com os animais, preocupa-se mais com os animais do que com as pessoas, conclui.

“Eu não tiro contentamento de ver um animal a sofrer, mas eu não sofro”, admite Luís Pereira. “Sofro sim com o meu semelhante, quando passo nas arcadas da Baixa ou da Almirante Reis, em Lisboa, e vejo pessoas a dormir em caixas de cartão, sem nada para comer ou descalças no Inverno.” Com Ana Henriques

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