O restaurante mais sustentável do mundo agora tem uma estrela Michelin
António Loureiro fez-se chef em muitas latitudes, mas é em Guimarães que ganha fama. Na manhã seguinte à gala do Guia Michelin, trabalha-se como se nada tivesse acontecido.
Vitória é um substantivo de suprema importância para Guimarães. Na língua dos vimaranenses, significa futebol, ou D. Afonso Henriques. No dicionário do chef António Loureiro, que ali nasceu há precisamente 50 anos (feitos em Outubro), passa a ser sinónimo de 2018: o restaurante dele, A Cozinha, foi eleito o mais sustentável do mundo há dois meses. Agora, a mesma casa que abriu no centro histórico acaba de receber uma estrela Michelin – a primeira para Guimarães e logo para um restaurante que praticamente acabou de nascer.
"Se estava à espera? Não. Foi uma agradável surpresa", diz António Loureiro ao PÚBLICO, na manhã seguinte à noite do prémio. "O restaurante tem cerca de dois anos, demo-nos a conhecer ao guia [Michelin] há apenas um ano e não estávamos de facto à espera disto", conta. "Tinha esperança? Sim, quem trabalha com paixão tem sempre a ambição de chegar a algum lado."
Os cheiros e sabores inebriantes da infância
Foram muitas voltas para chegar a este lado. Aos 20 anos, depois do secundário, pensou na cozinha como uma opção de carreira. Fez a primeira formação e foi logo atirado aos leões. Seguiu-se a escola de Hotelaria do Porto, para ganhar mais conhecimento e aquela confiança com que acabaria por abrir o primeiro restaurante, o Ruínas, nos arredores da cidade que o viu nascer. Foi um projecto que o "entusiasmou muito", mas, apesar de ter "algum sucesso", acabaria por se sentir "muito preso". "Sentia que não evoluía. Precisava de mais formação, de um sem-número de coisas que me estavam a faltar", recorda.
Entendeu que chegara a hora de partir. Vendeu o restaurante e arquivou a veia de empresário para se fazer chef noutras latitudes. Foi para o Alentejo, nas Pousadas de Portugal, seguiu para o Algarve, num projecto hoteleiro. Na mala meteu uma ideia – regressar algum dia a Guimarães – e as primeiras memórias culinárias, que ainda hoje o acompanham, "aqueles aromas da salsa, das ervas aromáticas" que se cultivavam em casa da avó e da tia. "Eram os assados, as sopas."
Foi esse património, mais tudo o que se juntou a ele no caminho de regresso ao Norte, que incorporou no ADN do restaurante que recebe uma estrela. Os Natais na casa da avó, "com 40 pessoas, com esses cheiros que inebriavam, com todos aqueles doces, influenciam os sabores" da cozinha de António Loureiro. "Sou muito tradicionalista na forma de comer. Mas o importante é encontrar no prato a essência do produto, do sabor, do receituário, da nossa cultura", explica – e quando diz nossa cultura pensa "em Portugal, mas primeiro no Minho", que é "a grande influência" da vida gastronómica dele.
Com novos saberes no bolso, decidiu regressar ao Minho, primeiro a Ofir, depois Braga. Mas o objectivo final era Guimarães, uma cidade que tem mais de 300 mil dormidas turísticas por ano, só em hotéis, e que ganha aqui mais um ponto de atracção e algo que a distingue como destino para o nicho do turístico gastronómico.
O mote da casa é "cozinhar o que a Natureza te dá": produtos de época, comprados pelo chef, no mercado municipal e a fornecedores locais. Isso traduz-se numa carta que refresca sabores típicos com técnicas e combinações inovadoras.
Nas entradas, um pesto de tomate e manjericão, uma manteiga trufada, azeite do Douro e uma focaccia caseira com alecrim, cavala e foie-gras, uma sopa à lavrador ou rabo de boi com legumes bio.
Do mar, há polvo e pimentos (estes em puré) com cebolinhas, pimento padrão e arroz malandrinho, há bacalhau com puré de grão, azeitona, salsa, cebola e ovo, e ainda uma proposta de rodovalho e lagostim acompanhados por couve-flor, molho de espumante e copita. Nas carnes, porco ibérico, e o coelho.
Tal esforço estende-se às sobremesas, de entre as quais se destaca a Chila, uma versão desconstruída da famosa torta de Guimarães, que se caracteriza por ser um rico e recheado doce conventual. A receita original é herdada do antigo Convento de Santa Clara e só é conhecida por duas famílias locais, que continuam a produzir as tortas em exclusivo. Na versão de António Loureiro, a torta apresenta a massa, o doce de ovo e chila num formato diferente, com uma sopa de morangos e uma quenelle de gelado de framboesa a dar um toque de acidez necessária que alivia a extrema doçura desta centenária receita conventual.
No reaproveitar está o ganho
O restaurante alia esta opção por produtos da terra (comum a muitos chefs) a outra tendência actual: uma política de desperdício zero. Todo o trabalho se submete a esse desígnio. "Há um plano para tudo, desde que o produto entra aqui até ao momento em que começa a ser manipulado. Há um plano para as cascas de tomate, para as aparas de cenoura. As sobras do que vai para o prato têm de ter uma segunda vida, não as tratamos como um subproduto. Tem de ser outro produto e de qualidade", explica António Loureiro. E isso fica patente quando vai para a mesa o Coelho da Quinta, que vem acompanhada de uma salsicha da perna que integra as pernas e toda a carcaça do animal.
Assim se vê como n'A Cozinha de António Loureiro desperdício zero não é palavra vã – nem marketing. Em Setembro, esta política valeu-lhes o prémio de restaurante mais sustentável do mundo. Numa competição da Green Key, que reúne 2600 restaurantes de 58 países, a concorrência ficou toda para trás. Depois de em 2014 ter sido eleito o Chefe Cozinheiro do Ano (o mais antigo concurso de profissionais de cozinha em Portugal), já se pode falar numa carreira de sucesso?
"Acaba por ser bom para mim, para a cidade e para os meus vizinhos do Largo do Serralho", responde o chef. Quem há 20 ou 30 anos morava neste largo, era vizinho de uma garagem de carros. Agora tem um restaurante com estrela Michelin ao lado de casa. "Para nós, tudo é um pouco mais difícil. Numa cidade como Guimarães, acontece tudo mais lentamente. No Porto ou em Lisboa, há mais visibilidade. Aqui temos de fazer todo um trabalho que nas grandes cidades talvez outros fariam por nós", continua.
Por isso, é importante manter-se realista. A equipa não se apoia num investidor, como acontece com outros chefs, e a fama que se adivinha não vai mudar o percurso. A carta actual será mudada para a semana, com uma ementa sazonal dedicada à caça. Os 40 lugares da casa vão continuar a ser os mesmos. "É bom saber que o chef quer continuar a apostar na autenticidade e na sustentabilidade", comenta a responsável do turismo na Câmara de Guimarães, Sofia Ferreira, que ganhou um novo trunfo para promover a cidade.
Na manhã seguinte à surpresa Michelin, que levou o chef até Lisboa, o ambiente em Guimarães é calmo, como se nada tivesse acontecido. António regressou ao restaurante meia hora antes de abrir a casa. "Cheguei a horas para o serviço", comenta com um cliente, que o parabeniza. É a manhã de aniversário da mulher de António Loureiro. "Este ano, já não me preocupo com a prenda."