Anselmo Mendes, vinte anos a engrandecer o vinho e a casta Alvarinho
Anselmo Mendes comemora este ano três décadas de carreira: uma como enólogo de outros projectos e duas como produtor dos seus próprios vinhos. Até parece que foi há mais tempo, tal é a dimensão do seu legado.
Quando o empresário Carlos Dias comprou a Quinta da Pedra, em Monção, pouco tempo depois de ter vendido a marca de relógios suíços Roger Dubuis e ter encaixado umas centenas de milhões de euros, prometeu fazer o melhor Alvarinho do mundo. Não fez, claro. Nem do mundo, nem de Portugal. E não fez porque não chega ter dinheiro para criar um grande vinho. É preciso dispor da terra certa e conhecê-la, entender os ciclos da natureza, passar muito tempo em volta das vinhas, possuir conhecimento científico e empírico e ter uma grande memória do vinho e, acima de tudo, muitos anos de prática.
Ao contrário de Carlos Dias, Anselmo Mendes reúne todos estes requisitos e não é por acaso que hoje o apelidam de “o senhor Alvarinho” em Portugal. Há mais produtores a fazer grandes brancos de Alvarinho. A Quinta de Soalheiro, por exemplo, é uma delas. Mas Anselmo Mendes tem algo que o distingue dos demais: a sua inquietude criativa, a busca do detalhe, a experimentação contínua, o respeito pela memória e pelo lugar.
Anselmo Mendes faz grandes vinhos, de Alvarinho e Loureiro, sobretudo, porque é um homem da terra com saber académico. Porque cresceu entre as vinhas e a adega, porque possui referentes ligados à terra e ao vinho como poucos, porque sabe que inovar passa quase sempre por regressar ao básico, aos ensinamentos dos antigos, à experiência comprovada pela prática. E também porque se questiona a cada vinho que faz, duvidando e tentando fazer sempre melhor, como é típico dos humildes e dos sábios.
Seria uma estultícia dizer que Anselmo Mendes tem o dom de Midas e que tudo o que faz é irrepreensível. Não. Também produz vinhos a pensar mais na necessidade de pagar dívidas do que na satisfação pessoal. Nos dias de hoje, o negócio do vinho não deixa grande margem ao romantismo. Mas, olhando para a sua obra como um todo, o que sobra é um extraordinário legado. Se a região dos Vinhos Verdes começa a dar de sinais de não querer continuar agarrada à imagem dos brancos baratos e gaseificados, deve-o muito à determinação e à ousadia de Anselmo Mendes. Alguém imaginava há cinco ou dez anos haver na região um vinho como o seu Alvarinho Tempo, que custa 70 euros? Não é notável que um outro Alvarinho seu, o Contacto, seja quase todo vendido (mais de 70 mil garrafas) na Suécia?
Se o Alvarinho deixou de ser um vinho de uma dimensão só e é hoje interpretado de inúmeras maneiras, deve-o também ao constante experimentalismo de Anselmo Mendes. Foi o primeiro a fermentar Alvarinho em barrica, a recuperar a velha técnica da curtimenta e a fazer vinhos de parcela. O seu Parcela Única é um dos melhores brancos portugueses. Não terá sido por acaso que o grupo Symington quis fazer uma parceria com Anselmo Mendes para a produção de Alvarinho na região de Monção-Melgaço. Os filhos do produtor não estiveram de acordo, preferindo continuar com o projecto familiar, e o negócio não avançou.
O seu trabalho e exemplo também foram relevantes para a popularidade da casta Alvarinho, hoje presente em quase todas as regiões nacionais e em vários países, e para a emergência de uma nova geração de enólogos que aprenderam junto de si ou se inspiraram nos seus métodos.
Anselmo Mendes chegou onde chegou porque, além de talentoso, também é um trabalhador incansável, apoiando vários produtores em diversas regiões do país (Kompassus, Adegamãe, Quinta dos Frades, Quinta do Ameal, entre outros) e também no Brasil (Quinta da Neve) e fazendo ele próprio vinhos fora da sua região natural. O seu trabalho na recuperação dos vinhos Verdelho da ilha Terceira, nos Açores, onde passou a assumir a gestão da Adega dos Biscoitos e produz os brancos Magma e Muros de Magma, é um dos mais meritórios.
Mas é na região de onde é natural, Monção-Melgaço, que Anselmo Mendes tem deixado uma marca mais impressiva, apesar de durante muitos anos ter tido que enfrentar a indiferença da Comissão Vitivinícola Regional, mais vocacionada para promover as grandes empresas e o vinho mais barato e de volume. Até nisso conseguiu fazer a região avançar e, hoje, ele e outros produtores de qualidade já são mais envolvidos na promoção da região e dos seus vinhos. Era inevitável, até porque quem faz o prestígio de uma região são os produtores. E Anselmo Mendes, goste-se muito ou pouco da pessoa, provou ao longo dos últimos 30 anos que é um enólogo e produtor de mão-cheia, daqueles que qualquer região vitivinícola gostaria de ter.
Três décadas que assinala este ano, mas que para ele significam apenas que continua no início de tudo. Anselmo lembra que ainda sabemos pouco sobre a evolução do vinho, os efeitos da bâttonage, o consumo de oxigénio, as nanopartículas. Há pouca investigação e é necessário continuar à procura de conhecimento para se poder fazer vinhos novos e vinhos cada vez melhores.
Foi há 20 anos que, após uma década a colaborar como enólogo noutros projectos, Anselmo Mendes começou a criar vinhos próprios, com base em estudos e experimentação que mantém ao longo destes anos, tornando-se desde logo pioneiro na fermentação de Alvarinho em barrica, uma ousadia para a altura e que hoje é prática corrente. Na viragem do século, iniciou a aposta nos Alvarinhos de maceração pelicular e curtimenta, um novo passo de gigante na valorização da casta e da sub-região de Monção-Melgaço. E a partir de 2008, com as vinhas da Casa da Torre-Quinta da Bemposta, em Monção, entrou num outro patamar, estudando e experimentando as diferentes expressões do Alvarinho de acordo com cada solo e cada parcela. Um trabalho de minúcia que deu origem ao seu extraordinário Parcela Única.
Na sua adega, vai acumulando dezenas de vinhos experimentais de Alvarinho, provenientes de inúmeras vinhas e parcelas, e cujos resultados vai querer partilhar, por considerar que são um património da região. Um dos seus projectos é criar na Casa da Torre, palacete do século XV que tem vindo a recuperar, bem como as vinhas da quinta, um centro de experimentação do Alvarinho e dar a conhecer todo o trabalho de experimentação e investigação que tem feito ao longo destes 20 anos.
Mas não é só o Alvarinho que concentra as suas atenções. Anselmo tem investido igualmente na casta Loureiro, que acredita poder vir a ser um caso sério na região, principalmente quando a viticultura no vale do Lima estiver mais afinada (vinhos como o seu Private Loureiro ou os Quinta do Ameal estão aí para o provar). E também na recuperação dos vinhos tintos que, no século XV, muito antes dos brancos, fizeram a fama de Monção. Tintos à base da casta Alvarelhão, deliciosamente aromáticos, frutados e cheios de frescura. Por serem abertos de cor, eram conhecidos como parduscos. E foi com este nome que os recriou, abrindo novos caminhos para os tintos da região. Prove-se o seu Pardusco Private 2015 e as referências vão directamente para os delicados Pinot da Borgonha.
Mais do que enólogo e viticultor de referência, Anselmo Mendes é hoje uma marca, vincada nos rótulos com a sua assinatura. Ao assinalar os 20 anos da sua marca, a modéstia leva-o a dizer que tem estado no sítio certo e na hora certa. “Apanhámos a grande revolução do vinho português”, diz, como se não fosse ele próprio um dos grandes fautores dessa revolução. Daí que o título de “o senhor Alvarinho” comece a ficar curto para tanta obra.